A caixa – Parte 23

Quando eu cheguei lá, a Cíntia já estava na praça.

Pernas cruzadas, com um tamancão vermelho grande, balançando para cima e para baixo. Como sempre, fumando um cigarro.
-E aí? Alguma notícia? – Ela me perguntou.
-Nada… Tudo na mesma. Tá estável… Respira com aparelhos. Os medicos ainda não sabem a gravidade da lesão. – Respondi.
A Cíntia era a garota que o Cabelinho tava afim, mas não conseguia comer. Eu a conhecia, socialmente, de mesa de bar, mas não era amigo dela. Eu sempre achei que ela me olhava meio com desdém, certamente ela conhecia melhor o Cabelinho, sabia o potencial dele e devia ficar intrigada como um cara daqueles era amigo de um sujeito como eu. Eu conhecia ela porque ele entrava na pilha de falar dela e eram horas e mais horas falando (quase sempre sozinho) como ela era interessante bonita “de fechar o comércio” e misteriosa.

Ela era bonitona mesmo, mas muito alta, com um cabelão de pantera, que ia até o meio das costas. Os olhos verdes que pareciam até de mentira, eram sempre bem pintados. Brincões de argolas prateadas emolduravam seu rosto. Era magérrima, bem branca, tão pálida que parecia uma vela. Mas sua palidez contrastava com seu cabelo e a boca vermelho escarlate que manchava a ponta do cigarro. Ela sempre estava de preto. De dia, de tarde, de noite… Cabelinho certa vez me disse que achava legal isso nela. Ele nunca tinha visto a Cíntia de outra cor de roupa que não fosse o preto. Naquele dia, ela estava até usando umas luvas de renda preta, que eu, pessoalmente, achava um troço cafona pra caralho.
Embora fosse linda, como o Cabelinho sempre dizia, o “conjunto da obra” era um pouco exagerado, e ela, não sei porque, me lembrava mais uma cantora de bordel do que uma filósofa da USP.

Sentei no banco perto dela. O sereno da noite caía sobre nós na praça.

-Todas as pessoas tem os seus maus dias. Mas esse, de longe, foi um dia péssimo. – Eu disse.

A Cíntia me estendeu um maço de cigarros em silêncio. Levantei a mão espalmada em recusa.

-Eu parei.
-Se mudar de ideia, está aqui. – Ela disse, colocando o maço no banco da praça, entre nós dois.
-SAMU, médicos, vizinhos, meu melhor amigo nesse estado.
-É foda…
-Desculpa ter te chamado.
-Não, tudo bem. Você fez o certo. – Ela disse. E emendou: – Você tá acabado.

Claro que estava. Eu havia perambulado atrás deles o dia todo. Depois que o Samu resolveu fazer a “remoção”, foi o tempo de pular do sofá, futucar o armário dele em busca dos documentos e carteira do plano de saúde… Fui parar no pronto-socorro. Tentei me comunicar com a família dele, lá de Campo Grande, mas só consegui falar com uma tia. Custei a conseguir a transferência para a Santa Casa. Precisei usar um dos contatos do jornal. Logo eu,m que detesto pedir favor. Mas pelo Cabelinho faço qualquer coisa.

-Pois é. Acho que estou. Foi puxado. Que horas tem?
A Cíntia puxou a manga do casaquinho e viu a hora: – Três e quarenta. – Então acendeu mais um cigarro na guimba que já ia jogar fora, com um peteleco.
-Foooda… Foooda. – Gemi, praticamente deixando escapar sem querer.
-Calma, ele vai sair dessa. – Ela tentou me tranquilizar.
Eu não tinha tanta certeza. O remorso me corroía por dentro. Eu sabia que a culpa era minha. Se eu não tivesse dado o alfinete da velha na mão dele, ele ainda estaria lá, jogando a fase bônus do Super Mario.
-Tomara. – Eu disse, tentando conter as lágrimas.

