A cadeira obscura – Parte 15

Renato pegou a cadeira embalada em plástico bolha e atravessou a rua. Tocou a campainha da mansão.

Não houve nenhuma resposta, e Renato ficou ali, plantado, por vários minutos a espera de que alguém atendesse. Ele só percebeu que havia de fato alguém na casa quando notou a cãmera de segurança se movendo e apontando para ele.

Minutos depois, um som de tranca ecoou e o enorme portão metálico se abriu. Surgia diante dele a figura de Seraph.

-Obrigado por trazer a cadeira no horário.

-Sem problemas. Aqui está.

-Você poderia fazer o favor de levá-la la para dentro? – Perguntou Seraph, sem desgrudar os olhos da cadeira.

Renato concordou e pegou a cadeira do chão. Foi um suplício atravessar o jardim, até as escadas da mansão. Uma vez lá dentro, uma nova porta de carvalho decorada estava entreaberta.

A mansão estava totalmente escura. Parecia um palácio por dentro. Somente um candelabro de cristal antigo iluminava a enorme sala com sua luz deficiente, imitando velas. A casa parecia um museu. As paredes repletas de quadros antigos, e o piso era de uma madeira que Renato – habituado a ver toda sorte de madeiras – nunca tinha visto.

Tudo era excessivamente decorado com padrões florais, do piso todo marchetado em incrustações de pedras e madeiras diversas  às paredes, repletas de pinturas decorativas. Havia um enorme espelho de cristal antigo, quase barroco na sala e móveis estilo francês que os olhos clínicos de Renato notaram ser parte de um conjunto caríssimo. Tudo era obsessivamente adornado.

seraphhouse

-Por aqui por favor. Disse Seraph fazendo sinal para que Renato o seguisse.

Renato olhava em volta, com medo. A decoração da casa era extremamente assustadora, parecendo mais uma casa mal assombrada de filmes.

-Bela casa. – Disse, tentando disfarçar que estava quase colocando os bofes para fora com o peso da cadeira.

-Obrigado. Siga-me. – Respondeu Seraph, andando rápido à frente dele.

Renato sentiu um calafrio quando escutou a pesada porta de carvalho da sala principal bater atrás deles. A escuridão pareceu aumentar.

Seraph atravessou uma porta que conduzia a outra sala. Essa sala era redonda e as paredes eram vermelhas.

Nela, estavam quatro homens, todos vestindo ternos pretos muito bem cortados. Todos eles estavam sentados em cadeiras também escuras com aparência antiga. Os homens estavam fumando charuto e talvez por isso houvesse uma névoa densa na sala. O ar era quase irrespirável, mas Renato sentiu um cheiro estranho. Havia uma espécie de cheiro de defumador no ambiente, talvez incenso. O cheiro dos charutos que os homens fumavam quase que ocultava o aroma do incenso, mas não completamente.

Nenhum dos homens disse nada. Eles estavam sentados no fundo daquela sala sem móveis. Somente um grande tapete persa com arabescos intrincados decorava aquela sala estranha.

-Ele trouxe a cadeira. – Disse Seraph em voz alta.

A voz de Seraph ecoou nas paredes vermelhas da sala.

-Muito bem. – Falou o homem mais velho. Ele parecia decrépito. Devia ter perto de cem anos, com toda certeza. Sua voz saiu embargada, como um som fraco e vibrado, quase inaudível.

Renato colocou a cadeira no centro da sala redonda. E olhou para Seraph.

-Prontinho. Mais alguma coisa?

-Não vai desembrulhar? – Perguntou o alquimista, apontando a cadeira.

-Ah, sim. Tudo bem.

Renato abaixou-se e começou a desembrulhar a estranha cadeira. Levou alguns minutos para tirar aquela profusão de plastico bolha.

Quando ele finalmente se livrou do plástico bolha que encobria a cadeira obscura, notou que havia mais pessoas na sala do que antes. A gora todos estavam em completo silêncio olhando para a cadeira fixamente. Os velhos haviam se levantado de suas cadeiras de espaldares altos. Estavam parados, com os olhos fixos na cadeira ao centro do salão.

Renato sentiu um calafrio ao notar que bem atrás dele estavam mais três mulheres. E para seu espanto, todas as três eram iguais. Exatamente iguais. Eram replicas de Splendor, a mulher de Seraph.

Boa tarde. Disse ele. Mas nenhuma das mulheres de branco responderam. Elas estavam olhando fixamente para a cadeira. Pareciam em transe.

