A moeda vermelha – Parte 2

Dave olhou para Wilson ainda na porta e disse:

— Neguinho, tranca tudo e liga pra polícia! O nome e telefone do detetive tá ali no post it do monitor. Vamos prender esse filho da puta!

— Bora! Bora! — Respondeu Wilson, pulando para dentro da sala para pegar o telefone. Discou alguns números do ramal.
Dave saiu pela porta ouvindo Wilson mandar a mensagem para Zed e Mario: “Rápido,  o Dave mandou trancar a loja! É, com todo mundo dentro! Ninguém entra, ninguém sai!”

Dave percorreu o corredor que dava acesso ao salão. Aquele corredor que ele passava várias vezes ao dia, e que nunca antes lhe pareceu ser tão comprido quanto naquele momento.

Num lampejo de segundo, se lembrou de tantas vezes que imaginou estar naquele exato momento, quando o velho chinês aparecesse na loja, ele já tinha repassado a sequência de ações tantas e tantas vezes, afim de levar aquele desgraçado para a cadeia, e agora era a hora, bem no final do expediente. O relógio marcava as 17:45.

E ao atravessar a porta restrita dos funcionários, Dave parou e ficou olhando. Lá estava ele, magro, franzino, indefeso. Parecia não ter passado cinco anos pra ele. Estava com a mesma roupa, a mesma aparência que tinha quando cruzou o alpendre da Twins Pawn pela primeira vez.

O chinês era quase totalmente careca, possuía longos bigodes e uma barba fina, brancos, óculos de aros redondos  e uma expressão esquisita. Seu rosto era completamente vincado de rugas, e ele parecia ter mil anos de idade. Vestia uma bata branca comprida.

O velho estava segurando uma pulseira, que examinava atentamente, e era atendido pela Simone. Dessa vez seu séquito de seguranças não estava com ele. O velho estava sozinho no salão.
Dave viu Mario trancando as portas.
Wilson se aproximou por trás e sussurrou:

— As câmeras pararam. E o telefone não tem linha, Dave!

— Avisa as meninas do penhor pra dizer que o sistema caiu, bota todo mundo da fila para voltar amanhã, diz ao Mario para liberar todo mundo, os funcionários ficam.

— Beleza.

Dave não disse mais nada, apenas caminhou até o balcão sem dizer uma palavra e olhou na cara do velho chinês.

— Pulseira bonita. Eu gosto. — Ele disse, com a voz fraca enquanto depositava a pulseira com extremo cuidado sobre o balcão de vidro.

— Doutor Lao.

— Como vai menino? — Disse Lao, estendendo sua mão ossuda e trêmula para cumprimentar Dave.

Dave não apertou a mão do velho e ele ficou ali alguns segundos mantendo a mão estendida no ar.
Então, vendo que não seria cumprimentado, pôs-se a alisar a fina barba no queixo.
Lao parecia um pouco envergonhado e começou a se desculpar.

— “Palece” que o senhor não está muito feliz em me ver “no seu” loja. Devo ir embora?

— O senhor só sai daqui direto pra delegacia. — Disse Zed, se aproximando do balcão.

O segurança virou-se para Dave e mostrou a fila do guichê do penhor já vazia. Os últimos clientes estavam saindo. Dave lançou um olhar para a entrada da loja e viu Mario passando a grossa corrente na porta.

— A loja está fechada, confirmou Zed.

O velho chinês deu de ombros e continuou a se desculpar.

— Mil perdões, mil perdões… Temo que cheguei em má hora…  — E enfiando a mão no bolso da túnica, tirou dali o papelzinho azul cuidadosamente dobrado. Ele desdobrou e o colocou no balcão.
Era o papel da retirada do penhor.

Dave e Wilson se entreolharam.

— Vim pegar a moedinha.
— Chegou meio tarde. Era pra ter vindo em quinze dias.
— Ah…. Hã? Ah… — Disse o velho mexendo o papel azul para frente e para trás, franzindo a testa, tentando ler a letra miúda.  — Acho que estou “atlasado”… — Disse sorrindo.

Ninguém retribuiu o gracejo. Todos da loja estavam ali cercando o velho. Os três seguranças, as moças do penhor e até os rapazes do estoque vieram ver no que ia dar.

Dave não aguentou. Em sua mente ele tinha repassado aquele momento uma dezena de vezes, pensou varias coisas que gostaria de dizer ao cliente maldito, mas quando o sangue sobe, há pouca coisa que se pode fazer.
Ele agarrou o velho pela roupa e o puxou na direção do balcão.

— Meu irmã derreteu por sua causa, filho da puta!
–Ei, ei, opa!
— Parou!
— Dave, Dave!

Todos na loja se espantaram e começaram a gritar temendo que o patrão matasse o velhote.
O velho por sua vez se manteve calmo e sereno, conforme Dave lhe puxava a túnica imaculadamente branca, com padrões florais levemente mais claros a se destacar com a luz. Ele limitou-se a ajustar os óculos empurrando com o indicador.

— Seu irmão…

Dave largou o velho.

— Ele mexeu na sua moeda.

