segunda-feira, dezembro 23, 2024

A caixa – Parte 34

Eu não sei quanto tempo ficamos nos beijando. Fui para outra dimensão. Aquilo fez tudo valer a pena; todo meu sacrifício.

-Opa, opa, opa! – O pai dela nos interrompeu. -Cabô, cabôôô…
Ficamos meio sem graça com o jeito como ele falou.

-Desculpa, seu Stênio. – Eu disse, meio sem graça.

-Olha, temos que ver esse ferimento no seu braço. – Ele disse, apontando.
Então eu olhei e vi que meu braço havia manchado um pedaço bom do sofá caríssimo dele de sangue.

-Nossa, me desculpa. Eu vou limpar… – Eu me prontifiquei a dizer.
-Calma, isso é o de menos! – Disse a Mara, olhando o corte feito pela bala. Eu ainda podia sentir o cheiro da minha carne queimada.
-Não está doendo? – perguntou o pai dela.
-Não… Eu… – Eu não sabia como que ia dizer aquilo, então recorri à manobra de sempre, inventei qualquer merda. – Eu sofri um acidente a um tempo atrás e perdi a sensibilidade neste braço.

-Ah. – Foi o que ele disse.
Mara subiu e trocou de roupa. Eu estava louco para conversar com ela, contar tudo que eu havia feito para conseguir tirar ela da caixa. Eu tinha visto na cara dela que ela não pretendia tratar do assunto “caixa” na frente do pai dela. Certamente temia – com razão- que ele pensasse que a filha dele estava louca. Ninguém iria acreditar em nós. Aquele seria nosso pequeno segredo.
Enquanto Mara se arrumava, o seu Stênio foi até o segundo andar e trouxe umas roupas. Um bermudão dele que dava dois de mim dentro, uma camisa e um casaco, porque estava começando a esfriar. Eu fui até o lavabo da sala magnificamente decorada e troquei de roupa com alguma dificuldade. Eu ainda não havia me habituado com o braço morto.
Precisei usar o cinto para apertar o bermudão. No espelho, vi que eu parecia um jeca, mas o casacão disfarçou um pouco o visual. Usei um chumaço de papel higiênico para estancar o sangue.
Assim que saí do lavabo, a Mara já estava na sala, com o pai dela. Cochichavam alguma coisa que não entendi, e logo pararam quando eu cheguei.
Mara deu uma sonora gargalhada quando me viu naqueles trajes.
-Nossa, que roupa é essa?
-Foi seu pai que me deu isso pra vestir.
-Qual é minha filha? Ele tá alinhado, pô. Esse pulôver da Lacoste…
-Pfff… Homens. – Ela riu. Não teve saco de explicar o quão descombinada era a seleção do pulôver e bermuda. O meu sapato que não tinha lé com cré e as meias de tênis que o seu Stênio me deu também me deixavam com cara de astro de circo… O palhaço, melhor dizendo.

O seu Stênio me levou no carrão dele até um posto de saúde nas imediações. Ali levei alguns pontos, limparam o ferimento, me deram uma vacina antitetânica e fizeram um curativo. O médico de plantão ficou meio intrigado com o fato de eu não sentir dor alguma, e nem conseguir mover o braço. Expliquei o papo do acidente, mas ele ainda estava curioso.

Felizmente, seu Stênio estava meio impaciente, e acabamos saindo fora sem dar muita conversa ao plantonista.
No caminho, ele disse que ia ter uma reunião importante no dia seguinte de manhã com ” os romenos”. Eu não entendi lhufas de quem eram “os romenos” e achei que talvez fossem alguém do trabalho dele. A parte dos romenos eu não entendi, mas compreendi de imediato o teor daquela frase. Ele não pretendia me levar para a casa dele. Estava tarde, já eram quase dez da noite, e ele não estava disposto a perder mais tempo comigo.
Eu perguntei se ele poderia me deixar num ponto de ônibus, mas ele insistiu em me levar em casa. Claro que o coroa estava querendo ver onde o potencial namorado da filha dele morava.
Indiquei o caminho, e dei graças a Deus mentalmente pelo sacrifício de morar num lugar melhorzinho.

Enquanto guiava, no caminho, Stênio fez a pergunta que eu mais temia:
-De onde vocês se conhecem mesmo?