-Muito obrigado, senhor…

-Renato.

-Isso mesmo. Renato. Perdoe minha memória. Cinquenta anos não são cinquenta dias… – Disse Seraph. Ele abraçou Renato e disse.  – Venha, por aqui.

Renato trocou olhares pela última vez com os homens de terno. Eles estavam parados ao redor da cadeira, e agora olhavam para ele. Renato sentiu uma carga estranha, como se estivesse sendo um grande incômodo àquelas pessoas.

Seguiu Seraph, que como sempre, ia na frente, andando rápido. Seus sapatos lustrosos de couro italiano iam batendo nas madeiras do piso, ecoando pela enorme sala.

Seraph foi até a porta grossa de carvalho. Abriu e disse:

-Siga em frente até o portão de ferro. Vou abrir aqui de dentro.

-Sem problemas, senhor. – Disse Renato, apertando a mão fria de Seraph.

Ele fez como o alquimista ordenou. Seguiu em frente e atravessou o belíssimo jardim, muito bem cuidado.

O portão estalou, se abrindo. Renato deu uma ultima olhada naquela casa majestosa antes de fechá-lo atrás de si. Atravessou a rua até o carro. O coração estava batendo a mil por hora. Renato estava sentindo-se se ar. Achou por um instante que iria desmaiar. Estava tonto, tonto demais para lembrar-se de que estava há muitas horas sem comer.

Ele entrou no carro e notou o folheto de uma lanchonete. Era nas proximidades. Ele não se lembrava de ter pego o folheto, mas atribuiu o lapso de memória ao nervoso de levar a cadeira no horário para o cliente maluco. A fome urgia.

Rumou para a lanchonete, nas proximidades de um grande posto de gasolina perto da entrada da cidade. Renato abasteceu o carro e deixou o veículo aos cuidados de Tião, um frentista que ele conhecia, dizendo que ia ao banheiro do estabelecimento.

Atravessou a ruazinha atrás do posto e entrou na lanchonete. Seu estômago se contorcia de fome enquanto ele olhava maravilhado aquele monte de sanduíches das fotos. Renato pediu um especial de sanduíche com batata frita e um copão de refrigerante.

Minutos depois, ele mastigava com vontade, engolindo o delicioso sanduíche. Enquanto comia, pensava na casa belíssima por fora e tão sinistra por dentro. E aqueles homens estranhos? Os velhos com charutos na mão, as mulheres todas iguais. Todas brancas vestindo branco com pérolas. Pareciam três estátuas de marfim. Elas eram lindas, mas assustadoras. Não dava para dizer qual delas era a mulher de Seraph que ele havia visto na loja. Se parecia assombrosa a visão de uma delas a imagem de três gêmeas juntas era ainda mais intrigante.

Renato ficou lembrando de como aqueles estranhos ficaram olhando para a cadeira… Em toda sua vida de caçador de móveis velhos, ele nunca tinha visto algo tão estranho. Mas, era como se dizia, “negócios são negócios”. Ele estava com uma conta cheia de dinheiro no banco e um maluco estava decorando sua casa com uma cadeira feita de bode preto.

-Foda-se agora essa porra finalmente acabou. – Disse baixinho, sorrindo, enquanto pensava na dinheirama no banco.

Renato finalmente relaxou o corpo. O sanduba em seu estômago lhe dava uma maravilhosa sensação de completude e paz. A fome havia sido debelada.

Ele ainda empurrou as batatas fritas para dentro, antes de sair e ir buscar o carro.

-E aí? Quanto foi, Tião?

-Já tá pago.

-Hein?

-Seu tio pagou.

-Tio?

Tião apontou o carro, estacionado perto da máquina de calibrar pneus. Havia uma pessoa parada dentro do carro.

-Quem é esse cara?  – Perguntou Renato, apontando a caminhonete.

Tião não respondeu. Deu de ombros. Depois pegou um grande balde de água e saiu.

Renato foi até o carro.

Chegou devagar e viu um senhor idoso que lia o jornal.

-Boa noite. – Disse ao homem.

-Hum. – Respondeu ele. Estava com os olhos fixos no jornal.

-Ei. Moço.

-Só um minuto, guri. – Disse o velho, aboletado no banco do carona.

-Acho que o senhor se enganou. Acho que o senhor pagou a conta do carro errado.

-O velho não deu resposta. Continuou ali, lendo o jornal, calmamente.

Renato perdeu a paciência.

-Ei! Ei meu tio! Ou! – Gritou, batendo no capô.

