A criatividade é uma coisa estranha e imprecisa. Enquanto a inspiração às vezes parece vir dos cosmos, tirada do ar sem esforços, em outros dias ela se encontra frustrantemente fora de alcance. No entanto, é comum os artistas possuírem musas que os motivem a efetivar seu trabalho. E, por incrível que pareça, três das músicas mais queridas do século 20 foram criadas dessa forma – escritas por dois homens os quais foram atingidos pela mesma mulher.
A mulher em questão é uma linda modelo inglesa chamada Pattie Boyd, a qual, desde então, tornou-se uma espécie de ícone cultural. Em 2018, a revista Harper’s Bazaar descreveu Boyd como alguém que, nos anos 60, “ficou no cruzamento da moda, rock ‘n’ roll, arte e fama”. Naquela época, a jovem era a personificação do que o jornalista Tom Hibbert definiria mais tarde como o “visual feminino britânico”.
Por trabalhar como modelo, Boyd foi parte integrante das edições britânicas da Vogue e Vanity Fair, assim como da revista francesa Elle. Ela também filmou anúncios para L’Oreal e Smith’s e participou de uma cobiçada divulgação para a Tatler com o renomado fotógrafo Jeanloup Sieff.
Não foi nenhuma surpresa, então, que Boyd tenha se tornado um ícone de estilo para as jovens britânicas. Mary Quant constatou isso em 1966, relatando: “Seu objetivo é parecer infantilmente jovem e ingenuamente pouco sofisticada. É necessário mais requinte para se chegar a esse nível do que aquelas supostas pessoas sofisticadas jamais sonharam”.
No auge da fama, Boyd casou-se com um homem famoso: ninguém menos que George Harrison dos Beatles. Em sua autobiografia de 2007, “Wonderful Tonight”, ela relatou seu primeiro encontro com Harrison em 1964, quando o grupo estava gravando o filme “Os Reis do Iê, Iê, Iê”. A modelo lembrou que, nesse período, “a Grã-Bretanha e a maior parte da Europa estava envolvida pela beatlemania”. Ao apresentarem no programa “The Ed Sullivan Show”, a mesma situação passou a ocorrer na América.
Boyd continuou: “Eu era modelo e trabalhava com alguns dos mais bem-sucedidos fotógrafos em Londres, incluindo David Bailey e Terence Donovan. Eu aparecia em jornais e revistas, como Vanity Fair e Vogue. Contudo, em março, meu agente me enviou para fazer um teste de elenco de um filme”.
Mais tarde, Boyd soube que havia conquistado o papel de “uma fã colegial em um filme dos Beatles”, conhecendo, assim, o grupo. Ela acrescentou em suas memórias:
“De início, John parecia mais cínico e ousado que os outros. Ringo era o mais cativante, Paul era fofo e George, com olhos castanhos aveludados e cabelo castanho escuro, era o homem mais bonito que eu já havia visto”.
Boyd e Harrison logo se conheceram. “Em uma pausa para o almoço, encontrei-me sentada ao lado de George”, escreveu a modelo. “Estar perto dele era eletrizante. Praticamente, a primeira coisa que ele me disse foi: ‘Quer se casar comigo?’. Embora ele estivesse brincando, havia um pouco de seriedade. Nós ficamos juntos após isso e nos casamos dois anos mais tarde, em 21 de janeiro de 1966. Eu tinha 21 anos e ele tinha 22. Eu era muito feliz e apaixonada”.
No entanto, infelizmente, essa felicidade não duraria. Boyd escreveu: “Desde uma viagem ao ashram de Maharishi Mahesh Yogi na Índia, em 1968, George havia se tornado obsessivo em relação à meditação. Às vezes, ele também se mostrava retraído e deprimido. Meu humor começou a espelhar o dele e tinha momentos em que eu me sentia quase suicida”. Harrison também estava traindo Boyd e ela sabia disso.
