Em 1946, um fato marcante ocorreu no mundo da ilustração nos Estados Unidos. Uma competição nacional reuniu os maiores talentos da área, desafiando ilustradores a submeterem suas melhores obras para serem avaliadas por editores das principais revistas da época. O vencedor foi um nome surpreendente: John Gannam, um imigrante que não possuía formação acadêmica formal. Ele superou lendas como Norman Rockwell, um dos artistas mais icônicos da ilustração americana.
Mas quem foi John Gannam e como ele conseguiu derrotar Rockwell?
A Jornada de um Imigrante Determinado
John Gannam nasceu como Fouzi Hanna Boughanam em 1905, na pequena vila de Machghara, situada no Vale do Beqaa, no Líbano. Seus pais, fugindo de conflitos e distúrbios civis na região, decidiram emigrar para os Estados Unidos. A família viajou de navio a vapor e, ao chegar em solo americano, o pai de Gannam trabalhou como vendedor ambulante e mudou o sobrenome da família para “Gannon”, buscando uma adaptação à nova realidade.
Ainda jovem, Fouzi iniciou seus estudos nos Estados Unidos, mas foi forçado a abandoná-los aos 14 anos, após a morte do pai. Ele teve que assumir diversas tarefas para ajudar a sustentar sua família. Trabalhou como entregador de jornais e carregador de malas antes de conseguir um emprego como mensageiro na Crescent Engraving Company. Foi lá que ele descobriu sua verdadeira paixão: a arte.
Sem treinamento formal, Gannam observava os artistas da empresa enquanto eles produziam imagens para catálogos de vendas por correspondência. Inspirado por essas experiências, ele começou a praticar sozinho em casa, desenvolvendo suas habilidades durante as noites. Em 1926, aos 18 anos, ele decidiu se reinventar: mudou seu primeiro nome para John e adotou o sobrenome Gannam. Munido de um portfólio modesto, ele saiu em busca de uma oportunidade como artista profissional.
As Primeiras Conquistas na Carreira
John Gannam conseguiu suas primeiras tarefas aleatórias como ilustrador, mas logo encontrou um emprego estável em um estúdio de arte comercial em Detroit. Seu trabalho principal era criar ilustrações para publicidade. Apesar da falta de treinamento acadêmico, seu talento natural e dedicação chamaram atenção. Em 1930, sua reputação o levou a um estúdio maior em Nova York, onde ele começou a construir sua carreira.
Com o tempo, Gannam descobriu sua predileção pela aquarela, um meio considerado desafiador e pouco comum entre ilustradores comerciais da época. Enquanto muitos preferiam trabalhar com óleo, nanquim ou lápis, Gannam dedicou-se quase completamente à aquarela, dominando suas técnicas e explorando seu potencial expressivo. Suas pinturas eram frequentemente comparadas às obras de mestres como John Singer Sargent e Winslow Homer.
Reconhecimento e Parcerias Frutíferas
A sofisticação de suas aquarelas abriu portas para Gannam em diversas áreas. Ele começou a trabalhar com revistas como The Woman’s Home Companion, Cosmopolitan, Good Housekeeping e Collier’s. Em 1933, Gannam recebeu sua primeira encomenda do The Saturday Evening Post, marcando o início de um relacionamento duradouro e produtivo.
Além de ilustrar ficção, Gannam também conquistou o mercado publicitário. Sua arte conferia aos produtos um ar de elegância e refinamento. Um exemplo notável é sua colaboração com a Pacific Mills, para quem criou uma série de anúncios que capturavam momentos de conforto e luxo, sempre com um toque de arte refinada.
O próximo passo foi Nova York e, eventualmente, ilustração de revista. Ele recebeu seu primeiro manuscrito de Henry Quinan, da Woman’s Home Companion , seguido logo depois por trabalhos da maioria das outras revistas. Gannam sempre buscou pontos de vista novos e não estereotipados, e ele era constantemente requisitado por anunciantes e também por editores. Suas ilustrações para campanhas da Pacific Mills, Ipana e St. Mary Blankets são particularmente memoráveis.