A gente estava sentado na praça, em frente ao hospital, porque o plano do Cabelinho não permitia acompanhante. E o estado dele era sério, por isso havia ainda pouca informação. O que me confortava era saber que o cabelinho tinha ido parar na caixa. Até que ele fosse esmagado, ou morresse de fome ou sede ou comido pelo mungo, o corpo aqui estaria “no compasso de espera”.
-Ele sempre fala muito de você. – Ela disse.
-É… O cara é gente boa. – Respondi. – Olha, eu devo passar a noite aqui hoje, então, se você quiser ir, pode ir. Tá tarde, né?
-Não, não. Tá safo. Vou te fazer companhia. – Ela disse.

Meia hora depois ela estava dormindo, com a cabeça dobrada para trás no banco. A mulher tinha quase um metro e noventa, e parecia uma girafa retorcida naquele pequeno banquinho da pracinha.
Eu ali do lado dela. Os olhos fixos numa árvore distante. Eu via a Lua passando por trás das folhas, iluminando a escuridão. Meus pensamentos viajavam entre memórias antigas e recentes. Aí ela gemeu, e se mexeu no banco.
-Ops, acho que peguei no sono, né?
-Tranquilo. O dia ta quase raiando.
-Bom, acho que pra mim já deu. – Ela falou, se levantando com dificuldade. Quando ficou em pé, toda zonza, ela parecia duas vezes maior que já era. Imaginei o casal bizarro que eles dois formavam e quase consegui sorrir.
-Valeu mesmo, Cíntia. – Eu disse.
-Olha, você tem meu telefone, né?
-Tenho… Eu tô com a agenda do Cabelinho… É… Para avisar né? – Falei, apontando a mochila no chão da praça.
-Qualquer coisa, me liga que eu venho voando, tá? – Ela se abaixou e me deu um beijo estalado na bochecha.
-Tudo bem. Vou ficar por aqui.
-Olha, cê precisa de alguma coisa? Uma grana?
-Não, não. Pode deixar. Tá safo. – Eu respondi, recusando a ajuda dela.
-Então tá. Tchau! – Ela falou.
Acenei pra ela em silêncio e via mulher enorme cruzar a praça, meio cambaleando sobre as plataformas vermelhas. Tava na cara que ela não ia aguentar aquele rojão num banco de praça tão desconfortável.

Fiquei ainda ali por quase uma hora, vendo o lento despertar do dia. As andorinhas surgiram como magica, voando por todo lado, fazendo acrobacias sensacionais. “Como deve ser bom ser livre assim…” – Pensei.
Nisso ouvi um assovio. Quando olhei para trás, do outro lado da rua, estava o enfermeiro que eu havia molhado a mão para me manter atualizado. Essa era, na verdade, a única razão para que eu passasse a noite no banco da praça. Eu não gostava de hospitais, mas até dormiria lá dentro, porém, a Cíntia não parava de fumar, e cigarro, só na praça. Acabei no relento mais pra não deixar a pretendente do Cabelinho no vácuo. Eu havia até me arrependido de ligar pra ela, mas na hora do “pega pra capar” lá em casa, eu não achei muita gente que pudesse me dar uma força. Se o Cabelinho fosse 10% mais organizado com a agenda dele, talvez eu conseguisse ajudá-lo melhor.

Levantei e atravessei a rua de paralelepípedos. O cara estava me esperando perto duma coluna, na entrada.

-E aí?
-Ele é firmeza. Vai sair dessa. – Respondeu o enfermeiro.
-Mas o que deu?
-Hemorragia cerebral. Estão desconfiando de um tumor. Vão fazer uns exames, para ver se vai dar sequela, se vai ter que operar… Mas só depois que o quadro estabilizar. – Ele disse, sem olhar na minha cara.
-Hummm. – Gemi em resposta.
-É uma merda, né, companheiro?
-Pois é.
-Essa é a tragédia da vida. Ninguém tá livre de ter um avc. Tá tudo bem e daí… Poft! Eu vejo isso todo dia aqui.
-Bom, Genésio, aqui está. Pega aqui. Aqui tem o meu telefone, esse é o de casa, esse é o do trabalho. Qualquer alteração no quadro você me avisa?
-Claro, Andeson. Deixa comigo, cara.
-Aqui. Mais um café aí.
-Não, não… Que isso.
-Eu faço questão.
-Não, não precisa.
-Pega, caralho!
-Ok então.Qualquer coisa te dou notícias. Vou ficar de olho. – Ele disse, meio acanhado por aceitar o dinheiro. Enfiou no bolso de trás e saiu, meio sem graça.