“Havia outras mulheres e isso realmente me machucou”, admitiu Boyd. “George ficou fascinado pelo deus Krishna, o qual estava sempre cercado de jovens donzelas. Ele voltou da Índia querendo ser um novo Krishna – um ser espiritual com muitas concubinas. Ele realmente disse isso. Nenhuma mulher estava fora de alcance”.
Então havia uma mulher francesa a qual tinha namorado Eric Clapton. Harrison envolveu-se com essa jovem após ela ter rompido com o astro do grupo Cream e essa relação deixou Boyd de coração partido. Durante esse período, Clapton começou a passar mais tempo com Harrison, fazendo música juntos.
Assim, Boyd observou que estava cada vez mais próxima de Clapton, cuja personalidade ela descobriu ser muito diferente do que era visto nos palcos. Boyd escreveu mais tarde sobre o músico:
“Quando o conheci, ele não se comportava como uma estrela do rock. Ele era surpreendentemente tímido e reservado”.
Também, ela adorava a atenção que ele lhe dava.
“Foi difícil não ficar lisonjeada quando eu peguei Clapton olhando para mim ou quando ele escolheu sentar-se ao meu lado”, explicou Boyd. “Ele me elogiou pelo que eu estava vestindo e pela comida que eu havia cozinhado, dizendo coisas que ele sabia que me fariam rir. Essas eram todas as coisas que George não fazia mais”.
Boyd descobriu, então, que ela havia se tornado o tema de uma nova canção escrita por Clapton. “Em segredo, nós nos encontramos em um apartamento no bairro South Kensington”, ela se lembrou. “Ele ligou o gravador, aumentou o volume e tocou para mim a música mais poderosa e comovente que eu já tinha ouvido”.
Boyd continuou: “‘Layla’ conta sobre um homem que se apaixona perdidamente por uma mulher a qual o ama também, mas não está disponível. Ele tocou para mim duas ou três vezes – tudo enquanto observava meu rosto, atento a minha reação. Meu primeiro pensamento foi: ‘Meu Deus, todos vão saber que isso é sobre mim’”.
“Eu era casada com um grande amigo de Eric, George Harrison, porém Eric vinha deixando claro seu desejo por mim há meses”, escreveu Boyd. “Era desconfortável ele estar me empurrando em uma direção a qual eu não tinha certeza se queria ir. Contudo, ao notar que eu tinha inspirado tanta paixão e criatividade, a música levou a melhor sobre mim”.
Boyd admitiu: “Eu não podia mais resistir”. Ela explica, então, como tudo aconteceu na noite em que foi a uma festa na casa do gerente da banda Cream, Robert Stigwood, sem seu marido. Assim, a modelo e Clapton iniciaram lá, de fato, um relacionamento amoroso.
“Foi uma grande festa e eu me sentia eufórica pelo que havia acontecido mais cedo, porém profundamente culpada”, recordou-se Boyd em sua autobiografia. “Nas primeiras horas, George apareceu. Ele estava melancólico e seu humor não melhorou ao entrar em uma festa que já estava acontecendo há várias horas e onde a maioria dos convidados estavam drogados”.
Boyd prosseguiu: “Harrison continuava perguntando, ‘Onde está Pattie?’, mas ninguém parecia saber. Ele estava prestes a sair quando me viu no jardim com Eric. Já estava amanhecendo e ficando nublado. George veio e questionou: ‘O que está acontecendo?’. Para meu horror, Eric disse: ‘Tenho que te dizer, cara, que estou apaixonado por sua esposa’”.
Ao que parece, Boyd ficou chocada com a dura confissão de Clapton. Ela escreveu: “Eu queria morrer. George ficou furioso. Ele se virou para mim e disse:
‘Bem, você vai com ele ou vem comigo?’”.
Naquela noite em particular, ela optou por voltar para casa com seu marido. Todavia, Clapton havia deixado suas intenções bem claras: queria Boyd para ele.