Eu estava no banco da frente, ao lado dele, e a Mara ia atrás, sentada no meio. Eu não conseguia olhar para ela para ver o que iriamos dizer… Pensei em dizer que era do meu trabalho, mas antes que eu dissesse qualquer coisa, ouvi a voz dela.
-Nos conhecemos numa viagem…- Ela disse.
Ok, aquilo não deixava de ser verdade de certa forma.

Quando chegamos ao prédio, Stênio estacionou o carrão na calçada.
-Chegamos.
-Muito obrigado, seu Stênio…O senhor foi muito gentil.
-Que isso, Anderson. Eu que peço desculpas. Não gostei da atitude daquele rapaz. Nunca fui com a cara dele… Mas não imaginava que ele seria capaz de… De…
-Tudo bem, pai. – Disse Mara.
Descemos os três. Eu dei a volta no carro e apertei a mão do senhor Stênio. Enquanto ele apertava minha mão com aquela mão musculosa, em voz baixa, tivemos uma pequena e rápida conversa, que Mara fingiu que não estava vendo.
-Não quero que o senhor tenha uma má impressão, senhor…
-Relaxa garoto. O que você fez por mim hoje não tem preço. Eu achei que ela ia ter outra crise.
-Eu amo sua filha, senhor.
-Faça ela feliz. Só isso que eu te peço. – Ele disse, entre os dentes, mas olhando firme nos meus olhos. Pude ver a retidão de caráter e a seriedade daquele homem.
Eu apenas concordei com a cabeça, como um soldado que recebe uma ordem de general.

-Olha, toma o remédio direito hein? – Ele disse em voz mais alta.
-Sim senhor. Pode deixar.
-E aparece lá no sábado. Vamos fazer um churrasquinho na beira da piscina… A piscina você já conhece, né? – Disse o homem, rindo, enquanto voltava para o carro, afim de nos dar mais privacidade.

Concordei. Dei a volta no carro e a Mara estava me esperando, encostada na porta.

-Então é isso. – Eu disse. Ela deu um passo a frente e me abraçou.
Nos beijamos novamente.
-Tive medo que você não fosse real. – Ela disse.
-Foi tudo real.
-O que era aquele lugar? Eu acordei…
-No hospital. Eu sei. Eu fui te ver… Aconteceram mil coisas. Algumas bem ruins.
-Como você saiu?
-Eu consegui escapar, mas não dá pra contar agora… É muita coisa.
-E o bicho? Aquele troço…
-Morreu. Mas você saiu antes. Eu tenho muito pra te falar… Mas o seu pai ia me achar maluco.
-Ainda bem que você não falou nada.

-Vamos filha? – Gritou o coroa de dentro do carro, dando mini-buzinadinhas.
-Só um minuto, pai. – Ela respondeu, abaixando-se.

Trocamos mais uns beijinhos. Ela pegou um papelzinho e enfiou no meu bolso.

-Que isso?

-Meu telefone. Vai lá em casa amanhã? – Ela me perguntou.

-Vou sim. – Respondi prontamente.

O pai dela estava meio nervoso, e então não quis abusar e disse que era pra Mara ir. Demos um último beijo apaixonado e ela entrou no carro.
Eu fiquei igual um bocó acenando da calçada até eles sumirem na esquina.
Assim que o carro saiu eu ouvi uma coisa estranha:

