998756 é o número que está escrito na porta de uma sala, no andar subterrâneo de um sofisticado prédio comercial, numa rua insuspeita da capital Paulista.
Ali naquele andar, reservado inteiramente a uma companhia chamada CYNAPTIX, há uma pesquisa secreta sendo desenvolvida.
É uma sala isolada, cercada de um forte esquema de segurança. Computadores pretos iluminam a sala com leds coloridos. Uma imensidão de cabos de todos os tipos desce em cascata para uma fenda no chão. A sala é uma espécie de cockpit, com um console central. Nele está um homem. Um homem que veste jaleco branco. Ele observa inúmeros monitores. Cada um mostra uma coisa diferente. Alguns mostram números que descem pela tela. Outros mostram gráficos que se movem horizontalmente em picos. Imagens coloridas de fatias cerebrais passam pelo monitor de cima.
O homem se vira para a equipe que trabalha numa câmara lateral:
-Ok, sinais positivos. Índices complementares atingindo níveis estáveis. – As pessoas acenam positivamente.
Um homem mais velho, de óculos e grisalho, usando terno se aproxima.
-Excelente Doutor Langruber. E as reações axônicas? Normais?
-Estavam abaixo da média estimada há dois minutos, mas se recuperaram e já demonstram um leve aumento na capacidade. Neurotransmissores nanoplasmáticos estão em pleno funcionamento. Ele recuperou a consciência.
-Esses números… Está melhor que…
-Sim senhor, melhor que a cobaia 9.
-Excelente.
-Doutor Langruber… O senhor me autoriza a falar com o paciente?
-Sim, senhor Markal. Fique à vontade. Ele está consciente. Aliás, mais consciente do que nunca. Mas não vamos agitá-lo, ok?
Os homens acenam com a cabeça. O senhor Markal avança até duas grandes portas negras no fim da sala. Ao cruzá-las ele é recebido por uma equipe de descontaminação. O paletó é removido e ele veste um traje de pressão positiva. Passa por uma baia de esterilização e ingressa no quarto branco, fortemente iluminado e frio, onde há uma grande bolha plastica no centro.
Complexos equipamentos brancos reluzem aos holofotes no teto. Milhares de cabos e aparelhos curioso se espalham ao redor da sala.
Uma passagem conduz o acesso até o centro da bolha onde estão outros dois enfermeiros usando trajes de pressão positiva. No centro, amarrado a uma maca, está um jovem rapaz. Ele veste uma touca de borracha preta onde milhares de microscópicos fios escorrem como cabelos, para uma placa que está ligada a uma tubulação de cabos. Os cabos seguem direto para o quarto dos grandes computadores pretos. O jovem está parado. Tem o olhar fixo para uma tela, onde números da bolsa de valores se alternam em índices financeiros.
-Paulo?-Pergunta o velho ao lado da maca. O jovem vira o rosto.
-Senhor Markal! Como vai?
-Vejo que está consciente.
-Sim, Markal. Estou pleno. E feliz como nunca estive.
-E então? Sente fome, sede, qualquer coisa assim?
-Sinto. Passei a sentir fome ontem. A sede ainda não, pois eles me plugaram este monte de soro aí. Veja.
Markal olha para o suporte metálico onde vidros de soro, líquidos verde es e sangue estão pendurados. Pequenas mangueiras gotejam os líquidos direto para tubos presos aos braços do rapaz. Ao fundo, Markal vê o vidro que separa a sala isolada do cockpit de controle. Dele o Dr. Langruber acena.
-Normal. Faz parte. O doutor Langruber está ali acenando positivamente.
-Não consigo me mover direito ainda.
-Não se preocupe, Paulo. Isso era esperado. Foi assim com as cobaias. É como explicamos. Até as funções todas serem reativadas vai levar ainda algumas semanas.
-Sim… Sabe, Markal, è estranho. Eu ainda estou preso aos velhos hábitos.
-Isso não muda da noite para o dia. Você sabe.
-Exato. Exato. Tem razão, meu amigo. Mas tenho medo de não voltar a andar como a cobaia sete.
-Isso era um risco. E um risco que você aceitou correr. Creio que os fins justificam sua decisão. Não é mesmo?
-Sim, Markal. Mesmo que seja numa cadeira de rodas, terei uma vida novamente. Tenho que me habituar ao tempo. Quando sua vida se aproxima do fim como há alguns meses atrás, você se torna impaciente. A idade torna os homens mais intolerantes.
