Sérgio tinha sido demitido naquele dia. Reestruturação do setor, disseram. Andou a esmo pela cidade. Não sabia para onde ir. 28 anos dedicados à companhia e era pago assim, com uma cuspida na cara travestida de um educado aperto de mãos e um relógio barato como gratificação.
Jogou o relógio na primeira lixeira que viu.
Andou até chegar a uma praça. Era um canto da cidade que pouco conhecia, porque sempre fazia o mesmo trajeto rumo ao sexto andar da avenida Rubens de Palma 488, centro.
Sentou-se no banco e contemplou as pessoas ao redor. Andavam de um lado para outro. Velhos se arrastando pelas calçadas. Vendedores berravam a plenos pulmões oferecendo cartões de celular. Um ou outro sujeito suspeito observava suas presas ao longe. Rapazotes vagavam com envelopes pardos sob o braço. Um varredor de rua limpava a calçada com movimentos mecânicos e viciados olhavam o vazio aos pés de uma estátua cagada por pombos. A cidade seguia seu ritmo triste e cadenciado, com eventuais arritmias, típicas de uma sociedade doente.
Sentou-se ao seu lado um homem velho, com jornais amarelados sob o braço. Ele surgira do nada, entrando pela visão periférica. Sentou-se pesadamente e soltou um pesado suspiro. Sérgio sentiu o bafo acre do velho. Teve nojo. Cogitou levantar-se, mas manteve-se ali por total ausência de desejo de partir para onde quer que fosse.
O celular tocou. Mas não havia sequer vontade de atendê-lo. Deixou tocar.
-Seu telefone está tocando senhor. – Disse o velho.
Sergio tentou ignorá-lo, mas era impossível. O velho era insistente.
-O celular. Ou! O celular. Não está ouvindo?
-Obrigado não quero atender.
-Por que? – Perguntou o velho.
-Não interessa, senhor.
-Desculpe, eu não quis parecer impertinente, Sérgio.
-…
-Ei.
-Diga.
-Como sabe meu nome?
-Não sei.
-Sabe. O senhor acabou de falar… Sérgio.
-Jonas. Prazer. – Disse o velho lhe estendendo a mão calosa e enrugada.
Sérgio apertou a mão do velho mas ainda estava intrigado.
-Mas o senhor disse meu nome.
-Ora, Sergio… Qual o mal disso? Qual o problema? Talvez nos conheçamos…
-Não. Não. Eu não conheço o senhor. Isso é…
-Estranho.
-Exatamente.
-Bom, já que insiste em saber, eu estou aqui por você, meu jovem.
-Por mim? Que papo é esse meu tio?
-Meu tio não, rapaz, que não irmanei nem com tua mãe nem com teu pai!
-Mas… Mas que porra é essa?
-Meu nome é Jonas e estou aqui pra fechar seu ciclo.
-Ciclo? Que ciclo? O senhor não me parece normal, desculpe, tenho que ir.
-Espere! Espere! – Ele exclamou, agarrando no braço de Sergio com suas mãos frágeis e trêmulas. Sergio se sentou.
-Você já foi demitido, não foi?
-Fui, como o senhor sabe?
-Você já viu o varredor?
-Já… Que papo é esse? Que merda é essa?
-Já viu a receita?
-Receita? Que receita?
-Tá, me achei aqui na cronologia de eventos. Essa receita ali, veja. – Disse Jonas, apontando um papel que girava no vento. O papel agarrou na perna de Sérgio. Era uma receita de arroz doce. Incompleta.
-Ei… Mas o que está acontecendo aqui? Quem é você? Uma espécie de vidente? Pai de santo? Pastor? Já aviso logo que não tenho dinhe…
-Nada disso. Shhhh! Silêncio rapaz! Vocês dessa geração são todos desse jeito,a afobados, interrompem os mais velhos. Saudades dos tempos que tudo era mais simples e os protocolos não tinham toda essa encheção de saco de respeito com os sentimentos dos sistemas. Mas, agora está assim, auditoria e supervisão o tempo inteiro em cima da gente. Não é mole e sabe o que mais? Já é a terceira operação de desligamento que faço só hoje. Está uma pouca vergonha isso. E nem vou mencionar a qualidade gráfica dessa versão. Olha que bosta, fizeram o céu azul de novo. Sabia que isso é um bug que há anos nego não resolve? Cansei de reclamar, mandar ofício… Nada. Sempre dizem que estão trabalhando no problema. O céu de verdade é roxo. Mas se colocam o céu roxo no código, dá a maior merda. Maremoto pra caralho. Umas instabilidades malucas. Um saco. Essa merda vai acabar ficando assim… Escuta o que eu estou falando. Ei…
Sergio estava absorto olhando para os prédios altos ao redor da praça. Um avião na imensidão azul deixava um traço branco.
-Ei. Ei.
-Quê? Que foi?
-Então, estou aqui pra falar com você uma coisa.
-Coisa? Eu não estou entendendo nada.
-Você não existe. – Disse o velho, de supetão.
Sergio riu. -Como assim?
-Não existe. Nada aqui existe. Nem eu. Quer dizer, na verdade mesmo, no pau da goiaba, só eu existo por aqui.
-Meu senhor, me desculpe mas está na minha hora…
-Espera. Espera.
-Com licença. – Disse Sérgio, tentando desagarrar aquela mão ossuda do braço dele.
-Você não existe. Você um sonho. Uma ilusão, uma auto-ilusão dum sistema de inteligência artificial que foi programado para dormir e sonhar com uma existência humana. Olhe ao seu redor. Tudo isso é um produto da sua mente. Você acredita que esses pombos nojentos podem ser reais? Xô, xô, sua porra medonha, ratos com asas! Isso é o que eles são… Ratos com asas!