O velho fez uma cara de quem estava puto. Baixou o jornal e o dobrou calmamente. Depois olhou bem nos olhos de Renato.

-Bem que eu achei que você era um idiota. – Disse.

-Eu te conheço? Vamos dando o fora do meu carro, coroa.

-Cala a boca e entra aí.

-Hã? Como assim? Sai daí! Não sei como que o Tião te deixou entr…

-Cala a boca e entra aí, moleque. Já falei. Tenho que falar quantas vezes?

Então, o jovem achou suspeita a estranha calma do homem idoso. Por uma fração de segundo a ideia de que aquele era um bandido armado lhe assaltou os pensamentos. Sim, só podia ser aquilo. Renato já tinha tudo claramente na cabeça. fazia sentido. O burro do Mark havia dado com a língua nos dentes para alguém sobre a bolada, e não demorou a aparecer um sequestrador.

-Ai caralho… Você vai entrar ou não? – Perguntou o velho, impaciente.

Renato obedeceu. Ainda tentou lançar um olhar de desespero para Tião, na esperança que o frentista notasse que algo estava errado, mas o frentista acenou alegremente de longe.

Renato entrou no carro.

-Tudo bem. Muito bem. Começou mal, hein moleque? Você é sempre assim? Esse jumento?

-Desculpa senhor… Mas eu não sei quem é…

-Não importa. Eu não estou aqui para ser seu amigo. Só quero uma informação.

-Já sei. O dinheiro. O dinheiro não está comigo, moço. O senhor está pegando a pessoa errada e…

-Dinheiro? Que mané dinheiro! Enfia o dinheiro no seu cu.

-Ué. O senhor não está me sequestrando?

-Quer calar essa boca? Puta que o pariu, mas será o benedito que você não consegue ficar quieto por uma porra de um minuto moleque?

Renato não respondeu. Ficou quieto olhando para aquele velho.

-Aleluia! Finalmente calou essa boca. Só quero saber uma coisa: Cadê a cadeira?

-Que cadeira?

-Vai fazer o retardado?

-A… Cadeira…

-É, porra. A cadeira do demônio lá. Você tirou ela da vila e trouxe pra cá. Cadê ela?

-O senhor é parente dos Venâncio? Sabia que eu falei com um parente vivo e ele me autorizou a demolir a casa lá em troca dos móveis. Tá tudo certo. Tem contrato e tudo mais.

-Por favor, garoto. Não complica a minha vida.  Vamos combinar uma coisa. Eu pergunto, você responde. Eu vou embora.

-Sim senhor.

-Cadê a cadeira?

-Eu vendi.

-Vendeu?

-Vendi para um sujeito, um sujeito rico.

-Ah meu caralho. Puta que pariu. Cheguei tarde nessa merda. – Disse o velho, socando o painel.

Renato começou a se desculpar. – Eu não posso falar dos clientes, é uma questão profissional e…

-Não precisa falar nada. Era um careca? Meio alto. Ofereceu mundos e fundos pela cadeira.

-Sim senhor.

-Puta que me pariu! Garoto, me diz uma coisa. É importante. Você não sentou naquela cadeira, sentou? Não mente pra mim!

-Não senhor.

-Esse careca que comprou. Ele tinha umas duas mulheres bonitas vestidas de branco com ele, não tinha?

-Não senhor. Tinha uma só.

-Uma? Só uma? Não eram duas? Tem certeza?

-Sim senhor.

-Escuta moleque. Você vai me dizer para onde levou essa cadeira. Vai me dizer agora.

-Sim, sim senhor. – Disse Renato, ligando o carro.

Renato dirigiu até a casa de Seraph. Durante o percurso, ele tentou sondar o velho.

-O senhor é da polícia?

-Não.

-Então como que o senhor me achou? Como sabia da cadeira?

-Cala a boca e dirige.  – Disse o velho, apontando na direção da rua.

Renato encostou diante do número 114 da São Leopoldo.

-Foi aqui que eu deixei a cadeira.

O velho não disse nada. Desceu do carro e contemplou o casarão.

-Então é aqui que você se esconde, né seu puto? – Disse, entre dentes.

-Posso ir embora agora, tio?

– Tio? Eu lá sou irmão da tua mãe?

-É só um jeito de falar. Desculpe. É que o senhor não me disse seu nome.

-E nem você o seu.

-Eu sou Renato.

-Leonard. – Disse o velho, apertando com força e firmeza a mão de Renato.  – Eu gostaria de poder dizer que é um prazer, mas com a merda que você fez tá, difícil.

