A caixa – Parte 24

Não pude evitar derramar algumas lágrimas pelo meu amigo. Eu sabia a merda que ele devia estar passando. Por outro lado, poucas pessoas estariam mais preparadas para se defrontar com o bizarro mundo da caixa além dele. Tive que tentar me conter, porque as pessoas do ônibus já começavam a me olhar com um certo estranhamento.

Eu não sabia o que fazer, nem para onde ir. Estava seguindo para casa, mas de súbito, levantei e desci do coletivo. Peguei um outro ônibus que ia em sentido Consolação. Havia muitas coisas que eu precisava saber e achei que seria uma boa confrontar Serge.

Graças às retenções da hora do rush, cheguei no Centro de Yoga e já era de noite.
Após tocar a campaínha com alguma insistência, a portinha se abriu lá no fundo e ele apareceu.

-Ah, é você? – Ele disse, meio aborrecido.
-Posso falar com o senhor rapidinho? – Gritei do portão.
-Só um instante que eu vou aí abrir. – Ele falou já entrando para buscar a chave das correntes enormes que trancavam o portãozinho.

Minutos depois estávamos na sala do centro de Yoga.

-Então, o que eu posso fazer por você, Anderson? – Perguntou Serge, com seu sotaque de garçom de restaurante chique.
Eu não disse nada. Sentei no sofá de couro, peguei a mochila, abri e tirei a caixa da caneta. Serge me acompanhou em silêncio, observando meus movimentos.
Quando abri a caixa e ele viu a Fíbula, deu dois passos para trás e precisou se apoiar na estante, para não cair.

-O que é isso? Como conseguiu? Não… Não é possível! – Ele gemeu com horror. O velho tinha o olhos arregalados, parecia que estava diante de uma coisa abominável. E talvez de fato, estivesse.
A reação dele foi bem estranha, e eu nunca imaginei que ele reagiria daquela forma.

-O senhor sabe o que é isso, não?
-Eu… Eu sei. – Ele disse, respirando fundo e alisando os cabelos brancos.

Eu fiz sinal para que ele se aproximasse. Serge chegou perto, mas se recusou a tocar na Fíbula. Resolvi rasgar o verbo para ver a reação dele.

-Eu sei a verdade. A velha me contou. Você matou o mergulhador para escapar da caixa. – Afirmei, apontando a fíbula para ele.
Ele estava estupefato, olhando para mim como quem via um fantasma.
-Não… Não é possível. ENtão, ela não foi morta? E essa coisa… Essa coisa foi destruída. Isso é loucura. Que tipo de brincadeira é esta, menino?
-Morta? Bem… Ela não parecia lá muito bonita, é verdade, mas morta ela não estava não.
-Onde você falou com ela? Eu preciso saber!
-Eu… Acho melhor guardar minhas informações. Não é isso que o senhor também faz? – Dei uma cartada para ver como ele reagiria.

Serge se aproximou. Sentou-se na poltrona que compunha o belo conjunto de couro.

-Parte do que te contei foi real. Você viu as marcas na minha carne.
-Sim senhor. Eu só quero saber a verdade.
-Fui parar na caixa, encontrei a mulher, saí. Mas então comecei a retornar continuamente para a caixa. Gradualmente a coisa piorou e comecei a coabitar este mundo e a caixa. Eu precisava me livrar daquela maldição. Meu estado de saúde piorava gravemente. Quando um médico que me examinava me deu pouco menos de seis meses de vida, devido a hemorragia, eu entrei em pânico. Viajei para a ìndia em busca de ajuda espiritual. Foi lá que conheci uma pessoa, da qual não posso falar.
-Não pode ou não quer?
-Não posso mesmo. Mas me limito a dizer que era um guardião de um templo dedicado a uma deusa chamada Kali.
-E aí?
-Essa pessoa me disse que eu devia procurar ajuda. Ela me falou que havia, na Grécia, uma mulher capaz de me ajudar. Mas ela nunca parava. Estava sempre em movimento. Eu precisaria achar esta mulher, e ela poderia me livrar da maldição. Ninguém sabia o nome dela, mas na ìndia, me disseram que ela era uma “áugura”. Eu gastei todo o dinheiro que possuía na Grécia, buscando pela tal áugura. Minha condição era cada vez pior, e antes que eu chegasse a encontrá-la, foi ela que me encontrou. Era uma velha bem idosa, que vestia-se com um manto escuro, muito sujo. As pessoas do lugar pensavam que era uma louca, uma mendiga ou andarilha, mas todos a temiam, e os cães nunca se aproximavam dela. Ela me disse que poderia me salvar da maldição se eu fizesse um favor a ela. Eu aceitei, pois naquela situação, moribundo, eu aceitaria qualquer coisa.
Eu mal podia andar, mas ali era tudo ou nada. Eu precisava ficar com bandagens no rosto, tamanha minha hemorragia. A velha me levou a uma caverna, onde escavou o chão com as mãos. Eu mal podia acreditar nos meus olhos, quando vi que ela tirou da terra, na minha frente, este objeto que está na sua caixa.