Saí dali e fui para casa.
Foi estranho chegar em casa e não ver meu amigo. O videogame ainda estava pausado, rolando na Tv. Na confusão, esqueci de desligar. A mancha de vodka ainda estava no sofá. O copo, que os vizinhos pegaram tava sujo sobre a pia da cozinha.

O quarto estava todo bagunçado. Roupas reviradas… Não tive tempo de fazer uma garimpagem cuidadosa.
Fui para o meu quarto. A cidade já tinha despertado. Carros buzinavam, ônibus aceleravam e a fumaça de fuligem dos escapamentos se misturava com os raios alaranjados do sol que se filtravam nos buracos das nuvens.
Ali no quarto, senti uma uta duma solidão. Olhei para as coisas, voltei-me aos meus pensamentos. Se era como a velha sem os olhos havia me dito, eu estava livre da caixa. Tragicamente, meu melhor amigo havia ido parar na caixa no meu lugar. Pensei que se ela me deu o alfinete, talvez ela pudesse reverter aquilo, tirar o Cabelinho daquela situação.

-Porra, porque não pensei nisso antes? – Falei sozinho.

Eu tinha chegado lá dormindo, mas sabia que era um convento enorme, com uma igreja barroca no fundo. Ficava em Poços de Caldas, não devia ser difícil de encontrar…
Eu precisava falar com a velha, pedir a ajuda dela. Estava disposto a salvar o meu amigo a qualquer custo. Se eu tivesse como falar com a Ana Paula… Ela conhecia a velha, era amiga do Cabelinho, quem sabe podia me ajudar, interceder por mim. Mas então, me lembrei daquela risada satânica que ouvi dentro do quarto dela. Aquilo tinha quase me matado de medo.
Fui até a estante, e na caixinha da caneta, peguei o alfinete. Ali estava a tal da Fíbula, um alfinete enorme, todo trabalhado e enferrujado. Era surreal que aquela merdinha tivesse a capacidade de mandar alguém para a caixa. Ou não? Ou será que como o próprio Cabelinho desconfiava, tudo não passava de um bando de parasitas querendo dinheiro, inventando enredos para me confundir? Eu mesmo não estaria me confundindo? Segundo o enfermeiro, Cabelinho tivera um AVC… Talvez nada daquilo tivesse relação com a caixa. Nem mesmo eu sabia se uma pessoa se espetando, teria o mesmo efeito de eu, o cara que tinha que estar na caixa, espetando a pessoa, que foi como a velha bizarra do convento me dissera que devia ser.

Eu estava muito cansado, esgotado. Falido. Deitei na cama para dar uma descansada na coluna, que queimava.

Apaguei.

Sonhei com a caixa. Acordei banhado em suor. No relógio já eram 16:00. Eu havia dormido a manhã e a tarde inteira. Levantei apressado, tomei um banho e voltei para o hospital.
Quando cheguei lá, encontrei com meu contato, o Genésio.
-E aí?
-Tudo igual, para melhor. Ele tá inconsciente ainda, mas já saiu da Uti. A pressão intra-craniana baixou nas últimas horas com os remédios. Mas custou conseguirem fazer efeito. Ele era viciado?
-Cara, desde que conheço ele, o cara toma tudo que tem direito. Mas ele gosta mesmo é dum beck e um goró, tá ligado?
-Ah… Tá. Entendo. – Ele disse. E então, me apontou. – Ah, falando nisso, tem uma coroa lá que é parente dele, ó.

