Quando eu conheci Maria Thereza de Jesus, ela estava sentada no banco da praça. Era um dia quente de verão. Eu me sentei ao lado dela simplesmente por não haver outro lugar onde me esconder do sol inclemente. Nem havia prado para reparar naquela mulher que parecia ter uns quatro anos a mais que eu, e que guardava uma beleza incomum. Na verdade mesmo, só percebi o quanto a dona Maria Thereza era bonita bem depois.
Naquela tarde conversamos amenidades. Nem cheguei a me apresentar. Durante algum tempo eu fiquei ali me refrescando do calor sob a sombra de uma antiga árvore. Mas deu o meu horário, então pedi licença a dama e parti. Estranhamente, naquela noite o calor foi muito forte e eu abri a janela para entrar um ar. Eu morava numa pensão para estudantes que era muito quente. Fiquei na janela por um tempo fumando um cigarro. A janela dava vista para a praça. Foi quando eu olhei para a praça que vi algo estranho.
Eu parecia estar vendo alguma coisa fantasmagórica. Lá, no meio da escuridão, sentada no banco da praça estava a Thereza.
Vesti o paletó de desci em direção à praça.
Lá estava ela. Quieta. Solene. O olhar perdido em meio aos jardins.
Sentei-me novamente ao lado dela e não disse nada. Eu fiquei em silêncio e podia ouvir o respirar pesado de Thereza. Achei que ela estava triste. Hesitei em romper o silêncio ao perguntar-lhe o que uma dama fazia aquela hora da noite na praça sentada no mesmo banco em que passara a manhã toda. Fiquei pensando sobre como as costas de Thereza deviam estar doendo, pois o banco da praça era bem duro.
Ela não falava nada. Apenas olhava para o jardim, sentindo o perfume daquelas flores que exalam seu perfume na escuridão. As damas da noite.
Eu pensava mil maneiras de me introduzir naquele momento solitário da Thereza. Não queria parecer inconveniente. Mas não queria parecer insensível ao fato de que de algum modo, aquela mulher inegavelmente sofria.
Eu pensava, pensava e não tinha nenhuma boa ideia. Fazia ensaios mentais, testando cada uma das abordagens. E então, inesperadamente, ela me interrompeu os pensamentos com uma frase.
– Esta noite está sem lua. – Ela disse. Nossa, era justamente a frase perfeita. A frase que eu deveria ter usado e não usei.
– Sim, é verdade. A propósito, a senhora está aqui desde hoje pela manhã?
-Estou.
-Nossa. A senhora não está sentindo dor nas costas? – Perguntei incrédulo.
-Não, não. Estou bem.
-Espera por alguém?
-Sim, espero.
-Estou incomodando a senhora? -Perguntei torcendo por uma negativa.
-Não, não. A pessoa que espero ainda não veio. Está chegando.
-Eu poderia perguntar quem é? Seria muito intrometimento?
-Bem, não. Nem um pouco. Eu sei que parece estranho estar aqui sozinha na praça. Mas eu namorado volta da Inglaterra hoje.
-Ah. Entendo. Quer que eu saia? Se ele chegar e ver que conversamos…
-Não não. Não seja tolo. – Ela deu um riso que misturava pena e desprezo pela simples ideia de eu, aquela figura pobre e esquálida, causar algum transtorno de ciúmes no namorado dela. Eu me senti mal. E ela continuou. – Meu namorado é mais velho. Ele entende que você está apenas preocupado comigo. É um cavalheiro. Você vai ver.
-Ah… – Eu já ia completar a minha frase quando parou um belo carro do outro lado da praça. Um homem de uniforme impecável e quepe desceu e contornou o veículo. Ele abriu a porta e eu vi um belo par de sapatos italianos reluzirem com a iluminação do poste. Um homem alto desceu. Ele estava enfiado num terno bem cortado que eu teria que trabalhar anos para pagar. Ali estava um homem de cabelos brancos e ar aristocrata. Ele apenas moveu levemente o queixo para baixo e o motorista retornou ao carro. O homem carregava um belo buquê de flores rubras. Atravessou a praça. Eu podia ouvir o coração daquela mulher disparar ao meu lado. O cavalheiro se aproximou de nós. Como manda a etiqueta, me levantei para saudá-lo. Dona Thereza fez as apresentações, me apresentando como um amigo que lhe fez companhia por causa da noite escura. O nome do homem era Oscar.
