sexta-feira, abril 18, 2025

O dia da minha quase-morte

Eu não queria acordar. A verdade é essa.

Mas Murilo estava — como sempre — muito animado e ansioso.

Ele andava pelo quarto repetindo: “É hoje, é hoje…” e esfregando as mãos de um jeito quase patético. Era o dia do tão aguardado piquenique dos amigos.

Tivemos um longo processo de definição do melhor dia. Ficou combinado que seria no feriado de São Sebastião, padroeiro da cidade — ninguém teria aula.

Desci para tomar café e vi Murilo se empanturrando de dois pães com queijo. Nossa mãe, satisfeita, socava manteiga no segundo pão enquanto ele já terminava de devorar o primeiro.

Poucas coisas deixavam nossa mãe tão feliz quanto nos ver comendo.

— Tu ainda tá de pijama? — ele perguntou com a boca cheia.

Me arrastei até a mesa. Na noite anterior, eu tinha ficado até tarde lendo o livro que a professora de literatura indicou. No começo, achei um porre. Depois, a leitura engrenou, e eu não consegui mais parar.

Só fechei o livro quando, vencido pelo cansaço, percebi que meus olhos apenas pulavam de palavra em palavra, e os nomes dos personagens já não faziam mais sentido. As cenas e os ambientes começaram a se misturar aos meus sonhos esquisitos.

Em silêncio, servi café com leite na xícara. A voz da mamãe era estridente pela manhã, e isso me incomodava terrivelmente — mas não tanto quanto a rádio da cidade, que ela ouvia em alto volume pelas seis da manhã. Era o nosso despertador.

Mamãe praguejava sobre os feriados e sobre não ter direito a folga. Costurava para fora, numa oficina no andar de baixo da casa. Sustentava tudo com seu ofício. Era muito boa e requisitada pelas madames da cidade, especialmente pela mãe do Elvis, que todo mês deixava uma bela grana lá em casa com encomendas de vestidos de festa.

“Rico vive de festa em festa”, era o que ela sempre dizia. Foi aí que comecei a achar que seria bom ser rico também.

Mamãe me estendia um pão enquanto falava sobre cuidados, comportamentos e recomendações — até sobre galhos com taturanas.

Ela já havia feito um verdadeiro interrogatório. Na verdade, era tão boa em arrancar confissões que, se não fosse uma grande costureira, daria uma ótima policial.

Àquela altura, ela já sabia que íamos para a Ilha do Pelado, quem ia, os pais e avós de cada um, o que levaríamos de comida, e a hora que voltaríamos…

Prometemos nos comportar. Murilo revisou a sacola com frutas, sanduíches preparados por mamãe, sucos, copinhos de plástico e outras coisas.

Fui vestir meu calção de nadar, por cima uma bermuda e uma camiseta. Mamãe insistiu que levássemos um casaco, caso o tempo mudasse. Olhei lá fora: sol de rachar o coco às oito da manhã.

— Imagina como vai estar ao meio-dia! — exclamou Murilo, pegando a bolsa.

Fomos até o portão com nossa mãe. Pouco depois, o carro do pai do Elvis chegou com o motorista. Colocamos nossas bolsas no porta-malas. Lá dentro, uma cantoria e fuzuê. Tocava Leandro e Leonardo. Alguém tinha uma bola amarela enorme. Beijamos mamãe e embarcamos na bagunça.

Nos apertamos no banco de trás do Del Rey Guia branco. O motorista acenou para mamãe e seguimos rumo ao rio.

A Ilha do Pelado ficava bem no meio do rio que cortava a cidade. Já na margem, vimos o “filhadaputa-móvel”, como apelidamos o carro do Guico. Alguns outros veículos estavam parados em um estacionamento improvisado, num terreno usado como pasto e campo de futebol.

Assim que saímos do carro, avistamos algumas meninas atravessando as pedras que levavam até a ilha. Por sorte, o rio estava baixo — não chovia fazia semanas — e as pedras estavam bem visíveis, facilitando o acesso.