-Isso aqui?
-Exatamente. Ela pegou um pequeno punhal, cortou a própria carne, e deixou um filete de sangue pingar sobre este alfinete. Ela me entregou e disse que eu tinha que espetar uma pessoa com isso. A pessoa iria para a caixa e eu estaria livre para sempre. Mas precisaria pagar os serviços dela.
Agradeci e saí da caverna.

No caminho, passei mal. Achei que ia morrer. Então, vi um grupo de turistas que compravam tâmaras. Eu me aproximei de um deles e o espetei nas costas. Nós dois caímos naquela hora. Mas só eu acordei… E esta é a verdade.

-Então aquela conversa de Leonard, pessoas surgindo em cavernas da Indonésia, era tudo invenção?
-Bem, não exatamente. – O velho francês disse. Parecia que estava escolhendo com cuidado suas palavras.

O Leonard existe. E a razão pelo qual ele entrou na minha vida, foi justamente por causa meu encontro com a áugura.

-Ué. Não estou entendendo.
-Quando eu condenei o turista à caixa, usei a fíbula. Uma vez que a fíbula é usada, o maleficio foi praticado. A áugura se torna mais forte com o maleficio. Quando cumpri minha parte no trato, eu a procurei para saber o que devia fazer. Eu imaginava que nada poderia ser pior que matar alguém, mas tentei me enganar ao pensar que “matei para não morrer”. Tentei justificar meus atos e manter minha consciência sob controle. Voltei na caverna e ela já não estava mais lá. As áuguras nunca ficam no mesmo lugar. Elas estão sempre se movendo. Então, eu deixei de lado aquela história, voltei para a Índia. Fui viver minha vida. Em dois dias eu me sentia forte e sadio como nunca antes. Volta e meia, eu me lembrava do turista americano, mas gradualmente, eu o esqueci. Parei de pensar nele. Eu já estava vivendo no Brasil por cinco anos quando me encontrei novamente com a velha.
-E como foi? – Indaguei, curioso.
-Uma certa noite, acordei com sede. Era de madrugada. Fui beber água e lá estava ela, parada, perto da geladeira, na escuridão da cozinha. Quando acendi a luz e vi aquilo, meu coração quase saiu pela boca de susto.

