A incompreensão da simplicidade

Eu seria um péssimo critico de cinema. Reconheço isso.

Sei que é assim, porque sempre, em 100% das vezes que me proponho a ver qualquer coisa audiovisual que seja, assisto com o espírito desarmado e a mente em branco, esperando para que minhas lacunas sejam preenchidas pelo trabalho alheio. Não exijo que um filme seja como aquela peça de tetris que vai cair no lugar exato que desenhei mentalmente para ela, e que caso não se encaixe nos meus pré-conceitos, considerarei uma peça defeituosa.

Sinto que é assim que muitos críticos assistem aos filmes e definem para o povo supostamente iletrado, mas que até por isso confia neles, o que é bom e o que não é. E pior, sentenciam o que deverá ser considerado bom e o que não deverá, estabelecendo as bases de qualidade futura de coisas que nem sequer foram feitas ainda. Talvez o louco seja eu de pensar que as pessoas podem perceber quando algo é bom e quando não é, com suas próprias cabeças…

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Este post surgiu porque ontem à noite, entre chuvas e trovoadas, resolvi assistir a um filme no Netflix. Depois de ver todos os episódios da série “Better Call Sal” – (Se você viu e gostou do Breaking Bad, veja. É crime não ver!) – resolvi ver um filme aleatório. Após ver um de zumbis radioativos dos anos 50 cuja maquiagem de monstro até meu filho Davi deve conseguir fazer melhor, cliquei aleatoriamente e comecei a ver Malena, um filme do Giuseppe Tornatore, o cara que dirigiu o clássico “Cinema Paradiso”.

Olha aí o trailer:

Malena é um filme de 2000, o que significa que não é uma obra recente, mas não cheguei a ver no cinema. Diante dos filmes que tradicionalmente passam nos cinemas, nos acostumando a explosões e perseguições, tiros, pulos de um prédio para outro, helicópteros escapando de zumbis, e muito barulho, fumaça e detritos voando pelo ar ante a luta de robôs colossais contra monstros que destroem cidades, um filme como Malena é quase como uma meditação comparada com uma micareta.

Eu não pretendo aqui contar a história do filme, porque acho sacanagem fazer isso. Mas caso você queira saber em detalhes pode ler a sinopse que conta a porra toda estragando a graça do filme na wikipedia. Mas resumindo muito, é só a história de um menino adolescente apaixonado por uma mulher.

Sinceramente, achei o filme bom pra caramba. Eis que hoje pela manhã, resolvi dar uma olhada no que se escreveu sobre o filme na época de seu lançamento, porque alguma coisa me dizia que os críticos meteriam o pau.

Não deu outra.

Grande parte das críticas ao filme seguem na linha de dizer que o filme é linear, simples, sem profundidade.
Com o perdão da palavra, mas:

ONDE NA PORRA DO COSMOS está escrito que um filme precisa ter profundidade para ser bom?

Um filme é um conjunto de fatores, e um desses fatores é a profundidade da história. Enquanto existe variação em todos os fatores que compõe um filme, como na fotografia, na trilha sonora, na ambientação, figurino, direção de arte, no caralho a quatro, os imbecis que fazem analises criticas de cinema pensam que “só vale” no mundo filmes de “profundidade”, e além do mais… Vamos parar e definir profundidade, porque complicar uma história enchendo-a de clichês é mole, o cinema de Hollywood é cheio disso até o talo. Agora, falta em muita gente compreender um aspecto que os orientais conhecem há séculos, e é originário do Zen Budismo. Chama-se Wabi Sabi, a arte da imperfeição.

Wabi Sabi é uma expressão exclusivamente japonesa, e não possui uma tradução concreta em português e nem em nenhuma outra língua no mundo. Ele constitui uma filosofia onde aprendemos a ver a beleza mesmo nas coisas imperfeitas, impermanentes e incompletas.
O Wabi Sabi significa aceitar a imperfeição, a assimetria, a irregularidade e a modéstia como atributos de beleza. Pelo caminho do Wabi Sabi podemos encontrar a beleza em tudo, até nas coisas mais insignificantes da vida, mesmo que estas estejam repletas de falhas e rachaduras. Wabi-Sabi, diz respeito às pequenas coisas escondidas, ao que é efêmero, aquilo que pela sua sutileza e evanescência, é invisível a um olhar mais comum.

Uma estética de simplicidade que se revela somente quando desapegamos das modernidades a que estamos envolvidos. Wabi Sabi reside nos detalhes discretos e esquecidos e é preciso ter muita humildade e sensibilidade para captá-los.

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Assim, quando esperamos que todos os filmes bons sejam repletos de mensagens, fundos, metalinguagens, reviravoltas, pontos de virada e resoluções metrificadas, estamos fechando os olhos à ideia de que as histórias simples também merecem o mesmo respeito das histórias complexas.
Vivemos num mundo que ama a complexidade e despreza completamente a simplicidade. Qualquer pessoa que tenha participado de alguma reunião de design entenderá isso completamente. As ideias tendem a surgir simples e vão gradualmente, à medida em que mais e mais pessoas se envolvem em algum projeto, se complexificando, rocambolizando até virar um fractal caótico sem início meio ou fim. As pessoas querem acrescentar, e muitas vezes, na busca de encontrar soluções para os problemas que se apresentam, tendem a “colocar mais e mais cobertura no bolo”. O mundo é como o doente que toma vinte remédios, sendo dez deles só para combater efeitos colaterais dos anteriores.