Descemos pelas pedras na mesma ordem do desembarque: eu, Murilo, Orelha, Ailton e Elvis — que viera sentado na frente com o Seu Tião, o motorista. Tião era um senhor simpático, bigode branco cobrindo a boca e uma careca que brilhava ao sol. Apesar da simpatia, boatos diziam que ele era um matador contratado pelo pai do Elvis. Fofocas de colégio, provavelmente.

Ele veio atrás, carregando as bolsas de comida.

Ao chegarmos à ilha, entre enormes árvores que ofereciam boa sombra, vimos as toalhas espalhadas. Marcelo Gordo já estava lá, bajulando Guico e colocando fitas de rock em um rádio 3 em 1 — um sucesso de aparelho, com reloginhos, equalizadores e duplo tape deck.

Perto de uma árvore havia uma toalha rosa com um banquete: bolos, salgadinhos, pastéis… Ao redor, sete meninas lindas.

Olhei em volta. Girlênio fazia embaixadinhas com uma bola, enquanto mais gente chegava. Nosso piquenique, antes algo íntimo, estava virando evento social da cidade. A cada ano, alguém trazia mais amigos. E o melhor: nenhum adulto. Só nós. Os mais velhos eram Guico e Girlênio. Seu Tião logo sumiu — pegou uma caixa de pesca e entrou na mata.

Entre os que chegavam, lá estava ela: Suzana. Veio com as sobrinhas do contador Eustáquio Schneider. Me olhou de longe. Não consegui sustentar o olhar. Ela foi até o Guico, abraçou meus amigos. Marcelo Gordo olhou pra mim com olhos arregalados, como quem diz: “Olha aí tua mina, mané!”

Logo me distraí quando Juninho começou a distribuir salgadinhos. Caímos ao redor da toalha da mãe do Elvis, contando piadas, rindo. Fomos jogar bola. As meninas ensaiavam vôlei. Juninho logo se infiltrou, criando o “meninos contra meninas”.

Participei de duas partidas, saí cansado. O calor era infernal. Talvez por isso o nome da ilha.

Confesso que o piquenique ter virado evento da cidade era interessante. Havia garotas novas. Tocava música, e a variedade de comida era muito maior que em anos anteriores.

Notei Guico, Elvis, Juninho e Marcelo cochichando perto do rádio. Não ia com a cara do Guico, mas como todos estavam lá, me aproximei.

Quando cheguei, pararam de falar. Ficou claro: falavam de mim.

Fiquei puto. Sentei perto de um saco de batatas fritas e fiquei na minha.

Girlênio apareceu com uma bola e chamou para jogar. Recusei. Estava com cara fechada. Quase ninguém falava comigo.

De um jeito estranho, toda aquela felicidade me incomodava. Pensei no Miro. Ele adoraria estar ali, jogando altinho com Juninho, Murilo, Girlênio…

Senti algo tocar minha mão. Me assustei. Era Suzana. Sentou ao meu lado, um pouco atrás, e tentou pegar minha mão.

— Oi. — disse, sem graça.

Minha vontade era ignorar ou confrontá-la, mas apenas respondi:

— Tubo bom?

Ela não disse nada. Apenas ficou ali, fumando. Notei outras garotas também observando os meninos. O altinho virara atração. Juninho se destacava, arrancando suspiros. Guico, de bermuda e sem camisa, exibia os músculos. Entendi o interesse.

Comecei a me sentir ridículo por estar ali, assistindo.

Girlênio se aproximou, cigarro na boca, jeito malandro.

— E aí? Falou com a Su?
— Falar o quê? Deixa quieto. Tô na minha.
— Sei lá, pô. Fala do vacilo dela. Ela te chifrou com o Guico.
— Não sou marido dela, nem dono. Ela é livre, porra.
— Tá, mas foi vacilo. Tu sabe.
— Tô nem aí, Girlênio.
— Mas tá aí todo macambúzio por quê então?
— Tava pensando no Miro.