-Psiu! – Era uma voz grossa. Me assustei pensando que era a velha, mas não era. Era o velho.
-Bonitinha a garota. -Ele disse.
-Leonard!
-Tudo bom com o senhor? Que foi isso aí?
-Levei um tiro.
-Porra, garoto! Você tem o dom de se meter em confusão, sabia?
-… O que você quer, Leonard?
-Shhhh… Calma. – Ele disse. Então, pegando um saquinho com o que parecia biscoito de polvilho esfarelado, derramou um círculo na calçada. – Entra. – Ele disse.
-Aí?
-Entra logo, porra! – Leonard disse, me puxando com sua eterna impaciência.
-Pra que isso?
-Nossa proteção. – Ele disse. – Nem os gênios, os elementais, nem demônios invisíveis podem entrar ou ouvir o que falamos aqui dentro.
-Tá, fala logo…
-O cara… O cara que mora com você.
-O que que tem? O dome dele é Cabelinho…
-Ele não é ele.
-Ah, isso eu notei logo que o vi.
-Que bom. Fiquei com medo que você não percebesse. Eles vão colocar um demônio deles para te vigiar. O plano ainda continua de pé, não é?
-Sim. Claro. Eu tenho que atrair a velha…
-Olha, escuta bem… Elas estão preparando alguma coisa grande. Maior do que amais havíamos visto ate agora. Temos dois outros caçadores seguindo à distância duas bruxas. Elas estão com comportamento estranho.
-Como assim?
-Ainda não sabemos exatamente o que é que elas estão a invocar, porque o que elas estão fazendo, não consta nos grimórios. Mas deve ter a ver com a áugura. As bruxas roubaram crânios em cemitérios, e com eles elas fazem feitiços. Estão cobrindo os crânios com mel, embalando eles em papel de seda vermelho. Já colocaram quatro crânios em diversos locais da cidade.
-Mas… O que é isso? Macumba?
-Que macumba o quê, moleque?! – Leonard parecia bem bravo. – O que elas estão fazendo é limpando grandes áreas da cidade, formando um quadrante isolado. Isso é pra poder criar o portão. Elas já estão preparando a vinda da besta hedionda do inferno. Cada crânio funciona isolando a região onde é colocado. Uma vez colocado e executada a invocação, o lugar permanece por quase dois anos isolado de contra-invocações.
-Mas porque vocês não matam essas bruxas?
-Estamos monitorando elas, porque elas podem nos levar a áugura. A chave é a áugura. A coisa é grande demais. Sabemos pela medida da área isolada. As bruxas de baixo escalão não tem poder suficiente para trazer nada tão grande. Elas ão se unir. Se ajuntarão como baratas, e só então o poder delas será suficiente para abrir o portão. As cabeças estão se multiplicando pela cidade. Elas farão isso sempre que uma grande besta for invocada. Isso quer dizer que há pouco tempo. Você tem que atrair a áugura para o cemitério logo.
-Mas… Como vou fazer isso?
-Só tem um jeito…
-Hã.
-Você tem que matar o tal do cabelinho. -Ele disse, olhando para o chão.
-O quê???- Eu não queria ouvir aquilo.
-Você tem que por fogo nele! Aquele não é seu amigo.
-Mas… Isso é crime.
-É… Isso é um detalhe…
-Detalhe? como que é? Detalhe? Detalhe? Detalhe? Detalhe? – Eu entrei em loop.
-Shhhh! Fala baixo, porra! Você tem que por fogo naquela carne. Isso vai matar a carne. Sem ela o demônio não pode exercer sua função. Ele vai ser enterrado segundo os costumes. A Augura vai ficar sem vigilância. Ela vai ser atraída. Vai aparecer no cemitério em busca de outra carne. É nessa hora que eu pego ela. Mas precisarei da sua ajuda. O tempo se esgota, mas se esgota para todo mundo. Se elas começaram a preparar o terreno para a vinda do ser ctônico, ela também deve ter pouco tempo. Ela vai querer seus olhos, pois só com eles poderá atrair as irmãs… E tem mais.
-Mais?
-Sim… Segundo apuramos, ela está de posse dos tomos I e III do manuscrito da danação.
-Do que?
-São três livros. Os nomes são tomo I, Tomo II e tomo III. As pessoas normais não conseguem entendê-los. Esses livros foram ditados por um demônio goético invocado por um bruxo e alquimista chamado Alphonso Aziz em 1366. Cada livro é escrito a mão em pergaminho, e tem cerca de 250 paginas. Uns mais, outros menos. Só se conhece o Tomo II, que é dividido em partes. O livro não se revela para as pessoas comuns, mostrando símbolos e letras desconhecidas para os viventes. Isso porque é escrito na língua dos mortos. Mas certas classes de demônios e seres sobrenaturais podem ler o livro, e traduzí-lo aos viventes, mas não obstante, diz a lenda, que os que ouvem e não estão preparados, se tornam loucos.
O tomo II foi roubado há muitos e muitos anos atrás, e acabou se perdendo. Em 1912 ele reapareceu, comprado por um livreiro polonês, que ao que sabemos, o adquiriu de um usurpador do espólio de um nobre inglês que havia enlouquecido. Desde então o tomo II do manuscrito da danação recebeu o nome de manuscrito Voynich em homenagem ao homem que o comprou. O livro foi parar na coleção da biblioteca de Yale nos Estados Unidos.
Nós sabemos que parte da chave para o mistério sobre a invocação da criatura ctônica está no tomo III, que é o bestiário. Ali estão os nomes de boa parte, senão todas as criaturas ctônicas. Sem matar a áugura, não chegamos aos manuscritos da danação… E é aqui que você entra.
-Mas…
-Sem “mas”! Ou você me ajuda a matar esse monstro, ou o nosso mundo vai acabar e acredite em mim quando digo, vai acabar rápido!
-Mas não tem um jeito de fazer isso sem cometer um crime? – Perguntei, meio ressabiado.
-Você se preocupa com uma vida… Eu me preocupo com todas as formas de vida na Terra. Además, seu amigo já está morto. Aquilo lá é só um corpo reanimado por forças sobrenaturais. Se voc~e não o matar, certamente ele vai arrancar os seus olhos quando você estiver dormindo…
-Muito animador.
-Bom. Era o que eu tinha a lhe dizer.
-Tá… Digamos que eu aceitasse fazer essa loucura.
-Você esteve na caixa, você sabe que não é loucura.
-Ok… Digamos que eu aceitasse o serviço. Como vou me comunicar com você?
-Não se preocupe com isso. Eu aparecerei na hora certa. Concentre-se na sua missão. Mate o corpo do seu amigo. Enterre-o e quando a augura aparecer, jogue o sangue nela.
-Hummm.
-Vai fazer ou não?
-…Vou.