Oscar é nome de rico. Aliás, isso já dava para saber só de ver o carro. Devia ser empresário dono de metade da cidade. Eu já ouvira falar dele na Radio Nacional. O sobrenome inglês não me saiu da memória por um bom tempo. Eu pude admirar aquele homem que era como eu sempre desejei ser. Belo, rico, desejado. Com estirpe. O cabelo gomalinado e um belo anel de rubi no dedo. E o relógio? Ele olhou as horas para calcular vinda do Rio de Janeiro até Petrópolis e eu fiquei até atordoado ao ver aquela maravilhosa peça de arte suíça brilhar na mão do homem. Não me contive e elogiei o relógio. O cavalheiro sorriu e contou as vantagens do cronógrafo de quartzo. Acho que em toda minha vida nunca amealharei fortuna que dê para pagar nem sequer o ponteiro daquilo.
– Como foi a viagem, senhor Oscar?
-Muito bem. Fui ter com a Rainha. Sabe como são essas solenidades. Aliás, falado em rainha… Essas são para a minha rainha. – Ele estendeu o buquê de flores. E a dona Thereza abriu um belo sorriso.
O homem contou que voltava de Londres num navio. Primeira classe, é claro. Trouxe-lhe um presente. Eu me intriguei porque pensei que o presente eram as flores, mas o homem acenou para o motorista. O carro acendeu os faróis e circundou a praça. Thereza estava atônita como eu. O carro parou na nossa frente. O homem abriu a porta de trás e lá estava um belo urso de pelúcia. Enorme.
Ela adorou. Estava em êxtase. Eu achei que devia me retirar e já ia pedindo licença quando o homem falou que aquele também não era o presente. Enfiou a mão no bolso do paletó e dali retirou uma caixa. Uma caixa pequena.
É joia! – Pensei cá com meus botões. Thereza deu um passo para trás. Assustada. Eu vi nos olhos dela naqueles segundos que antecederam a abertura da caixinha preta, que ela assustou-se com a possibilidade de ver uma aliança de ouro ali dentro. E em seguida ouvir um pedido. Um pedido que ela ansiava há muito, mas que igualmente a aterrorizava.
O homem abriu a caixa e não era o anel. Thereza respirou. Era um belo broche. Um broche de pedras. Ametistas, cristais e esmeraldas. Lindo. Eles se abraçaram. Ali estava um homem apaixonado. Um homem outrora tão poderoso, agora escravizado daquela mulher, que temia ver uma aliança na caixa. Eu pedi licença e vi que dona Thereza e o senhor Oscar Sinclair entraram no carro. Nos despedimos cordialmente. Ele acenou e o carro partiu. Eu voltei para a pensão. Fui dormir pensando na noite de amor perfeita daqueles dois e senti uma certa raiva daquele cara.
Um mês depois, eu passava pela praça quando vi Thereza novamente. Ela estava sentada no banco secando os olhos. Fui até lá.
Ela estava novamente com o olhar parado. Cumprimentou-me, mas tinha a expressão mais triste. E o rosto inchado.
-Como vai o sr. Oscar? – Indaguei.
– Não sei.
-Não?
-Terminamos.
-Nossa.
-Não foi traição se o senhor quer saber. – Disse-me ela num tom de defesa.
-Entendo, senhora Thereza. Que pena. Formavam um belo casal.
-Sim. Belo. Reconheço. Todos me diziam isso. Mas eu não podia ficar com aquele homem. Eu não tinha certeza se o amava. Não estava preparada… Estava confusa…
-Ele a pediu em casamento?
-Sim, como sabe?
-Imaginei que seria naquele dia que nos vimos pela última vez. Até achei que o anel estava na caixa do broche de ametista. -Disse eu. Mas ela pareceu me ignorar, continuando a falar. E então eu compreendi que ela não falava comigo. Falava para si mesma, buscando uma explicação para o inimaginável fato de ter negado o pedido nupcial do poderoso Oscar Sinclair.