-Eu entendo, Paulo. Não esqueça, também sou um velho. Já estou naquela idade em que só releio livros. Não tenho mais tempo para me arrepender. No risco, prefiro saborear o que sei que é bom.
-Ah, Markal, meu amigo… Você sempre teve um espírito jovem. Nunca foste velho.
– Bondade sua, meu amigo. Nos conhecemos há tanto tempo.
-Há tanto tempo que não me lembro.
-… pois é.
-Aliás, nos conhecemos naquela festa no Copa, em 54, lembra? Antes de eu casar. Você namorava aquela moça, do teleteatro da Tv Tupi…
-Nossa, Paulo. Impressionante. O tratamento faz milagres na memória.
-Devo isso ao Doutor Langruber. Aliás, falando nele, quando ele vai me liberar?
-Bom, segundo os relatórios, você terá alta em menos de duas semanas.
-Excelente. Excelente. Quero sair daqui andando.
-Paulo, você sairá. O Doutor Langruber está empolgado com os gráficos da sua recuperação. A neurogênese está acima das metas projetadas.
-Isso explica porque me sinto tão bem… Ah, que maravilha. Foi o melhor investimento que fiz em toda a minha vida. Valeu cada centavo. Tem tanta gente que precisava saber disso, o Niemeyer, o Olacir…O Zé Alencar…
-Não tenho dúvidas Paulo. Mas você sabe… O sigilo é uma obrigação.
-Sim, eu sei. Senão eles me matam. Não sou burro. Entendi. O milagre é para poucos.
-Tem que ser assim, Paulo. Para poucos que podem pagar. Do contrário, já viu.
-… -Suco de laranja. Tenho vontade de beber suco de laranja.
-Ótimo, Paulo. Isso é um bom sinal. E a visão?
-Maravilha. Ele enxergava muito bem. O duro vai ser conviver com a tatuagem. Viu que merda?
-Tá, é ridícula, mas isso é cosmética, meu amigo. Isso a gente tira depois. Nada que uma plasticazinha não resolva.
-Markal…
-Diga Paulo.
-Como foi quando eu estava fora do ar?
-Paulo, nas duas semanas em que você esteve… Bem… Desligado, morto, chame como quiser…
-Fala logo, Markal. E o Flávio? Como a Sylvia reagiu? Eles acreditaram na história da morte?
-Só quando viram o corpo. O desaparecimento do helicóptero deu tempo suficiente para a conversão dos dados.
-Eu não tenho memória deste dia. O Langruber apagou.
-Sei. Ele fez isso porque a dor é muito grande. Você há de convir.
-Ah, desgraça eu prefiro não lembrar mesmo. Mas e o velório? Como foi? Quem foi? O Lula foi?
– Foi. Nós gravamos o velório. Documentamos tudo. Teve homenagem… Até na Globo.
-Você tá me gozando!
-Não, Paulo. É sério, mas o Langruber acha que ainda é cedo para experimentar certas emoções. Só posso dizer que foi uma comoção nacional. Tipo a do Brizola, tá lembrado?
-Rolou desfile no corpo de bombeiros?
-Não, a Sylvia não deixou. Ela preferiu algo mais íntimo. Mais sóbrio.
-Ah… Se ela soubesse teria deixado.
-Relaxe, Paulo. Daqui a poucos dias você estará livre. Será um novo mundo, uma nova vida. Você fará o combinado.
-Sim.
-Só vai poder procurar a família daqui a dois anos. E eles não irão acreditar, por isso é importante aquele documento guardado no cofre do Banco do Brasil.Você ainda lembra a senha?
– Claro, Markal. Mas o duro mesmo vai ser passar este tempo todo longe da família.
-Ah, quanto a isso, não se preocupe. Há um mundo de prazeres lá fora te esperando. Lanchas, carros, aviões, ilhas e mulheres, muitas mulheres.
-Nossa… Não tinha pensado nisso. Se eu me recuperar totalmente como o Langruber falou…
-Você será um jovem milionário, boa pinta, com muito dinheiro no bolso. Um ímã para mulheres bonitas, meu amigo. E olha, vou te dizer com estes músculos e este rosto aí dá pra se passar por um príncipe árabe fácil. E o que é melhor, livre daquele monte de ação civil, processo, aquele monte de merda… Pode escolher um novo nome… Quem sabe até um nome libanês?