-Nossa…
-Pois bem. Ela me pediu que eu matasse uma porca gravida em sacrifício a um ser ctônico.
-Ser o que?
-Um ser das trevas, vamos dizer assim.
-Ah. E você fez?
-Fiz, o que foi um grande erro. Ela me deu um retalho de couro com coisas escritas. Eram coisas que eu devia ler antes de cortar a garganta do animal. Era numa lua cheia. Fizemos numa cidade de Minas, num sítio de um aluno meu. No dia combinado, sacrifiquei eu mesmo uma porca prenha. Cortei sua garganta, enquanto dois funcionários meus seguravam o animal amarrado. A porca morreu, esvaindo-se em sangue. Depois, vimos o filhote se debatendo na barriga dela. O pedaço de couro que a áugura me deu dizia para abrir o ventre da porca tão logo o filhote começasse a se debater.
-E aí?
-Eu realizei o parto. Abri o bucho do animal com a faca de açougueiro. E para o meu espanto…
-O que?
-Nasceu uma menina.
-Hã? – Eu não estava acreditando no que ouvia.
-Nasceu uma menina. Exatamente. Com cordão umbilical, placenta… Tudo direitinho. Ela nasceu como nasce gente, mas de dentro da porca. Os empregados ficaram com tanto medo que fugiram e me deixaram sozinho na mata, com o porco eviscerado e o bebê nos braços. Era uma menina. Então, ouvi a Áugura. Ela apareceu atrás de mim. Me disse que estávamos quites, pegou o bebê, o retalho de couro com a invocação e levou.
-E o Leonard?
-Ele apareceu no dia seguinte, fazendo perguntas na porta do sítio. Eu ainda estava lá. Ele disse aos empregados que queria falar comigo. Era um senhor idoso, que andava com dificuldade. Ele tinha consigo um tipo de relógio, uma coisa curiosa, cheia de símbolos. Ele me disse que estava caçando a Áugura. Eu contei a ele que estivera com ela um dia antes. Contei da caixa e ele não se espantou. Aliás, quem se espantou fui eu. Leonard sabia bastante sobre a caixa. O “lugar além da realidade”. – Ele disse, fazendo as aspas com os dedos.
-Então é isso? Ele te disse que esteve lá… Mais o que?
-Leonard falou que são seis Áuguras. Ele havia matado duas. Mas ainda haviam quatro delas. Como elas estão condenadas a sempre se mover, é difícil de pegá-las. Também é difícil porque elas tem um grande poder. Uma grande força maligna. E estão ligadas, de maneira que quando Leonard alcança uma, as outras todas sabem onde ele está. Quando eu contei a Leonard da Fíbula, do turista americano e do nascimento do bebê de dentro do porco, ele ficou muito preocupado. Parecia fora de si, transtornado. Ele me disse que precisávamos destruir a fíbula. E foi o que fizemos.
-Mas como é possível? Olha aqui. – Eu disse, apontando para ela na minha caixa.
-Não sei. Isso eu não sei mesmo. – Falou Serge, coçando a cabeça. – Ele me levou até o banheiro da fazenda. Entrou no banheiro, me disse para contar até seis e entrar de olho fechado e bater a porta em seguida. Eu confesso que achei aquilo muito estranho, mas após estar na caixa, ver um bebê sair de dentro de um porco, eu estava aceitando tudo como natural. Fiz como ele mandou.
Quando eu entrei, bati a porta, abri os olhos e tudo que vi foi uma enorme escuridão. Leonard havia me levado com ele para a caixa. Ele estava lá, tocou no meu ombro. Me disse para não me preocupar. Eu estava desesperado. Meu medo era ficar lá para sempre.
Uma luz apareceu e era um tipo de pedra que ele tinha, que emitia uma luz fraca, mas que na escuridão nos permitia enxergar bem. Leonard então pegou uma faca que ele tinha, cortou um buraco no chão da caixa. E mandou que eu jogasse a Fíbula nele. Eu joguei e logo depois o buraco se fechou.
Leonard mandou que eu fechasse os olhos, e assim fiz. Quando ele mandou abrir, estávamos no banheiro do sítio. Ele agradeceu minha ajuda e disse que eu não poderia contar sobre isso para ninguém. Foi embora e eu toquei a minha vida… Até o dia em que recebi aquela ligação sua sobre o sadduh e a caixa.

Eu ouvi em silêncio. Agora tudo parecia estar mais claro. Serge falava sem rodeios. Também me abri com ele. Contei da moça que me levou no convento e da velha sem olhos.

-Sem os olhos? – Ela tinha olhos quando apareceu pra mim. – Ele disse.
-Ela está podre. – Eu falei. – Tinha minhoquinhas andando nela.
-Que abominação!
-Mas o pior, o pior é que meu amigo se espetou com isso aqui. E agora…
-Eu sei. Ele está na caixa. – Disse Serge com pesar.

-Então, eu preciso de ajuda. Preciso achar aquela velha, dar um jeito de tirar ele de lá.
-Meu filho, escute o que vou te falar, de coração: Esqueça isso. Vá viver sua vida. Seu amigo está morto. – Ele disse, com a mão no meu ombro.

Eu não podia acreditar em tamanho egoísmo. Eu não pretendia deixar meu amigo se foder por minha causa. Mas Serge era persuasivo.
-Você usou a fíbula. Está marcado para sempre. Um dia ela lhe cobrará a dívida. E se você não fizer, irá morrer. Elas sempre fazem isso.
Eu estava enojado. Não aguentei nem mais uma palavra. Joguei a caixa de caneta na mochila e fui embora. Ainda no portão, Serge me deu um último conselho:

-Esqueça isso, vá viver sua vida. O que passou, passou. Abandone todas as suas esperanças, pois elas são vãs.
Eu agradeci a atenção e parti, ainda mais perdido do que estava quando cheguei no Rashmann Yôga.