-…Ele não me negou nada. Me deu tudo. Do bom, do melhor e além. Me prometeu viagens inesquecíveis, me prometeu o mundo. Quando conheci Oscar eu era pobre. Meus pais haviam morrido. Aquele homem surgiu do nada e nos apaixonamos. Ele tocou meu coração com tamanha devoção. Comecei a querer casar com ele. Mas um dia, na missa, eu fui tomada de um pensamento que acho ter sido uma inspiração do Senhor…
– E o que o Senhor disse?
-…Onde ele dizia que tamanha devoção deveria ser devolvida com juros e correção. E eu não amava aquele homem o bastante para pagar tamanho tributo. Quando ele enfim me pediu em casamento, assustada eu disse não.
-Oh. Que pena. Que história triste, senhora Thereza.
-Me chame de Thereza. Não sou tão velha nem casada para ser tratada de senhora.
-É sinal de respeito.
– Eu sei. Prefiro Thereza apenas. Therezinha.
-Certo… Therezinha.
-Bem, desculpe derramar sobre o senhor essas tristezas da vida.
-Ah, não é nada. Sei que passarão logo. A senhora, digo, você sabe que é melhor ser honesta e franca com essas coisas do amor.
-Tem razão, meu amigo. Espero que sim.
-Adeus. Até breve.
-Até.
Parti deixando a minha amiga na praça. De longe ainda olhei para trás. Lá estava ela. No mesmo banco de sempre. Secando os olhos. Pensei que ela iria ficar para titia.
Não ficou. O tempo passou novamente e quando tornei a vê-la, me assustei. Não foi na praça. Foi na feira. Outrora uma boneca de louça num caro vestido branco, agora ela estava suja, vestia uma roupa antiquada e carregava um saco com bananas, alguns legumes e duas garrafas de mel. Ainda bonita. Linda. Mas bem triste. Me ofereci para carregar o fardo para ela. Notei que ela escondia coma manga da blusa hematomas nos braços. Fingi não percebê-los. Tornei a tentar carregar as sacolas. Mas ela não quis. Eu insisti e praticamente tive que arrancar o saco com a feira dos braços dela. Foi ali que eu vi o tamanho do orgulho daquela mulher. No caminho da casa dela fomos conversando.
Ela me contou que conheceu um outro homem. Um homem mais moço que Oscar. Apaixonou-se por este homem. Mas o maldito era dado a esbórnias. Batia nela. Um português de nome Antônio. Ele era dono de um bar num bairro distante. Chegava e casa tarde fedendo a pinga e queria o jantar na mesa. Se o jantar não estivesse posto ele brigava e comia até direto no fogão tal qual um animal. Era um mau caráter. Ele explorava Thereza, pelo que eu entendi.
Thereza contava-me sua história e as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, descendo em uma cascata de brilhante sob a luz do sol até pingar do queixo. Eu senti ódio daquele maldito.
Numa noite, o português chegou completamente transtornado do bar. Acusou Thereza de roubar-lhe dinheiro. Ante as negativas da mulher, ele deu um belo tapa nela. Thereza caiu chorando na cama. Sofria pelo amor, mas gostava do português. O homem vasculhou sob a cama. Abriu armários. Revirou as gavetas da pequena cômoda em busca de provas. Estava neurótico. As crises só aumentaram e ele ficou mais e mais agressivo. Queria pinga. Obrigava a pobre Thereza a fazer todos os seus desejos. Um dia, encasquetou que Thereza o traía. Então passou a dar incertas na casa. Passou a olhar sob a cama, circundar a casa com facão em punho sempre que chegava na surdina. Embrenhou-se na mata ao redor da casinha para encontrar o “safado”. Chamava Thereza de perdida, vadia, piranha. e outros termos impronunciáveis. Ele sempre batia nela. Na falta do suposto homem, ele imaginava um. Imaginava homens do passado. Indagava pelos nomes dos homens da vida de Thereza. Queria saber tudo. Quem eram, onde estavam. Começou a perseguir a própria sombra. Passou a cobrir o espelho da cômoda para não ver o seu próprio reflexo ao lado de Thereza. O homem começou a ter ciúmes do reflexo…
A pobre Thereza não suportou aquela relação doentia. Sofrendo, decidiu dar um basta naquela vida. Numa noite que Antônio chegou bêbado e avançou sobre ela, Thereza estendeu-lhe o facão na direção da garganta. Ameaçaram-se, lutaram. Thereza estocou-lhe a faca no braço. Abriu um buraco e jorrou sangue. O Português ficou ainda mais ensandecido do que já era. Expulsou a mulher de casa ameaçando matá-la caso voltasse. Ela saiu do casebre jurando nunca mais olhar na cara dele.