 

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Leonard!
    Agora o negócio vai ficar sério!
    Leonard está no grupo do meus personagens preferidos da vida, e estava sentindo falta de novas aventuras dele.
    Quem será o Seraph? Pelo jeito são velhos conhecidos.
    Aguardando ansiosa a próxima parte.

  2. Ahhh Philipe.. Me faz dar um grito e comemorar a aparição do Leonard!!
    Vc consegue criar um mundo paralelo com seus contos tão incrível! Só consigo sentir isso com o Dr Who! Acredita que já imaginei vc escrevendo uns episódios? Ia ser “fantastic” kkkkkkkk

  3. Espetacular! “Suspeitei desde o princípio” quando o Tião falou que tinham pago a conta… hehehe muito bom!
    Ah! Encontrei alguns erros no texto, depois corrige já!
    “Essa sala era redonda e as paredes eram VERMELHAS.” … “A voz de Seraph ecoou nas paredes BRANCAS da sala.”
    “Disse Seraph. Ele abraçou Renato e disse. – VELHA, por aqui.”

  4. Philipe, você poderia fazer alguns bonecos do Leonard pra vender né?
    eu compraria na hora.
    muito boa a historia, adoro as historias de Leonard, são minhas preferidas.
    Abraço.

  5. Leonard… ai sim! \o/

    Esses putos que tão com a cadeira vão trazer o cão por ela… O Leonard vai precisar de reforços.

  6. Aii meu deus, saiu a parte 15, agora tem que sair a 16!!! O Leonard apareceu e a coisa vai ficar tensa!!

    Será que o Seraph é vampiro ou algo assim!!! Philip escreve, escreve, escreve!!! kkkk

  7. Nossa cara.. agr sim rsrs.. mas então.. Reparei num detalhe.. O véio Seraph comprimentou o Renato dessa vez.. mas quando eles se conheceram não.. estranho :\

  8. Com a quantidade de palavrões, não consegui deixar de imaginar o Leonard (que ainda não tem um rosto definido na minha cabeça) como o Olavo de Carvalho!

  9. Como eu estava ansioso por esse capítulo e como eu tô ansioso pelo próximo agora. Leonard, tão delicado quanto coice de mula, quero ser que nem ele quando crescer :v . Capítulo ótimo Philipe, no início achei que o Leonard não apareceria, mas depois do Renato ir para a Caixa, ficou impossível não desejar esse velho foda nesse conto.

  10. Aliás, parabéns pelo uso da metalinguagem: uma vez que Cadeira Obscura inicia com o Renato tomando uma cervejinha contigo, logo o Leonard apareceu na “vida real”?

  11. Olá Philipe, tenho uma curiosidade, porque nesse conto você resolveu incluir o Leonard? sempre leio os comentários e vc havia dito que não iria inclui-lo, eu não tenho nada contra ele! mas seus contos com ou sem Leonard sempre são ótimos.

  12. Philipe, por favor responde essa minha pergunta…

    Queria que voce falasse quais outros contros fazem parte desse Universo, além de A caixa, o Caçador, Em busca de Kuran, Crianças da Noite e o Trevo…

    Esse Universo onde se passam as aventuras de Leonard é fantástico

  13. Phill tô gostando muito da história, enquanto não sai os outros capitulos andei lendo as outras aventuras do Leonard. Me perdoe se vc já tiver respondido isso em algum lugar, mas gostaria de saber se existe uma sequência das histórias do Leonard, eu já li as criançasda noite e a caixa, nessa ordem. Obrigado e estamos ansiosos pelo desenrolar da história da cadeira obscura.
    Abraço.

    • OI Samuel, a ordem que existe é a que eu escreevi, mas essa não é uma ordem cronologica. POr exemplo, A cadeira obscura acontece antes de A caixa. A ordem e os posts são:

      1-O caçador
      2-A busca de Kuran
      3-A caixa
      4-As crianças da noite
      5-Trevo
      6-A cadeira obscura

  14. Pra variar, muito bom. Mas, pá vc não usa o Disqus?? Ia facilitar bem as discussões, é bem chato ter que ligar toda vez pra comentar, e no Disqus da pra ter um histórico legal dos comentários.

  15. Philipeeeeee, que legaaaaaal, o Leonard voltou, estou há um tempão sem passar aqui, volto e encontro LEONARD!!!! Sou mto fanzoca!!!! hahahahhaah amei, agora vou correr pra ler as outras partes do conto! Bjos, Juju

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