-Ah, isso tudo é ótimo, mas não precisa. Tudo que eu quero é ser o Jacinto Ferreira Andrade, o jovem estudante de direito de vinte e um anos que ganhou na loteria e emigrou do Brasil.
-Isso mesmo, meu amigo. Paulo está morto. Morto e cremado. Agora você é Jacinto.
-Adeus Markal. Nos veremos na semana que vem.
-Adeus Doutor Paulo Maluf, digo… Jacinto.
-Até lá.
-Ah… E o dinheiro lá fora?
-Ah, Markal… Lembra o que eu falei: “É de quem achar”!
Markal sorri para o jovem na maca.
-Parabéns pela loteria. O bilhete estará no bolso do casaco.
O homem sai da sala, deixando para trás o corpo do jovem Jacinto Ferreira Andrade, um jovem estudante de direito que ao voltar da faculdade para casa foi agarrado por homens encapuzados e arrastado à força para dentro de uma van preta que sumiu na escuridão da noite. Jacinto está desaparecido desde então. Ele será encontrado desmaiado num matagal de uma cidade no interior Paulista, justamente um dia antes de milagrosamente ganhar na loteria e ir embora do Brasil.
FIM
Ficou ótimo :D
Nossa incrível, eu adorei a descrição dos ambientes foi muito boa, me lembrou um pouco dos animes Evangelion e Lain. Adoro essas suas histórias, você esta de parabéns! Seu blog é otimo e se lançar mesmo o livro garanto que vou comprar.
Surpreendente! Ficção científica envolvendo políticos brasileiros…nunca tinha visto antes…heheheh
haha grande história, parabéns
Ficou muito bacana Philipe, me lembrei do Dan Brown.
Acho que caía bem uma continuação hein?
Abraços e Feliz Páscoa.
Também me lembrou um pouco do Dan Brown…
Quando vc mencionou Paulo, imaginei que fosse o Paulo Coelho ou qualquer outro Paulo que valesse a pena trazer de volta. Se o Paulo Maluf morresse, o melhor lugar para ele era dentro do caixão mesmo… ;)
Bom, na verdade, ele não está sendo “trazido de volta”. Ele está malandramente protelando sua “ida”. Na história, ele forjou a própria morte, visando escapar da polícia e justiça, mas antes efetuou um upload de suas memórias e consciência para aqueles supercomputadores, que por sua vez foram enviados de volta em download para o cérebro de um jovem. Uma operação complexa e arriscada, envolvendo milhões. É algo além da troca de cabeças. É o upload cerebral.
Boa!!!!
Bom conto. Lembrou “Frrejack”. Já pensou, se pudesse. um dia, talvez.
Valeu.
Corrigindo: “Freejack”. No Brasil levou o subtitulo de “Os imortais”. Com Emilio Estevez, Mick Jaegger, Anthony Hopkins, Renee Russo. É meio filme B, mas é bom.
Philipe, o número 998756 tem algum significado ou foi escolhido aleatoriamente?Joguino Google que me apresentou 106.000 resultados relativos a esse número. Mas fiquei com preguiça de vasculhar. hehehehehe
É um numero aleatório.
coloca uma continuaçao!
vai ficar bem legal!
e eu tinha escrito um texto bem legal enquanto treinava desenho, mas não é bem uma historia, então se eu te mandase dava pra colocar no site se achar legal?( tipo uma seção do leitor-autor)
Excelente! Você sabe escrever e desenvolver muito bem um roteiro… Consegue prender a atenção do leitor até o desfecho da estória. Concordo com outros leitores: a idéia de inserir personalidades famosas, algumas inclusives já idosas, da década de 50 e 60 foi muito boa. Se eu fosse um produtor de filmes, com certeza ia te contratar hehehe. Isso ia dar um ótimo curta ou quem sabe, uma série sci fi brasileira, já que no Brasil filmes de ficção científica ainda não são muito produzidos.. Eu sou um aficcionado por sci fi. Assisto a série Black Mirror que trata sobre projetos e idealizações de novas tecnologias, inclusive semelhantes à descrita neste texto e ao que o bilionário russo intenta fazer. Há um episódio na 4a. temporada desta série, chamado “Black Museum” . Quem tem Netflix sugiro que assista.