— Perdão, rapaz, mas eu fui bem claro, né? Não pode tocar. Seu irmão toca, seu irmão morre! Seu irmão… Burro, né?

— Desgraçado! — Dave perdeu a linha de novo e tentou dar um murro no velho, agarrando novamente na túnica, mas antes mesmo que conseguisse fechar a mão, uma espécie de opressão invisível brutal  emanou de Lao.
Todos caíram ao chão. Zed, que tinha corrido para impedir o soco, tombou como uma árvore, se espatifando duro no chão e batendo a cabeça no carpete.
A opressão invisível emanou de Lao como uma onda de choque e havia derrubado a todos. Suzana começou a gritar. Wilson tossia nervosamente, enquanto tentava se levantar e Zed ficou no chão, desmaiado após bater a cabeça.

— Não violência. Violência não é o resposta, filho.  — Disse Lao, calmamente.

Dave estava trêmulo, tinha como que um bolo na garganta, sua vontade era de vomitar. Ele gemeu qualquer coisa.
Todos estavam tentando se levantar. Sarah do penhor correu com Suzanna para tentar acordar o Zed.

— Zed! Zed!!! Fala comigo, Zed!

Em meio a confusão, Lao deu uns quatro passos, foi até Zed e apenas moveu sua mão espalmada diante do rosto do segurança. Ele acordou na hora, num espasmo tão forte que o fez quicar no chão.

— Zed! Sarah o abraçou.
— Que merda… — O gigantesco segurança gemeu botando a mão na testa.

Lao voltou até o balcão onde Dave estava se segurando, assistindo intrigado.

— Aquela moeda destruiu nossa vida. — Disse Dave, tentando se acalmar.
— Eu disse, moeda perigosa. Muito perigosa. Por isso, cofre, né?  — O velho chinês olhou para o chão e viu a mancha. — Aqui foi, né? Ele derreteu aqui.

Dave baixou os olhos. — Foi.
— Triste.
Lao olhou ao redor, olhou as coisas da loja em silêncio. As meninas choravam. Sarah estava ajudando Zed a ficar de pé mas ele estava muito zonzo. Suzanna virou-se para Dave e apontou para Zed:
— Precisamos levar o Zed no hospital, Dave.
— A gente só sai quando a polícia chegar. — Dave olhou para Wilson. Ele logo entendeu, não era pra falar que não haviam conseguido telefonar.

— Não precisa polícia. — Lao disse.
— Seu item matou o dono da loja. — Wilson se meteu.
— Dono da loja desobedeceu Lao. Pegou moeda. Morreu. Culpa de Lao por que?
Os funcionários se entreolharam.
— Lao avisou… Lao avisou. Não obedece. Consequência.
— Vamos, Doutor Lao. Diga, onde o senhor esteve nesses cinco anos?
— Lao teve contratempo… Complicado explicar. Amigo de Lao muito grave, quase morre. Impossível voltar para América a tempo… Lao pede seu perdão.
O velho se curvou em reverência.
— Bom, a moeda não está mais… aqui.  — Dave disse.
Lao ergueu a cabeça e sorriu.

— Mentira é feio. Homem velho para mentir para Lao. A moeda está aqui. Dentro do cofre. Lao sente. Não segredos para Lao.

Dave olhou para Wilson.
— Bem, seu Lao, vou ser claro com o senhor. Olha aí seu papel. Tinha uma data para vir buscar, ou renovar o penhor pagando os juros do seu empréstimo. O senhor não fez nenhum dos dois e por isso legalmente a moeda é nossa. O senhor concordou e assinou, olha aí na sua cópia.

Lao olhou o papel azul no balcão. Concordou em silêncio.

— Bem, Lao tem interesse em comprar moeda. Quanto custa?
— Ela não está a venda.
— Faz oferta.
— Não está a venda. Eu já disse.
— Faz oferta. Aqui loja, não museu, não templo. Loja. Loja vende. Quero comprar minha moeda.

Dave olhou para Wilson. O velho parecia irredutível, e a demonstração da emanação ainda era sentida em seu estômago revirado. Ele ainda estava suando frio e suas pernas estavam trêmulas.

— Doze milhões de dólares. Nem um centavo a menos.
— Lao colocou as duas mãos na cintura.
— Nã-nã. Muito caro. Lao negocia preço.
— O valor é esse. pegar ou largar. — Dave disse, taxativo.

Lao coçou a careca. Olhou nos olhos de Dave, e depois nos olhos de cada um dos funcionários que se penduravam precariamente nos balcões da Twins Pawn.

— Certo. certo. Eu volto em dois dias.
O velho então acenou brevemente um adeus com sua mão ossuda de dedos compridos e caminhou lentamente na direção da porta trancada.
Dave olhou para Zed.
— Ele não vai sair. — Gemeu Zed.
Lao parou diante da porta trancada com as correntes. Em silêncio, ele apenas estendeu sua mão espalmada na direção da porta. A corrente começou a brilhar num vermelho intenso e então se partiu e caiu no chão, ainda fumegando. A porta se abriu num supetão. O velho ganhou as ruas frias da cidade e foi embora caminhando tranquilamente.