Eventualmente ele flertava com a pintura de pin ups.
O Processo Criativo de Gannam
Gannam era conhecido por sua disciplina e perfeccionismo. Ele frequentemente passava semanas estudando formas de capturar luz e cor em suas composições. Era comum que ele realizasse vários estudos preliminares antes de iniciar a versão final de uma pintura. Seu objetivo era transmitir leveza e espontaneidade em suas obras — uma característica essencial para o trabalho com aquarelas, que não permitem correções fáceis como a tinta óleo ou o lápis.
Essa busca incessante pela perfeição, no entanto, podia ser desafiadora para editores e diretores de arte. Gannam muitas vezes perdia prazos, priorizando a qualidade sobre a velocidade. Ainda assim, seus resultados justificavam a espera. Ele conseguiu capturar a beleza e a complexidade de cenas cotidianas com uma maestria que poucos conseguiam igualar.
Ele foi um estudante ao longo da vida dos efeitos da luz e da cor. Muitas vezes, um problema em particular o preocupava por meses enquanto ele tentava inúmeras variações. Ele perseverou até ficar satisfeito com efeitos como a luz do sol e pedras submersas na superfície de um riacho de montanha, ou o brilho de uma fogueira e seu reflexo no pavimento molhado, enquanto bombeiros lutavam contra um incêndio.
Gannam trabalhava em suas pinturas quase verticalmente, muito livremente, seu pincel carregado de água. Ele estava atrás do efeito amplo, mas exato. Ele estava pouco preocupado com detalhes ou com correções que poderiam ser feitas depois, se necessário, com opaco.
Gannam também expôs suas aquarelas e foi associado da Academia Nacional de Design, foi membro da Liga Profissional de Artistas Americanos, da Sociedade Americana de Aquarela, da Sociedade de Ilustradores e foi nomeado para o corpo docente e conselho de diretores da Academia de Artes de Danbury.
Uma pessoa incomum
Sempre há histórias apócrifas sobre personagens como John, e alguns disseram que ele raramente trocava suas meias. Se isso fosse verdade, talvez o resto de nós troque as nossas com muita frequência. Há pelo menos uma história bem curiosa sobre ele que foi testemunhada por varios ilustradores. Ele não tinha papas na língua, embora não fosse muito de falar. Em conversas, costumava ficar calado vendo os amigos baterem papo e se divertia fingindo ser o bobo, fazendo perguntas idiotas de propósito. Mas eventualmente ele “metia o pé na porta”.
Esse caso dizia respeito a um jantar que o presidente John Holmgren organizou na Society para Bill Chessman quando ele saiu da Collier’s . Vários ilustradores que desenharam para “Chess” estavam lá. Gannam, conhecido por suas belas mulheres, era invariavelmente contratado por Chessman para pintar cavalos em filmes de faroeste. Depois que todos os discursos chorosos e outros foram feitos, Gannam se levantou em sua estatura completa de um metro e sessenta e cinco e fez o discurso principal da noite:
“Sempre pensei que Chessman era um filho da puta, e ainda penso assim!”
Um Legado Duradouro
Gannam faleceu em 1965, aos 59 anos. Apesar de sua vida reclusa e da pouca informação sobre sua história pessoal, seu trabalho continua sendo reverenciado como um exemplo de excelência na ilustração. Sua dedicação à aquarela e seu compromisso com a arte o estabeleceram como um dos grandes mestres do seu tempo.
Ao longo de sua carreira, John Gannam demonstrou que o talento, aliado à perseverança, pode superar qualquer barreira. Ele não apenas venceu um dos maiores ilustradores de todos os tempos, mas também deixou um legado que continua a inspirar gerações de artistas.
Artes de John Gannam
Canon Inc
Um primor essas ilustrações. Ele capturava “momentos” muito muito bem. Dá pra ver bastante a influência do Sargent no estilo dele também, principalmente nos cabelos – o Sargent fazia cabelos assim também, comunicava muito do volume e forma só com algumas pinceladas.
Se puder faz mais posts de artistas assim! Adorei conhecer.
Farei sim. Hoje mesmo vai ter!