Já era tarde da noite. Voltei para casa, e não dormi direito, pensando o tempo todo que aquela velha diabólica poderia aparecer no meu quarto a qualquer momento.

Lá pelas tantas, sem pregar o olho, repassando apalavra por palavra da história sinistra de Serge, desisti de dormir. Eu só me acalmava quando pensava em Mara. Me dei conta que com o tumulto dos últimos dias, havia fraquejado em meu intuito de ir todos os dias no hospital em que ela estava. O dia estava quase raiando quando finalmente peguei no sono e dormi profundamente.
Acordei com um grito ecoando no meu apartamento. Levei um susto dos diabos. Estava ofegante. O sol estava raiando, tingindo o céu de avermelhado.
Fui até a sala e dei de cara com a velha. Estava sentada no sofá. Ela ficou parada, como uma estátua. Eu tremia de medo, feito uma vara verde. Me perguntei se não era mais um daqueles sonhos doidos com cara de realidade.

-O que você quer? – Eu perguntei a ela.
-Você usou o que eu lhe dei. Ainda falta uma. – Ela disse com um sorriso perverso entre os dentes podres.
-Não! Não! Eu não quero mais. Vou devolver esta merda pra senhora!
-Não tem volta, menino. Usou… Tem que pagar o favor. – Ela disse, com o dedo magro apontado para mim.
-Que… Que favor? O que você quer de mim, maldita? – Eu perguntei quase me mijando de medo.
-O seu olho esquerdo! – Ela falou, batendo com o indicador na palma da mão esquálida e cheia de feridas.

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.
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Comentários

  1. Ao ler as últimas linhas, até me doeu o olho! Brrrr… Sou português, acompanho este conto e mal posso esperar para ler a parte 25… Parabéns, Philipe!

  2. A cada capítulo dessa história o Anderson fica mais fodido do que já estava no capítulo anterior. Será que pra tirar a Mara da caixa ele vai ter que dar o olho direito?
    Philipe, A Caixa é uma história tão boa que eu me inspirei na parte em que o Anderson sai da caixa pela primeira vez pra escrever o pesadelo de um personagem de uma história que eu já estou perto de acabar.

  3. Sinistro. Anderson não devia ter ignorado o besouro falante. Agora ta ferrado. Essa parada do porco foi sensacional, eu nunca mais vou comer porco ou ir beber agua a noite sozinho na cozinha!

    Esse universo de Leonard esta tão repleto de criaturas diferentes que sempre me faz lembrar Hellboy.

  4. Philipe, dessa vez eu fiquei realmente com medo! Caramba… Será que o bebê é a Ana Paula? To louca pro Anderson se encontrar Leonard, pelo que vi ele vai ser o cara que vai tirar o Anderson dessa enrascada…

  5. Lá vem você de novo, PHILIPE, com “KALI, ÁUGORAS, SER CTONICO”, etc, só falta a criança saída da porca ser o “bebê de Rosimery”, rsrsrs! Mas tá ficando bom demais! CONTINUE PORQUE AGORA JA TÁ DANDO “QUEREDEIRA” DE MAIS! 25…26…27.. Cê ta fu……!Quem mandou começar…!ABRAÇO$!

  6. Philipe, desculpa pelo comentário nada a ver com a história, mas queria te avisar que toda vez que eu entro na página de contos pelo menu da home, ele cai na página http://www.mundogump.com.br/teste/ onde a série ‘A Caixa’ não aparece. Quando entro pelo link ‘Contos’ na página de algum conto, tá tudo normal.
    Adoro o MG, passo aqui todo dia há pelo menos 4 anos. Parabéns pelo blog!

  7. Vai ficar sem os olhos. Vai perder o esquerdo para ele, o direito para a namoradinha e o terceiro olho para o amigo… logo para o amigo… Kkkkkkkkkkkkkkkkkkk

  8. Cara, resolvi ler os 24 posts da Caixa de uma vez só hoje. Putz, Philipe! Só te digo uma coisa… Sensacional! Na boa… Alguém tem que filmar um dos seus contos! Os roteiros são eletrizantes!

  9. A imagem dessa bruxa é a imagem mais legal de ‘A Caixa’ (o “escuro” é mais significativo, mas essa bruxa é muito tri!).

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