Quando chegamos na casa dela, era uma casinha pequena, perto da praça. E eu ainda morava na pensão.
Perguntei se ela estava com alguém. Ela disse que não. Que estava se recuperando. Trabalhava numa livraria. Nos despedimos e eu parti de volta para meus afazeres na repartição. Naquele dia, enquanto carimbava notas, não deixava de pensar aquela mulher, Cada encontro nosso ficava marcado como que esculpido na minha memória. Eu podia ouvir sua voz, ver seus olhos. Eu podia sentir cada lágrima dela correr pelo rosto perfeito que ela tinha. Eu só não podia parar de imaginar os lábios daquela mulher nos meus. O calor daquele corpo…
Parei de carimbar e fiquei apenas pensando.
No fim do expediente, quando bateu seis horas, saí em disparada para a pensão. Tomei um banho. Coloquei minha melhor roupa e fui até a casa dela. Bati palmas. Ela abriu a janela. Estava de camisola. Eu notei pela alça.
Apenas nos olhamos e não precisei dizer nada. Os olhos dela encontraram os meus. E ela apenas sorriu pra mim e compreendeu. Eu empurrei o portãozinho e entrei em silencio naquela casa. Nos eencontramos na sala. Ela se aproximou e eu enlacei o pescoço dela com os braços. Demos um beijo apaixonado. Nossos corações pareciam que iriam sair pela boca. Fizemos amor até o dia seguinte.
Nunca mais nos separamos.
FIM
Este foi mais um texto do experimento de coca-cola + abstinência + a primeira música que toca na playlist. Neste caso, a música foi Terezinha, do Chico Buarque cantado pela Maria Bethânia. (ouça aí pra ver se encaixa com o conto)
Excelente ; )
Eu sabia que conhecia essa Terezinha de algum lugar…
abraços
Essa coca cola é da boa =P
Ótimo texto pra começar a manhã.
Muito bem! a cantiga que virou música, que já foi peça e agora conto! Parabéns!!!
Bem bem interessante. Só achei o final um tico corrido, de supetão rs
Mas todo o resto muito bem desenvolvido. Fiquei imaginando antes se não era um dos contos da sua vida rs Mas pela época deu pr ver que não.
Muito bem escrito, meus parabéns
concordo com o khronos qnt ao final, mas achei muito bom tb ^^
“Este foi mais um texto do experimento de coca-cola + abstinência + a primeira música que toca na playlist”
heiuhieuheiuhe, sempre dá certo!
O final eu dei uma acelerada mesmo, pq achei que já tava virando livro, hehehe.
realmente, quando linkei para deixar um comentário, imaginei ver somente elogios, achei excelente o texto e pensei que seria o único a dizer q o final ficou um pouco mais abrupto em relação a todo o desenrolar da estória, onde lê-se um texto cheio de detalhes que permitem “ver” como que em um filme a estória. Mas então Philipe, não seria interessante um retrabalho do final?!, eu acho que merece viu!
“Elogios”!
tu é um gênio,cara..
no começo tb pensei que era um daqueles seus contos engraçados que só vc viveu..hehe
parabens..
Acho que sim, Victor. Uma detalhada maior no final é realmente é uma boa idéia, já que o pessoal gostou.
Acho que fui eu quem começou com a critica então, vamos lá =p
Espero não ter deixado você nervoso ou chateado rs, é que fico meio p da vida quando leem o que eu escrevo e recebo apenas um “lindo, mto bom” então, achei melhor comentar rs
E já que estava virando livro, que termine como começou, muito bem =]
Abraços e continue com o blog e suas bizarrices o/
Valeu Khronos, eu não fico chateado não, cara. Até se metem o pau, eu não esquento.
Só você pra me fazer ouvir Maria Bethânea às 4:36 da madrugada.
Heeeey…
Minha vó me cantava essa música. xD
Philipe, depois que eu li essa história, eu voltei a escrever. Queria agradecer pela inspiração, de verdade. :)
O prazer é meu.