A busca pelo Raiden

Quando dona Selminha abriu a porta do meu apartamento, ela deu um grito com o susto que levou. Ali estava eu, no escuro, sentado na cabeceira da mesa segurando uma caneca contendo um resto de chá que já estava frio.

Eu olhava para a parede, perdido em pensamentos e conjecturas. Ouvi quando ela enfiou a chave na porta, com grande cuidado. Sem duvida era a primeira das faxineiras a chegar no prédio, porque nosso horário sempre foi meio maluco. Ela chegava quinze pras cinco da manhã, ainda com tudo escuro, porque tinha que faxinar a casa toda e saía dali direto para outro trabalho, de merendeira numa creche às onze da manhã. Selma tinha uma vida dura, apesar de jamais ter reclamado dela comigo.

Ela poucas vezes me pegou acordado quando chegava.

-Cruz credo! – Disse Selma se benzendo freneticamente.

Pedi desculpas. Expliquei pra Selma que não fiz por mal.  Aquela tinha sido uma noite horrível. Senti calor, depois frio, depois rolava de um lado para outro na cama sem conseguir pregar o olho. Sempre que engrenava achando que ia finalmente apagar, me vinha à mente o som daquela voz no telefone. Foi assim também na infância, quando o velho me chamou na sala do coordenador, eu senti uma coisa ruim, uma coisa indescritivelmente ruim, amarga, metálica, fria penetrar o meu coração. A maioria dos meus amigos sentiu aquilo. Cada um teve uma reação, e pelo que percebi, aquele homem velho não falou a mesma coisa para todo mundo. Pelo contrario. Ele disse a cada qual dos garotos da quarta B justamente aquilo que eles mais temiam ouvir.

Então, vendo que não ia dar em nada ficar deitado na cama, fui ate a cozinha, fiz uma caneca de chá e sentei-me na sala. Ouvi mais de dez vezes a mensagem tenebrosa na minha secretária eletrônica. Cada vez notava uma dimensão diferente naquela voz. Era ele sem sombra de duvida. Aquele homem quando falava dava uma coisa na gente. Uma coisa ruim. E eu senti, e senti novamente, seguidas vezes, cada vez que meu dedo alcançava o PLAY.  Eu não sabia explicar. Nunca soube. E de uma certa forma era justamente essa incompreensão do que se passava que me alimentava, me dava combustível para seguir em frente e saber o que de fato aconteceu naquele fatídico dia na quarta B do Santa Edwiges.

Selminha passado o susto, retomou seus afazeres, acendeu a casa toda (ela tinha medo de escuro e de aranhas) e começou a mover as cadeiras da sala para tirar o tapete peludo.

Saí de onde eu estava e fui para o escritório. Ali, desdobrei com cuidado a lista de nomes. Durante as horas que fiquei planejando o que fazer ao lado da secretária eletrônica, somente uma ideia me ocorreu. E essa ideia era um simples frase sintetizada em: “estou sendo vigado nessa merda”.

Se o meu email para o Marcos Paulo não havia sido respondido por ele, mas sim por alguém se passando por ele, e se minha incursão até o interior havia irritado o homem velho ao ponto de me ameaçar na secretária eletrônica, estava claro que  aquilo que antes era tão fundamentalmente importante para mim que é minha privacidade, agora não passava de um pálido delírio. Talvez essa privacidade nunca existiu. Talvez eu – e não só eu, como todos nós da quarta B – sempre fomos vigiados. Mas como? Por que razão alguém se daria ao tamanho trabalho de monitorar vinte pessoas para preservar um segredo do qual quase ninguém se lembra mais e mesmo quando lembra, prefere pensar em outro assunto?

Olhei a lista. Nome a nome. Alguns nomes eu não lembrava bem. Principalmente das meninas. O problema é que na quarta série, quase todo mundo tinha apelido. Eu não tinha, mas todos me chamavam de Markun por causa do sobrenome. Só um ou outro, e eventualmente professores novos me chamavam de Guilherme. O resto era Markun, Markun… Eu lembro do Sapulha, do Tizil, mas como saber ao certo qual daqueles caras ali era o Sapulha e qual era o Tizil?

Dos que eu me lembrava, eu escrevi a lápis ao lado do nome, o apelido.

Então, enquanto escrevia no papel, uma ideia me acometeu:  Se o velho já era velho quando eu estava na quarta série, como que esse cara ainda está vivo hoje? Será que ele era só um homem bem acabado? Muitas vezes a vida deixa marcas profundas na gente. Certa vez fiz um artigo sobre trabalhadores do campo. Na oportunidade,  conheci um tal de seu Marcolino, que colhia laranjas e café. Eu passei um mês pensando que ele tinha uns sessenta e cinco anos, até que um dia, diante de um copinho de conhaque ele me disse que tinha trinta e oito! Trinta e oito, com carinha de quase setenta!  Tudo bem que a falta de dentes contribuía para seu Marcolino parecer decrépito, mas o homem velho que apareceu na escola, sentou-se na minha frente. Olhei na profunda escuridão de seus olhos, pareciam dois abismos, emoldurados por rugas profundas. A pele mole, flácida, quase transparente não mentiria pra mim. Ali estava um homem beirando os setenta anos senão mais. Como seria possível que ele ainda estivesse vivo, e mais, na ativa, hoje em dia?

Andei de um lado para o outro no escritório. O dia amanhecia com o sol pálido infiltrando na janela. Coloquei um disco de coletânea do A-ha. Estava tocando “I´ve Been Loosing You”.  Eu gostava do A-ha. Boa banda. Um som mais animado parecia perfeito para abrir os trabalhos do dia.

O telefone tocou. Fiquei parado olhando o aparelho. Tocou algumas vezes. Pensei em pegar, mas a sensação de que poderia ser o velho me impediu. Vi o aparelho tocando, tocando. A secretária ia atender. Era um exercício de controle da ansiedade. O telefone tocando, se esguelando ali e eu apenas olhando para ele… A secretária eletrônica ia entrar mas então, a ligação parou. Do nada, o aparelho não tocou mais.

Senti um certo alivio, um alívio que durou pouco, já que logo depois, ouvi a voz da Selmiminha me gritar: “Seu Gilhermeeeeeee…”

Ela tinha atendido na extensão da sala. Levantei da poltrona do escritório num pulo.

-É para o senhor. Um tal de “fininho”.  – Ela disse, com os olhos esbugalhados de sempre.

-Fininho?  – Perguntei pegando o aparelho das mãos molhadas da Selminha.

-Fala Markun! Beleza cara?

-Fininho?

-Tudo bom meu amigo? E aí? Fez boa viagem?

-Opa. Fiz sim.

-Então, Markun… Eu… Eu… – Fininho ficou mudo. Imediatamente notei algo de estranho em sua voz.

-Que foi cara?

-…

-Ele não respondeu. Apenas estava exitante, parecia ter dificuldade em escolher as palavras.

-Nada… – Ele disse. Só o modo como fininho falou eu sabia que o “nada” queria dizer tudo.

Então ficamos uns segundos em silêncio no telefone… Quebrei a mudez quando eu resolvi fazer uma pergunta cuja resposta eu parecia já poder antecipar:

-Ele te ligou?

Fininho não respondeu. Apenas desligou o telefone na minha cara.

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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