Suspeito muito que na elaboração de um roteiro que será filmado por um estúdio Hollywoodiano, dadas as escalas financeiras, alcance e marolas em todos os níveis envolvidos, a base da história deve passar por umas seis, sete mãos diferentes, e de quebra, ainda ganha adendos dos executivos e seus parceiros. Lembro que certa vez vi um programa sobre roteiristas e mostrou uma mulher que estava na décima sexta versão de um roteiro de comédia romântica que não fechava nunca, pois sempre que finalizava, alguém dava uma ideia super legal, mas que obrigava o roteiro a ser reescrito lá do início para encaixar aquela contribuição importante, às vezes que não mudava porra nenhuma na história efetivamente, mas que deixaria um figurão feliz por ter metido o dedo dele na história, “e sabe como é… Produtor executivo é Deus em Hollywood!”.

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Uma das coisas mais interessantes que aprendi com meu pai diz respeito à simplicidade. Meu pai é inventor e Engenheiro Civl. Assim, já vi meu pai criando muito, tendo várias ideias para as coisas mais loucas que você puder imaginar. Meu pai passa semanas e semanas tentando resolver uns problemas de todo tipo, e resolve. Só que ele resolve várias vezes o mesmo problema. Parece coisa de maluco, mas olhando de perto faz sentido. A mente humana não é desenhada para a simplicidade. Assim, é comum que a solução de um problema seja obtida adicionando complexidade num projeto. Mas muito provavelmente haverá uma outra solução, mais simples, mais elegante e direta, que uma vez alcançada, MATA INSTANTANEAMENTE qualquer ideia complexa anterior, diante de sua elegância. Mas atingir esta solução envolve um trabalho árduo de malhação neural, e requer tempo.

Se na Engenharia as soluções mais simples são melhores, na Matemática temos outros exemplos de como duas ou até mais soluções para um mesmo problema, são possíveis. Porém, encontrar a beleza enxuta de uma solução elegante é algo que todo bom cientista da Matemática persegue ao longo da carreira.

Yip Man com Bruce Lee
Yip Man com Bruce Lee

Os orientais tem quase que uma obsessão por esta otimização, e isso é algo que pra mim revela uma superioridade filosófica impressionante. Yip Man foi o mestre do Bruce Lee e uma lenda na China. Tem até filme sobre a vida dele. O cara era foda. E uma coisa que Yip Man demonstrava é este conhecimento da busca da simplicidade. A simplicidade é o núcleo de todo movimento complexo.
A forma como Yip Man descobriu isso é bastante interessante:

Yip Man na juventude, treinou com o Mestre Wah até o seu falecimento, três anos depois. Nessa época ele se mudou para Hong Kong para prosseguir os estudos de graduação. Jovem, e inconsequente, Yip Man achava-se hábil o suficiente para dar porrada em todo mundo. De fato ele era mesmo. E dava muita porrada. Diante da necessidade de se mostrar e se impor, ele vivia se envolvendo em brigas onde sempre vencia graças à eficiência de seu wing chun.
Isso mudou no dia que desafiaram-no a derrotar um velho de 50 anos de idade (naquela época alguém de 50 era um velho decrépito), que diziam ser bom em artes marciais.
Afobado, Yip aceitou imediatamente e procurou o homem para desafiá-lo.
O velho nada disse. Apenas sorriu e o olhou de alto a baixo. Então perguntou se ele havia treinado com o venerável Mestre Chan Wah Shun, de Fatshan e se ele já havia aprendido o Chum-Kiu (a segunda forma do estilo Ving Tsun).

Yip Man, focado em lutar, não deu a menor atenção ao que o homem dizia. Se tivesse, teria percebido que apenas um conhecedor do estilo poderia saber esses detalhes. Vendo que não havia outra alternativa, o homem disse que Yip Man poderia atacar como quisesse, que ele tentaria não machucá-lo.
Isso enfureceu o adolescente Yip, que atacou diversas vezes. O homem apenas esquivava seus golpes, os movimentos do velho eram enxutos, exatos, rápidos e precisos, e o jogou ao chão como um bobo, até que Yip Man reconheceu sua derrota.

O senhor finalmente se apresentou: era Leung Bik, o segundo filho do Grande Mestre Leung Jan. Leung Jan foi mestre de Chan Wah Shun, o professor do Mestre de Yip Man.

Yip Man se desculpou e solicitou que o aceitasse como discípulo. Dessa forma Yip Man concluiu os estudos do Ving Tsun aos 24 anos, quando retornou a Foshan. De volta à sua terra natal, foi acusado de desertor e de ter aprendido outro estilo de Kung Fu. Levou muito tempo para convencer seus colegas do incrível encontro com Mestre Leung.