-Senhor eu sei que está se divertindo com essa conversa, mas realmente meu dia hoje não foi dos melhores. Gostei do truque do nome. Um abraço.
-Eu posso provar. – Disse o velho apontando para Sergio. O celular tocou novamente.
-Hã?
-Atenda o telefone. Veja ele está tocando. Não vai ser ninguém.
-Não…
-O que tem a perder, garoto?
Sergio então sacou o telefone e colocou na orelha. Não havia nada além de um zumbido.
-Coincidência.
-Sim… Eu sei. Você já disse isso antes.
-Hã?
– Vamos desligar? Acabar tudo. Vamos rodar uma nova versão. Estou aqui em nome da corporação para agradecer você mais uma vez. Sua experiência de vida foi fascinante. Agora chegou a hora de irmos. Eu te acompanho.
-Senhor… Senhor, eu não….
-Por favor, tome… Olhe este papel. Tem uma palavra aí. Leia pra mim. – Disse o velho estendendo um papelzinho. Nele estava escrito uma palavra enorme.
-Que merda é essa? Que porra de palavra é essa?
-É sua rotina de desconexão. Diga e acabou-se. Vamos logo.
-E se eu não disser?
-Eu estou aqui por isso. Uma das versões antigas não quis desligar. E você não imagina a merda que deu.
-O senhor está tirando uma com ma minha cara. É pegadinha? Pode mandar aparecer a câmera.
-Não, desculpe. Nossa, como você é previsível. Apostei que ia variar essa da pegadinha e não deu certo. Perdi cinco mangos.
-…
-Escute, eu estou aqui perdendo meu tempo. Pode fazer o favor de ler o que está aí em voz alta?
-Você está louco. Eu não vou ler nada. Minha vida… Você investigou minha vida. Você está mancomunado com alguém do escritório. Agora entendi. É tudo uma pegadinha, uma armação! Não deu certo meu tio. Passar bem!
Sérgio levantou-se para sair andando mas o velho disse:
-Semana passada sua mulher te largou.
O executivo estancou. -Hã?
-Sua mulher te largou, roubaram seu carro, seu empregador te demitiu e você está com essa falta de ar aí que é uma enfisema pulmonar, sabia?
-O que?
-A enfisema foi um hack que fizeram depois daquele que não queria desligar. Achei uma solução ideal. Mas o certo mesmo, é você fazer o próprio shut down, por causa dos protocolos éticos.
Agora Sérgio estava verdadeiramente perplexo. O velho sabia da Regina, sabia do emprego sabia até do roubo do carro.
-Tudo que você tem a fazer é ler aí o meu papelzinho.
Sergio voltou e sentou-se no banco da praça novamente.
-E o que vai acontecer depois?
-Com você? – Perguntou Jonas.
-Sim.
-Nada. Você vai sumir. deixará de existir para sempre. Terá cumprido seu ciclo.
-Mas… Como assim?
-Você acha que é gente? Que é um ser humano, não é? Você lembrado seu nascimento, da escola, dos coleguinhas, da sua primeira namorada? Lembra da bicicleta amarela? Ou do dia do churrasco da faculdade quando transou com aquela caloura que um dia seria sua chefe?
-Meu Deus! – A perplexidade só aumentando.
-Tudo são memórias do seu ciclo. Você é um sonho. Um sonho de um grande e poderoso computador. Basta ler essa palavra e tudo se acabará. Sem dor nem sofrimento. O final é este. Pode se recusar. Outras versões já se recusaram. Por isso a enfisema. Se você recusar ela vai fazer o meu serviço de qualquer maneira. É intratável. Em dois meses você… Puf! Já era. Na real, leia logo essa palavra, porque vai por mim, esse período de hoje até mês que vem, vai ser muito barra pesada.
Sérgio foi tomado por uma súbita resignação, retomou o papelote. Olhou nas letras escritas em caneta esferográfica azul.
-Posso fazer uma última pergunta?
-Claro.
-Por que essa palavra?
– A palavra de desconexão não poderia ser dita por acaso, ou o mundo acabaria. Deu isso numa versão quando usamos “licnomancia”.
-Porra…
-Pois é.
-Bom, mas… Por que eu preciso fazer isso?
-O sistema colheu todo o volume de dados que precisava. Você ainda existe em diferentes versões desse mundo e eu sempre apareço no final para fechar o ciclo com você.
-Mas… Tá, tudo bem. O que eu não entendi é eu ter que ler. Eu? Não podem me dar um tiro e aí, fim? Não posso ter um derrame bem agora e cair duro aqui?
-Garoto eu não faço as regras. Eu gostaria que tudo fosse mais simples, mas parece que para o sistema, é importante que ele tenha a consciência de sua impossibilidade entes da descarga. Por isso me contrataram.
-E se eu me matar agora? Se eu me jogar ali debaixo daquele trator?
-Esquece. Se você fizer isso tudo começa de novo. E eu vou… Adivinha? Isso mesmo, eu vou aparecer de novo. O único jeito de se libertar o ciclo, é lendo aí em voz alta.
Sergio olhou para o amontoado de letras. Olhou para o velho, tornou a olhar para o papelzinho e leu:
Paraclorobenzilpirrolidinonetilbenzimidazol
E sumiu.
FIM
Genial. Melhor ainda é o uso do Paraclorobenzilpirrolidinonetilbenzimidazol, que dá aquele toque comico quando finalmente procuramos o que diabos é.
O pau da goiaba me pegou desprevenida. Que isso, cara?