Girlênio emudeceu. Baforou o cigarro em silêncio. Eu tinha rompido nosso trato de não falar nele. Mas eu não conseguia. Não conseguia parar de pensar no Miro no latão de óleo. A mensagem. A pegada no quarto…

— Ele tá melhor que nós, bacana.

Girlênio, às vezes, parecia mais velho do que era. Tinha dezessete, mas falava como se tivesse trinta. Serviu o vinho do Orelha em dois copos e disse:

— Vamos brindar ao Miro, onde quer que ele esteja.

Brindamos com copinhos de plástico.

— Até hoje não entendi aquela carta.
— Meu, esquece isso. Ó, deixa eu te contar uma parada…

Ali perto, os meninos organizavam uma nova brincadeira: cabo de guerra. Gritaram, chamando a gente. Girlênio respondeu que já ia, só precisava fumar o cigarro.

— Naquela hora que você chegou perto do Marcelo, a gente parou de falar. Tu viu?
— Claro. Tavam falando de mim!
— Baixa tua bola, mané. Nem tudo é sobre você.
— Então, qual era o papo?
— Ailton vai fazer 17. Tá armando um lance. Vendo quem vai.
— Hã?
— Nas primas. — disse, com um sorriso sacana.
— Nas primas? Na Parada Alegria?
— Isso. Lá perto da rodoviária.

Eu era virgem. Aquilo me deu medo. Mas não podia evitar sem dar margem para zoeira eterna.

— Não tenho dinheiro.
— Relaxa. O pai do Ailton vai fechar a casa. Tudo por conta do Zenildo. Mas só libera pra quem for maior de 15. Tu pode. Murilo, não.

— Porra, minha mãe marca em cima. Sair sem ele é impossível.
— A gente inventa um esquema. Pensa aí. Vai estar tudo fechado. Zenildo já falou com Dona Esmeralda. Sexta à noite. Mas tem que ser boca de siri. Ailton disse que vai ter prima só de calcinha e sutiã. Só escolher e subir pro quarto.

— Mas tem que… tu sabe? — perguntei, batendo uma mão nas costas da outra.

— Só vai quem quiser. Mas difícil é não querer. Já foi lá?
— Só ouvi falar.
— Cada gostosa… O Guico já foi. Tava contando como é quando você chegou.
— Hum… vocês só babam o ovo desse pau no cu, hein?
— Pensa aí. Mas não fala com o Murilinho. Juninho vai. Orelha. Eu. Guico. Elvis.
— E o Gordo?
— Gordo quer ir, mas é menor. Provavelmente vai. Melhor levar ele do que deixar espalhar. Marcelo é um saco quando encrespa.

Nisso, algumas meninas nos puxaram para o cabo de guerra. Como ser puxado por uma mulher é um evento canônico, fui fazer força. No fim, nosso time ganhou.

Depois, Juninho e Orelha tiraram as bermudas e pularam no rio. Com o rio baixo, formou-se um piscinão na lateral da ilha — o “poção”. A galera mergulhava ali, enquanto as meninas pegavam sol nas pedras.

O piquenique realmente se tornava um grande evento. As meninas estavam esticadas ao sol como lagartixas. Alguns meninos faziam algazarra, outras meninas, como Suzana, arriscavam uns mergulhos.

Fiquei pegando um sol na carcaça. Estava gostoso.

Marcelo Gordo me cutucou e apontou com a cabeça:

Era Juninho — de novo. Já aos beijos com a garota com quem dançara forró. Estavam numa das pedras. Um grupo de garotas ria e conversava com Guico ali perto.

— Juninho é foda. — disse Marcelo, sem tirar os olhos. — Não perdoa uma.
— Ou, vê se disfarça, meu. Olha pro outro lado.

A coisa virou um “liberou geral”. Tensão sexual no ar. Casais se formavam. O fim da tarde se aproximava. Teríamos umas duas horas para beijar na boca.

— Eita porra! “Alá”! — Marcelo virou o rosto.

Era Suzana, abraçada com Guico. À vista de todos. Se beijavam.

Tentei disfarçar o gosto amargo com mais vinho. Mergulhei no poção. Marcelo mergulhou também.