“Layla” apareceu no único álbum da banda pós Cream de Clapton, chamada Derek and the Dominos. O álbum de 1970, intitulado “Layla and Other Assorted Love Songs”, foi aclamado por muitos críticos como o maior trabalho de Clapton e incluiu, aliás, uma versão da música “Have You Ever Loved a Woman” de Billy Myles. Adequada à situação, a letra da versão cover trata acerca de uma obsessão pela esposa de um amigo próximo.
Ao falar com a CNN, em 2005, Boyd deu sua opinião sobre Clapton e o álbum “Layla”. Ela disse: “Eu acredito que ele era incrivelmente transparente na época. Ele é um músico incrível o qual é capaz de colocar suas emoções na música de uma forma que o público possa sentir instintivamente. Atravessa você”.
Contudo, em 2008, Boyd deu uma visão diferenciada ao The Guardian. Ela disse: “Eu não fiquei tão feliz quando Eric escreveu ‘Layla’ enquanto eu ainda estava casada com George. Senti que estava sendo exposta. Fiquei maravilhada e contente com a canção, que foi tão apaixonada e devastadoramente dramática, porém eu queria manter meu casamento”.
Inclusive, Boyd não deixou Harrison após Clapton declarar seu amor por ela. No início dos anos 70, portanto, o guitarrista recorreu à heroína em busca de consolo – a quantia gasta com essa droga, na época, foi estimada em aproximadamente 16 mil dólares por semana. Ele também se afastou dos holofotes ao passar grande parte de seu tempo sozinho em sua mansão, localizada em Surrey, raramente se apresentando nos palcos.
Em 2007, Clapton disse à organização NPR: “Parando para refletir, o que é muito engraçado nesse tipo de vício é que eu sempre pensei: ‘Estou lidando com disso. Eu posso lidar com isso. Eu posso parar a qualquer momento. Só não quero parar agora’”. Em 1974, por fim, Boyd e um Clapton sem heroína começaram a viver juntos após ela finalmente terminar com Harrison.
Clapton e Boyd, então, casaram-se em 1979, mas infelizmente não seria uma união feliz. O astro do rock foi alcoólatra durante a maior parte do casamento e Boyd também passou a beber muito. Clapton apresentou-se muitas vezes infiel e, ao final, o casal se separou, divorciando-se em 1989.
Uma coisa que marcou os dois casamentos de Boyd foi sua incapacidade de ter filhos. Em 2019, ela disse ao jornal Daily Mail: “Eu achei que quando crescesse e me casasse, eu teria filhos. Infelizmente, isso não aconteceu para mim. Apenas pensava que combinava com a ideia de ser mulher”.
Boyd prosseguiu: “Então, quando isso não ocorreu, comecei a entrar em pânico e a me perguntar o porquê”. Ainda que ela e Clapton tenham tentado engravidar por meio de fertilização in vitro, não adiantou. A ex-modelo lamentou: “Após aceitar o fato de que isso não vai acontecer com você, demora um pouco para se recuperar e seguir em frente”.
No entanto, Boyd conformou-se com sua infertilidade e resolveu alterar sua visão sobre o assunto. “Após ter superado isso”, acrescentou ela em sua entrevista ao Daily Mail, “você chega à conclusão de que tem grandes amigos e a vida é maravilhosa. Eu acredito que não podemos forçar a natureza. O que quer que aconteça na vida, está destinado a acontecer”.
Pattie Boyd inspirou três canções épicas
Aliás, “Layla” não foi a única música escrita sobre Boyd. Em 1969 – três anos depois que ela e Harrison se casaram -, a estrela dos Beatles compôs “Something” em homenagem a sua esposa. Boyd esclareceu em seu livro: “George me disse com naturalidade que ele a havia escrito para mim. Achei linda e acabou sendo também a música de maior sucesso que ele já escreveu, com mais de 150 versões de cover”.