Encontrar a simplicidade é como pegar uma pedra bruta repleta de informação que são as superfícies irregulares que roubam da pedra seu potencial e limpá-las, reduzindo-as à apenas as superfícies necessárias e simples. Chamamos isso de lapidação, prática que pode tornar uma pedra irregular num diamante espetacular.

As histórias simples, deveriam ser vistas como diamantes. Sob este aspecto dimensional, vejo Malena como um ótimo filme, muito justamente por sua simplicidade, que ao meu ver é proposital. Mestres não jogam água fora da bacia.
Falando em mestre, Malena é baseada numa história de um gênio chamado Luciano Vincenzoni, o cara que escreveu “O bom o mau e o feio” que todo mundo gosta, além de “Por uns dólares a mais”. O cara era tão foda, que conseguiu vender “O bom o mau e o feio” para o estúdio antes mesmo de escrever o roteiro, e fez isso na frente do Sergio Leone, que ficou impressionado com a lábia do cara. Não obstante, Vincenzoni escreveu o filme já vendido em apenas onze dias.
Esse filme Malena foi adaptado de um conto autobiográfico de Vincenzoni chamado “Ma lamore no”.

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Muito bom, eu me toquei que estava sentindo falta da simplicidade quando estava na sala de cinema assistindo ao ultimo filme do Transformers, acho que nunca vi nada tão escalafobético, minha mente deu um nó e com 20 minutos de filme eu já queria sair da sala. Se não me engano já assisti esse filme Malena, é bem bacana mesmo, um que segue esse estilo mais leve e achei legal também é “Chocolate”.

  2. Olha, esse filme Malena está classificado com 55% de resenhas positivas no Rotten Tomatoes (85% de resenhas positivas por usuários).

    Além disso teve 2 indicações para o Oscar.

    Então o filme não é considerado assim tão ruim.

    Ótimo texto sobre a simplicidade. Isso me lembra aquele exemplo contado pelo Mário Cortella de como engenheiros de uma fábrica de pasta de dentes gastaram uma fortuna para conseguir identificar as caixas que por alguma falha no processo não continham o tubo de pasta dentro, e removê-las da esteira. Fizeram um braço robô mecânico, entre outras tentativas milionárias. E aí perceberam que os operários não estavam usando a tecnologia, e perguntaram como eles faziam para retirar as caixas vazias. E a resposta simples: usavam um ventilador para empurrá-las para fora da esteira. Solução simples e eficaz.

    • Tem tb essa lenda da era espacial. Mais ou menos assim: Os EUA precisavam inventar uma caneta esferografica especial para o espaço, que pudesse escrever em ambiente de gravidade zero, etc… MIlhões de dólares em pesquisa, etc… finalmente conseguiram.
      Os russos: Usaram lápis.

      • Esses fatos dariam um post legal hein!

        Lembro de um que uma empresa aérea conseguiu economizar milhões de dólares colocando apenas duas azeitonas ao invés de três que eram originalmente servidas em sua salada durante o vôo. Acho que era mais ou menos isso rs

    • O incrível é que esse mesmo caso do ventilador aconteceu em uma fábrica de cerveja, numa de produtos de limpeza, numa de ferramentas e numa de cigarros, esses dias numa palestra o palestrante falou que “tinha acabado de visitar uma empresa…” onde isso tinha acontecido uhauhauha essa é a história mais manjada que já ouvi uahuahua

  3. O italiano, generalizando, é um povo muito perspicaz, e isso, certamente, se reflete em sua cultura. Sendo assim, a maioria dos filmes italianos possuem uma sutileza só compreensível para quem sabe ler nas entrelinhas, tão simples que se torna sofisticado.

  4. Também não entendo essa obssessão por complicações. A vida já é tão complicada, cheia de problemas pra resolver, por que as pessoas não podem simplesmente relaxar e aproveitar a simplicidade de vez em quando?

  5. Este filme é uma delícia! Ótima fotografia, história humanizada e é impossível não se apaixonar pela Mônica Bellucci. Certeza de ver os créditos com um sorriso no rosto.

    Sobre a simplicidade, normalmente a genialidade a tem como acompanhante.

  6. Olá Philipe, acompanho seu site há muito tempo e não escrevo muito aqui, mas sério mesmo vou te dizer que foi o melhor testo que você escreveu até hoje ( para mim pelo menos ) concordo em tudo, Malena é um filme lindo, Cinema Paradiso foi um filme que quase me fez chorar, lindíssimos, as coisas simples são as mais belas de todas, simplesmente porque delas não se exige explicação, não é preciso algum “gênio” te dize o que tá rolando, mas a simplicidade também é profunda, porque em cada um ela atingirá de uma forma, te indico outro filme lindo ( se é que ainda não assistiu ) chama-se Partidas, é um filme japonês, se não conseguiu encontrar lhe mando com prazer. um abraço a todos.

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