Eu, Orelha, Ailton, Murilo e Marcelo estávamos avulsos. Nenhuma menina interessada. Ficamos brincando no poço.

Brincamos de atravessar nadando. Mas, talvez por causa do vinho ou do calor, tive uma câimbra brutal no meio do poço. Afundei como pedra.

Não conseguia mexer as pernas. Algo me puxava para o fundo. Ninguém notou.

Fui perdendo as forças. Debatia-me, mas não sabia mais onde era cima. Estranhamente, não senti medo. Me conformei. Ia morrer no piquenique.

A escuridão me envolvia. Uma sensação de leveza. Uma voz dentro da cabeça disse: “Não é a sua hora.”

Tudo se apagou muito rápido. Então senti algo puxando minha perna. Era o Miro. Eu sabia. O Miro estava lá. Ele estava comigo no fundo. O Miro foi a ultima coisa que vi, ou acho que vi, não sei. Apaguei de uma vez.

Mas aí, veio uma pancada forte, meus ouvidos captaram gritos distantes.  Gente falando como se estivessem dentro de um armário. Eu não entendia o que eles falavam. Senti dor ao raspar a perna numa pedra. Percebi confuso que alguém me sacudia. Abri os olhos: Guico fazia massagem no meu peito. Estava na beira do rio, cercado de gente.
Ao meu lado ouvi mais claramente umas meninas que choravam.

Gritei:

— Mas que porra é essa, malandro?

Aí foi um susto só, mas todo mundo caiu na gargalhada.

Elvis contou que eu tinha “morrido”. Murilo me abraçava, desesperado. Girlênio disse que fiquei “do outro lado” por mais de três minutos. Mas Girlênio é exagerado pra cacete! Não dá pra confiar.

Concluímos que a cãibra e o vinho me afundaram. Guico percebeu e nadou até mim. Me puxou. Salvou minha vida.

Todos o cumprimentavam. Eu devia minha vida a ele.

Mamãe saberia. E aí, fudeu.

Minha quase morte decretou o fim do piquenique. Todos recolheram comida, toalhas, som.

Tossia. Meu pulmão doía. As pernas ardendo e um arranhão ardia nas costas.

— Você tá bem? — perguntou Suzana, ainda com Guico.

— Tô bem, valeu. — Respondi, fazendo joinhas com os polegares. Mal queria olhar nos olhos deles.

Murilo me trouxe uma toalha e roupas. Me ajudou a vestir, com Elvis.

— Porra, tu é foda mesmo. Só faz merda hein?

— Vai se foder! — retruquei, pensando na história que contaria à mamãe.

Voltamos aos carros. Começava a escurecer. Os mosquitos atacavam. Nos despedimos correndo.

No carro, ao som de Leandro e Leonardo, Murilo me olhou sério:

— Você tá bem mesmo?

Sussurrei:

— Enquanto eu tava do outro lado… eu vi o Miro.

Murilo se arrepiou. Limpou uma lágrima com as costas da mão. E ficou olhando fixamente pela janela.

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Philipe Kling David, autor de mais de 30 livros, é editor do Mundo Gump, um blog que explora o extraordinário e o curioso. Formado em Psicologia, ele combina escrita criativa, pesquisa rigorosa e uma curiosidade insaciável para oferecer histórias fascinantes. Especialista na interseção entre ciência, cultura e o desconhecido, Philipe é palestrante em blogs, WordPress e tecnologia, além de colaborador de revistas como UFO, Ovni Pesquisa e Digital Designer. Seu compromisso com a qualidade torna o Mundo Gump uma referência em conteúdo autêntico e intrigante.
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Comentários

  1. Legal ver você voltando a esse universo, quando comecei a ler, nem havia percebido que era, mas assim que vi o nome do Miro, logo lembrei. Acho muito maneiro você escrever sobre grupo de adolescentes ambientado nos anos 80/90, porque parece que você usa um quê de experiência própria e vivências nesse período. Adorei, sequência com uma história mais simples, mas escrita de maneira sensacional.

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