Dentro da Twins Pawn,  todos se recuperavam do choque.
— Meu Deus!
— Dave o que foi isso, cara?
— Essa porra parece ter saído diretamente de um filme do Bruce Lee!
— Vamos levar o Zed pro hospital, Dave.
— Não, não. Estou bem, estou bem agora. — Disse Zed, sentando-se na cadeira que Sarah havia trazido.
Wilson limpou o suor da testa:
— As câmeras bicharam todas, não temos nem registro. Ninguém vai acreditar.

— Isso não é normal, cara, Não é normal. Eu não acredito no que eu acabei de ver! — Disse Mario com olhos esbugalhados atrás do balcão dos casacos de pele.

— Por hoje chega, foi emoção demais. — Disse Dave. — Vamos embora. Mario, pega lá atrás outra corrente e tranca tudo.
— Sim senhor.
— Zed, tem certeza que não quer ir no hospital?
— Foi só um galo. Tudo bem, Dave, estou legal. Não se preocupe… O que foi aquilo?
— Não sei, Zed. Não sei.
Sarah ajeitou o cabelo desgrenhado. — Será que o velho volta, Dave?
— Boa pergunta.  Gente, aqui, gente… Vamos manter o que aconteceu entre nos, beleza? Tudo que não podemos é ter mais doidos e jornalistas enchendo o saco aqui.

Os funcionários concordaram. E todos foram embora.

Minutos depois, Dave dirigia para casa e conforme atravessava as avenidas de Atlantic City, ia pensando sobre o doutor Lao. Por que ele aceitou negociar? Se ele tinha tamanho poder, capaz de estourar a grossa corrente da porta, por que acatou o preço? Por que ele simplesmente não destruiu tudo em seu caminho até chegar no cofre e pegou o item na marra?

Clementine estranhou o marido quando ele chegou em casa.

— Chegou tarde, Amor. Você não estava no Borgata, né? Ei, olha pra mim. Que cara é essa, Dave?
— Problemas… Problemas com a loja.
— Você devia ouvir o meu conselho, Dave. Vende essa merda, vamos nos mudar pra Fort Lauderdale, comprar um barco, viajar.  Ninguém merece essa loja e esses pobres coitados que vão lá se humilhar todo dia para conseguir trocados para seus vícios de jogo… Senta aí. Vou pegar seu prato… Ah, aquele homem chato ligou de novo, o tal jornalista…

Dave apenas concordou em silêncio.

Horas depois, ele estava na cama, com os olhos abertos no escuro. Clementine roncava baixinho ao seu lado.
Dave rememorava cada ação do velho Doutor Lao, intrigado. Ainda sentia um pouco a horrível opressão invisível que emanou do velho. Definitivamente nada daquilo poderia ser normal. Talvez o velho tivesse poderes sobrenaturais, algum pacto, alguma coisa. Ele tentava não acreditar naquilo, mas havia experimentado em primeira mão algo que definitivamente Não era de natureza comum. Fora a corrente derreter.

Dave tentou esvaziar a mente, precisava acordar antes das sete no dia seguinte. Relaxou na cama, concentrou-se na respiração. Forçou-se a pensar  em uma casa nova na Flórida. Lá era bem mais quente, com praias azuis e um barco para pescar nos finais de semana parecia mesmo excelente. A ideia de Clementine era boa. Ela sempre falava nisso, mantinha o sonho vivo, até para ficar perto da irmã, que morava lá.

Então, antes que pudesse relaxar completamente, sentiu novamente uma estranha opressão, uma angústia que veio do nada e se apoderou dele, engolfando todo seu corpo. Seus pelos do braço estavam se arrepiando e ele tentou se mexer. Não conseguiu. Dave com grande esforço, abriu os olhos e viu uma figura magra se esgueirando na escuridão do quarto. Ela parou perto da janela e a penumbra permitiu notar o brilho daquela careca lustrosa…

CONTINUA

Receba o melhor do nosso conteúdo

Cadastre-se, é GRÁTIS!

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade

Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

Artigos similares

Comentários

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here

Últimos artigos

A mão peluda

Casa-castelinho

O contato de 1976

3
Tio Cláudio que estava dormindo veio com a gritaria. Quando ele bateu o olho naquela coisa começou a berrar para o Beto vir com a câmera. Eles tinham uma câmera de boa qualidade. O seu Edgar disse que não era para fotografar, que "eles não gostavam", mas o Beto cagou solenemente para o que o velho do trailer dizia e começou a fotografar.

“Eu vi o inferno”

2
Simon ficou em silêncio um tempo. Pegou o lenço do paletó e passou no bigode. Ele chegou bem perto do meu ouvido e sussurrou: --" Eu vi... O inferno."

O filme de natal da família Sutton

4
Por que tio George ocultou algo tão sério no filme de natal daquela família?

VRILLON

19
As estranhas e assustadoras mensagens que estão chocando o mundo.

A mulher do futuro

7
O item foi descoberto durante a reforma do Hotel Nanau, que foi operado nos anos 1970 nas ruínas da Nanau Manor. Encontrado sob um fundo falso do piso de um dos quartos, o pequeno caderno é um sobrevivente do tempo, em boas condições.