Havia uma senhora muito distinta, sentada na recepção. Ela estava lendo uma revista barata de celebridades.
Me aproximei.
-Oi, boa tarde.
-Boa tarde. – Ela disse, baixando a revista, com uma expressão enigmática no rosto.
-A senhora é parente do Cabel… Quero dizer, do Marcos.
-Sou a tia dele. – Ela falou.
-Prazer. Eu sou o Anderson, eu divido o apartamento com ele. – Falei apertando a mão dela.

Após conversarmos algumas amenidades, contei por alto que ouvi ele cair e chamei os vizinhos. Omiti a vodka, a maconha, a Fíbula e até o super Mario.
Ouvi ela falar um pouco sobre a infância dele sem os pais, que morreram num acidente, e em como ela sofreu para criar o filho da irmã, sozinha, pois também era viúva. Ela parecia severa, rígida. Não demonstrava muito amor por ele, pois nem parecia estar muito abalada com a condição de Cabelinho. Aquilo me surpreendeu um pouco. Após alguns minutos de conversas, nos despedimos. Ela ia ficar naquela noite no hospital, porque esperava que ele acordasse, e teria que ir embora no outro dia. Era estranho me referir a ele como Marcos, e minha cabeça sempre me dava um alerta de que eu estava falando errado. Pra mim era Cabelinho e pronto. Mas para a tia dele, Cabelinho sempre seria o “Marquinhos”. Gravei uma nota mental de zoar o Cabelinho com aquilo se ele saísse da caixa.

Engraçado que o Cabelinho nunca tinha me dito que era òrfão. Descobri naquele dia.
Aquilo me deu uma nova dimensão, ainda desconhecida para mim sobre o meu amigo. Eu me lembrava de ouví-lo contando casos engraçados de como deixou os pais malucos de vergonha aos dez anos, quando gritou “capêêêêtaaaa!” no meio da missa, em Campo Grande. Me lembrei de quando ele me contou de uma surra que levou da mãe quando roubou duas latas de leite condensado e mamou tudo escondido no banheiro, e como foi difícil encarar a diarréia épica que se seguiu ao crime.

Sempre que ele ficava bêbado ele me contava essas histórias dos pais dele, de como eles tinham a horrível mania de se beijarem em público o tempo todo. Contava como o pai dele dirigia mal, mas como era “um coroa carinhoso e muito preocupado” e a mãe “beata e super chata, mas sempre um ombro amigo”. Eu passei anos ouvindo aquelas histórias e me imaginando sendo parte daquela família. Os famosos almoços de domingo que a mãe dele fazia, e que eram sempre com frango assado com batatas, coisa que ninguém aguentava mais… Os casos do pai que consertava televisão e que eventualmente levava uns choques, e saía puto, jogando alicate, martelo, parafuso pra tudo que era lado…

Era tudo mentira. Tudo invenção para mascarar uma infância solitária. Cabelinho bebia e inventava para si mesmo a história que ele jamais conseguiu ter. E era tão bom nisso que ele me convencia. Então, ao pensar naquilo tudo, eu chorei. E como eu chorei, porra.

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. A realidade de uma espera em um hospital pode ser mais aterrorizante do que um monstro em uma dimensão paralela.

    Os últimos três capítulos (incluindo este) foram insuperáveis.

  2. Bem, como eu já comentei antes, sobre o meu entristecimento pelo, fatídico acontecimento do azarado cabelinho, já também muito querido pela sua irreverencia muito peculiar, me sinto até um pouco aliviado por vislumbrar alguma melhora no seu estado e alguma chance dele escapar dessa situação.FAÇAM TORCIDA AÍ, PESSOAL, VAMOS TIRAR O CABELINHO DESSA. Ele não merece! Tem gente pior aí nessa história merecendo ir para a caixa,, mas não ele! Abraço a todos ….agradem aí o PHILIPE!

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