Boyd continuou: “Frank Sinatra disse que era a melhor canção de amor já escrita. A versão favorita de George era a de James Brown. A minha foi aquela de George Harrison, em que ele tocou para mim em nossa cozinha”. De acordo com muitos historiadores da música, “Something” elevou Harrison ao mesmo nível de composição de seus companheiros de banda mais famosos, John Lennon e Paul McCartney.
Avance sete anos para 1976 e outra clássica canção seria inspirada na beleza de Boyd. Era uma noite em que Boyd e Clapton estavam se preparando para comparecer ao evento anual de Paul e Linda McCartney em homenagem ao Buddy Holly. Ainda que Clapton parecesse estar preguiçosamente esperando Boyd decidir qual roupa vestir, na verdade ele estava compondo.
Boyd comentou sobre essa noite especial com Clapton em uma entrevista de 2008 ao The Guardian, dizendo: “Fomos convidados para sair e ele estava sentado, tocando seu violão enquanto eu experimentava alguns vestidos lá em cima”. De fato, foi um longo tempo até ela escolher o que usar.
“Eu demorei muito e entrei em pânico com meu cabelo, minhas roupas, tudo”, revelou Boyd. “E eu desci as escadas aguardando que Clapton realmente me repreendesse, porém ele disse: ‘Escute isto!’”. Mas Clapton não estava irritado com sua então namorada. Boyd prosseguiu:
“No tempo que levei para me preparar, ele compôs ‘Wonderful Tonight’”.
Em 2008, Boyd revelou informações mais uma vez acerca de seus relacionamentos ao falar com o The Observer. Ela contou sobre Harrison e Clapton:
“Eu acredito que os dois homens com quem me casei foram tão infiéis e destrutivos, porque eram adorados por milhares de pessoas”
Boyd relata: “Com George e Eric, foi simplesmente porque tinham mulheres dizendo a eles o quanto eram maravilhosos o tempo todo. As mulheres cometem o erro de pensar que sexo é amor. Os homens conseguem ser mais imparciais em relação a isso”. Ela completou:
“Eu diria que tive a maior paixão e química da minha vida com George”.
Aliás, parece que Boyd tinha dúvidas sobre ser uma musa para seus maridos, astros do rock.
“Eu acho que fui uma inspiração romântica para Eric e George, porque dei o máximo que pude a ambos, mesmo que isso fosse prejudicial a mim”,
disse ela. “Eu sempre estive lá para eles, o que eu acho que é realmente o que uma musa é. Você está vivendo sua vida para outra pessoa”.
Entretanto, em 2018, a ex-modelo apresentou uma outra visão sobre o motivo de ter inspirado Harrison e Clapton. Relatando ao Harper’s Bazaar, ela disse: “Acho que no meu caso, tanto George como Eric eram incapazes de expressar seus sentimentos por meio de uma conversa normal. Tornei-me, assim, um reflexo para eles”.
Boyd filosofou sobre a própria ideia de ser uma musa, argumentando: “Eu acho compreensível o conceito de ser uma musa quando você pensa em todos os grandes pintores, poetas e fotógrafos que tiveram suas inspirações vindas daí. O artista absorve de sua musa um elemento o qual nada tem a ver com palavras – somente a pureza de sua essência”.
Atualmente, Boyd é casada com Rod Weston, o qual é funcionário na indústria menos rock ‘n’ roll: desenvolvimento imobiliário.
Agora, ela também trabalha do outro lado da câmera, tendo suas fotografias exibidas em cidades como Dublin, São Francisco e Londres. E, claro, ela pode se gabar por ter sido inspiração para não só uma, mas três canções que são amadas por milhões de pessoas em todo o mundo.
Pattie Boyd, uma musa que inspirou três das músicas mais adoradas do século 20, continua a ser uma figura fascinante na interseção entre a moda, a música e a cultura. Sua jornada tumultuada e as músicas que a imortalizaram são evidências do poder transformador da inspiração e do papel complexo que uma musa pode desempenhar na criação artística.