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Philipe Kling David, autor de mais de 30 livros, é editor do Mundo Gump, um blog que explora o extraordinário e o curioso. Formado em Psicologia, ele combina escrita criativa, pesquisa rigorosa e uma curiosidade insaciável para oferecer histórias fascinantes. Especialista na interseção entre ciência, cultura e o desconhecido, Philipe é palestrante em blogs, WordPress e tecnologia, além de colaborador de revistas como UFO, Ovni Pesquisa e Digital Designer. Seu compromisso com a qualidade torna o Mundo Gump uma referência em conteúdo autêntico e intrigante.

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Comentários

  1. Citar algo do mundo real é sempre um bom tempero! Muito bacana a maneira como um absurdo drama pessoal evoluiu para uma absurda corrida contra o fim do mundo!

  2. Sabemos que o Cabelinho não é o Cabelinho, mas ter que “matar” o próprio amigo não será nada fácil para o Anderson. Essa eu quero ver, quer dizer, ler. rs

  3. EIA, PHILLIPE! Lá vem você de novo!
    “Lé com Cré, essa eu ainda não conhecia!
    “Grimòrios, crânios com mel, manuscrito da danação (voynich)! Caramba! Voce é muito imaginativo, mesmo!
    Continue, continue!

  4. Só eu que acho fera quando ele fala “seres ctônicos”?

    A história continua perfeita! Eu acho que o Anderson é tipo um Neo do Matrix. Aliás, é uma boa sugestão, ele no final virar algum tipo de guardião.

    Aliás, já que tá botando espiritualidade no meio, ele podia ser iniciado em alguma coisa (como os rituais de iniciação do antigo egito) e com isso passar a ver o lado dos vivos e dos mortos, e adquirir novas habilidades.

    Ele pode se tornar um parceiro pro Leonard.

    • O Leonard tem um parceiro em cada história, mas no fim devolve eles pra “vida real”. Acho qu’ele não quer ver mais ninguém carregando o fardo que ele carrega…

      • Sei lá cara, mas acho que se o Leonard for humano mesmo, ele um dia terá algum discípulo para continuar seu trabalho. Até porque, existem poucos caçadores como ele. Além do fato que Leonard estár ajudando Anderson que só. Provavelmente Anderson vai querer retribuir bem mais do que apenas queimar o “corpo” do amigo dele…
        E eu acho que Leonard é humano sim. :-p

  5. Finalmente, a estoria voltou a ficar legal. Até então, estava cansando. Cheguei a pensar em parar de ler. Mas agora parece que tomou fôlego de novo.

  6. Leonard é 100% humano e mortal, ele só tem previlegios por possuir todo esse conhecimento que a maioria das pessoas de seu universo ignora. Acho que ele estara morto antes da virada do milenio, de morte morrida ou de morte matada, afinal ele é um caçador, e certos dias tendem a ser da caça. Também acho que o Anderson só se tornaria uma especie de substituto do Leonard se a Mara morrer.

  7. Tô curtindo essa história. É de sua autoria? Como vcê não me enviou os últimos capítulos, só agora que estou lendo estes últimos e gostaria de comentar algo… Pô, Philipe… 4 crânios embalados com papel de seda vermelho? Acabei de ver uma reportagem no Yahoo sobre os crânios achados em SP, onde foram deixados em frente a consulados e igrejas Mórmons… Todos enrolados em papel de presente vermelho!

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