domingo, dezembro 22, 2024

As crianças da noite – parte 5

-Sangue?

As duas já se espremiam contra a parede. Mais e mais sangue entrava por baixo da porta.

Carlão estava ficando embebido no caldo escuro. Seus cabelos curtos estavam emplastrados de sangue.

Regina abaixou-se, passou o dedo no sangue e olhou na luz da lanterninha. Era sangue. Definitivamente.

-Mas… De onde isso tá vindo? -Perguntou Martina, toda trêmula.

-Não sei. Vem lá de fora.

-Se estamos nós três aqui dentro… Só pode ser… dela!

-Então ela sangra.

-Só pode.

-Mas então… Será que morreu?

-Não sei. Será? – Perguntou Martina. Ela tinha o semblante aliviado.  -Talvez ela tenha morrido aí na porta.

-É… Talvez seja isso.

Martina coçou a cabeça e perguntou: -O que você acha que ela era?

-Gente normal não era. Eu evito pensar nisso, mas sei lá. É tudo muito estranho.

-Rê, eu fico pensando…  como que uma menina assim de olho preto surge do nada. Bate na sua porta, pedindo pra entrar. Eu acho que ela é o diabo.

-Era, você quer dizer.

-Isso.

-Eu não sei, acho que não… Tipo se ela fosse o diabo não tava morta.

-Mas ela não morreu com o gancho que o Carlão jogou nela.

-Pode não ter acertado um órgão vital. Pode ser coincidência.

-E a porta? Ela arrancou a sua porta, porra!

-É… Isso é estranho. Sabe o que é mais esquisito?

-O que?

-Ela pedir pra entrar. Insistentemente. Noite após noite. Se ela derruba a porta e joga longe? Por que ela não entra?

-Deve ser tipo vampiro. Não tem aquele negócio que você tem que chamar o vampiro pra entrar?

-Se ela é vampira, quer o que no meu quarto? Sabe o que mais? Não tem dentão. Não faz sentido. E o olho preto? Vampiro não tem olho preto.

-O que tem olho preto é Et! -Sentenciou Martina.

-Extraterrestre? Tipo… Do espaço?

-Eu acredito!

-Você acredita em tudo, né? Demônio, Et, bruxa, vampiro… Até em disco voador.

-Pode ser uma criança híbrida, Rê. Eu li num livro que eles pegam as mulheres e misturam os genes deles com as mulheres gravid…

-Hã?

-…Nada. Nada. Desculpa. O que vamos fazer? Vamos abrir? O que a gente faz?

-Não. Vamos esperar um pouco mais. -Disse Regina.

-Mas por que Rê?

-Não sei. Não sei, Má. Acho precipitado. Vamos dar um tempo. Vamos ver o Carlão aí!

Martina concordou. Sentou-se na poça de sangue e colocou a cabeça de Carlão sobre suas pernas.

-Carlão? Acorda Carlão. Ei! -Ela falava baixo no ouvido dele.

Regina tentava iluminar com a lanterna, mas ela estava ficando fraca.

-A bateria deve estar acabando. -Disse ela, dando tapinhas na lanterninha.

-Acorda Carlão. Vamos!

-Sopra na cara dele. Minha diz que é tiro e queda.

Martina soprava no rosto do amigo, desacordado. Mas ele não esboçava nenhuma reação.

-A  pupila ta dilatada. Aqui!

-Eu estou ficando preocupada! E se…

-Não, ele tem pulso. Ó. Foi a primeira coisa que eu vi. Ele ta desmaiado mesmo. O coração parece que tá irregular.

-A gente tem que tirar ele daqui, Rê.

-É… Tem razão. A gente não pode ficar aqui no quartinho pra sempre.

-E aí?

Bom, se prepara, Má! Vou abrir no três. -Regina disse.

Elas assumiram posição. As duas junto a porta estreita sob a escada.

Vai! – Sussurrou Martina.

Regina apurou os ouvidos, tentando escutar alguma coisa. Mas só ouvia a respiração da amiga.

-Um… Dois…

Então elas ouviram uma coisa raspando a madeira. O som produziu um arrepio congelante na base da coluna de Regina, que subiu até sua nuca, eriçando-lhe os pêlos.

-Que isso? -Perguntou Martina com uma tremedeira na voz. Ela tinha os olhos esbugalhados, que iluminados pela lanterna estavam ainda mais estatelados.

-Não… Não sei.

O som da madeira sendo raspado continuou, devagar.

-Ai meu Deus!

-Calma, Má! Calma!

-Ai, meu Deus, ai meu Deus! Ave Maria, cheia de graça, o senhor é convosco…

-Calma, Má! Calma!

-…Santa Maria, rogai por nós, pecadores….

O som da madeira raspado continuou e então parou.

As duas apenas se entreolharam iluminadas pelo fraco facho de luz da lanterna.

-Pa-parou.

-Será que foi a reza?

-Não sei…

Então elas ouviram um soco na madeira. As duas gritaram de pavor.

-É ela! É ela! -Gritou Martina, descontrolando-se. Ela agarrou-se no braço de Regina.

-Não… Espera! Não veio dali. -Regina disse, tetando controlar a amiga. Mas Martina estava fora de si. Não ouvia, estava sacundindo o braço de Regina e a lanterna caiu na poça de sangue do chão.  Regina deu um tabefe na cara de Martina.

-Calma porra!

Martina caiu sentada no chão do quartinho. Estava chorando.

-O som não veio dali. Não foi daquela porta!

-Hã?

-Eu tava com a cara na porta. Minha mão estava na maçaneta. Não foi dali. Não teve vibração. -Ela disse, pegando a lanterna do chão e limpando o sangue na blusa.

-Então… De onde foi? -Perguntou Martina, limpando o rosto.

-Acho que… Acho que foi… Dali! – Disse Regina, apontando a outra porta, que dava para o porão.

As duas olharam para a portinha estreita nos fundos do quartinho. Então se entreolharam.

-O que? Que merda…

-Ela entrou? Ela tá aí dentro! É ela, Rê!

-Não… não sei.

Renata pediu licença à Martina e se aproximou da portinha. A porta estava trancada por fora, com uma simples fechadura de correr.

-Veio daqui… Tenho certeza.

-Shhhh! Vamos ficar quietas. Amanhã alguém vai dar pela nossa falta, Rê. Vão vir buscar a gente!

-Não… Tem alguém aí dentro. Acho que não é ela.

-É claro que é ela, Rê. Quem mais pode ser? É ela! É ela! Ela entrou ai!

-Ei. Shhh! Tá ouvindo isso?

-O que?

-Escuta Ó. Bota o ouvido aqui. É um… É um… Puta merda!

-É um choro de neném!

-Tem um bebê lá em baixo!

-Não! Calma. Calma! Não abre! Isso é artimanha do diabo!

-Eu tô ouvindo. Parece um neném, mas acho que pode ser sabe o que? Um gato.  -Disse Regina, segurando a fechadura.

-Isso explicaria o arranhão na porta. O gato pode estar preso aí.

-Será?

-Não sei. Parou agora. O som parou.

-Acho que pode ser um gato mesmo.

-Meu Deus, quase vomitei minhas tripas de medo e era só um gato. Eu adoro gatos e eles se metem em lugares estranhos mesmo. -Disse Martina.

Martina colocou a cabeça junto à porta. Começou a chamar o gato.

-Psss,psss,psss… Gatinho? Vem aqui… Gatinho? Você tá ai querido?

Então uma estranha voz de criança falou baixinho do outro lado da porta de madeira:

-Eu quero sair daqui!

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Philipe Kling David, autor de mais de 30 livros, é editor do Mundo Gump, um blog que explora o extraordinário e o curioso. Formado em Psicologia, ele combina escrita criativa, pesquisa rigorosa e uma curiosidade insaciável para oferecer histórias fascinantes. Especialista na interseção entre ciência, cultura e o desconhecido, Philipe é palestrante em blogs, WordPress e tecnologia, além de colaborador de revistas como UFO, Ovni Pesquisa e Digital Designer. Seu compromisso com a qualidade torna o Mundo Gump uma referência em conteúdo autêntico e intrigante.

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Comentários

  1. Muito massa, espero que continue assim e que não acabe logo. Dá emoção lendo, imaginando tudo, parabéns Philipe. Conheci o Mundo Gump faz 2 dias e viciei. Entro sempre para os posts, tudo interessante.

  2. Bom mesmo de ler à noite, com chuva caindo do lado de fora, alguns relâmpagos e trovões…

    Mudando o assunto e citando: “-Extraterrestre? Tipo… Do espaço?” Não, tipo da Terra mesmo… ET lá do Paraguay… rsssss…. essa foi a melhor até agora.

    Philipe, o conto está interessante, mas tô sentindo um cheirinho de “Lost” no ar…

    Muita gente – eu também – esperava um final fodástico para a série, com explicações mais condizentes com uma proposta “alien” e de ficção científica, do que a explicação metafísica e mequetrefe que deram. E com lacunas, ainda por cima.

    Espero que a conclusão justifique a espera, e que tudo não tenha sido um sonho; ou imaginação de alguém; ou que todo mundo morreu, e as “almas” se encontram em algum tipo de “transição”!

    No aguardo.

  3. Fala sério! Quando a voz diz eu quero sair daqui! meu telefone tocou… Quase tive um treco do coração!!! Meu Deus quase que vou dessa pra uma melhor… rsrsrsrs parabéns muito bem escrito e prende a atenção da gente.Abraço.

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