A gente chamava ele de Raiden…

O moleque veio transferido de outra escola. No primeiro dia não falou com ninguém. Sentou lá atrás, “na dele”.

Parecia legal, mas evitou todas as tentativas de amizade. Ele usava um óculos fundo de garrafa meio esverdeado feio pra caralho e por isso uns moleques lá da outra turma implicavam com ele. Mas ele era tão sossegado que nem durou muito a encheção. Deram uns petelecos na orelha de abano dele, empurraram, essas coisas, mas ele não reagia. Ninguém quis chutar o cachorro morto.

Eu pouco falei com o Raiden. O tempo se encarregou de me fazer esquecer o nome de verdade dele. Seu apelido, entretanto, ficou registrado em minha memória para toda a eternidade. Não só na minha, mas com certeza na de toda a quarta-B, que era o nome da nossa turma.  O Raiden estudou pouco tempo lá com a gente, mas naqueles quinze dias, ele imprimiu sua marca (literalmente) na escola.

Era uma terça ou quarta-feira. A semana estava no meio e a galera tinha acabado de voltar do recreio. O Raiden nunca ia para o recreio. Ele ficava a sala, desenhando uns negócios loucos no caderno que ele nunca deixava ninguém ver. A gente chegava perto e ele já fechava e ficava olhando em silêncio pra nós com aqueles olhos apertados atras do vidro verde dos óculos, como esperando algo que nunca acontecia.

O Raiden era misterioso pra caramba. A mãe dele ninguém nunca viu. O pai também nunca foi na escola, segundo diziam… Quem levava ele era um homem  de terno preto que parava um carrão a uns dez metros da escola. Ele descia do carrão e entrava, cabisbaixo, sem emitir um único ruído. Ia para a sala, sentava-se na carteira e de lá só saía na hora de ir embora.  Por isso diziam que o Raiden era “mala”. O “mala” era um playboy rico. Aquele era nosso jeito de dizer que alguém estava acima do bem e do mal em termos de grana… Era o mala.

Mas como eu dizia, era tipo uma terça-feira e a galera tinha voltado pra sala. Ele estava lá desenhando e foi quando deu a merda.

A merda começou quando o professor de matemática demorou a entrar, porque deu algum problema  na família dele, que não sei o que foi, e ele ficou na secretaria. Daí que tava um fuzuê do caralho na quarta b. Na nossa turma, entre babacas, umas meninas meio assanhadas, os otários e sequelados, havia um moleque atentado pra caralho chamado Fábio. Seu codinome: Fabio mosquito. Não me pergunte o porquê. Eram anos estranhos.

Esse cara era um perigo. Ele correu ate a mesa do Raiden e agarrou o caderno. O Raiden nem teve tempo de fazer nada. O Fábio tomou o tal caderno dele, correu la pra frente e berrou: “O que a barata faz?”.

A turma, em uníssono, respondeu:

-VOOOOA!

Olhei para Raiden, estático, na mesa, agarrado, ancorado. Verdadeiramente catatônico.

Ele apenas assistia. Parecia não acreditar no que estava vendo. Não esboçou tristeza, não tentou evitar. Ficou parado tal como ficava quando os moleques zoavam ele. Parecia uma estátua de cera e a propósito, esqueci de comentar um característica muito bizarra dele que era aquela brancura que fazia o moleque parecer ainda mais feio. Era pálido feito uma vela. Uns até o chamavam de “palmito”, mas foi “Raiden” que realmente pegou.

-O que a barata faz? – Fabio perguntou novamente com o caderno nas mãos.

-VOOOOA!

E então eu vi, da minha mesa no canto, perto da janela, que o Fábio-mosquito ia fazer uma merda.

-Faz o que???

O povo repetia: -Voooooa!

Ele tacou o caderno do moleque lá no terreno baldio que era vizinho da escola. A galera correu pra janela. Minha carteira num segundo era só minha. No segundo seguinte, eu divida espaço com mais quatro moleques para ver onde tinha caído o caderno do Raiden. Para azar do moleque, caiu bem em cima dum telhado.

A zoeira recomeçou. A maior gritaria. Uns riam, outros apontavam. Eu me lembro de olhar e achar estranho aquele cara que não reagia. Não fez nada. Ficou parado como um boneco, olhando para a frente.

Entrou o inspetor. O povo não gostava dele. O apelido dele era Zecão Camburão. Um homem alto, estranho, careca, com um olho maior que o outro. Parecia ter saído dum filme de terror. Rígido, sua fama era de bater nos moleques quando não havia ninguém de maior autoridade vendo. Por isso eu me cagava de medo do Zecão.

Quando o Zecão entrou na sala, nego “piou fino”, como se diz. Cada um correu pra sua carteira. Até o Fábio-mosquito.

Era pro Zecão apenas segurar a galera pro professor Herculano voltar, mas por alguma razão que me escapa ao entendimento e cujo real significado só pode ser para dar uma dimensão de tragédia nessa pitoresca pérola de minha vida bizarra, ele resolveu dar uma… aula.

Zecão começou a falar do Brasil. E então, do nada se saiu com um “Ditado”. Mandou que todos escrevessem o que ele ditava e assim foi. Todos começamos a escrever sobre as cidades do Brasil, quando do nada o Zecão para e berra:

-Ou! Você! Pode começar a fazer o ditado, moleque!

Todo mundo olhou mas eu nem precisei olhar. Eu sabia. Ali estava o Raiden, ainda parado, congelado, do mesmo jeito que estava quando viu seu caderno voar pela janela uns quarenta centímetros acima de minha cabeça…

É engraçado essa coisa de um sexto sentido de que alguma coisa vai dar uma merda muito cabulosa. É um arrepio, uma eletricidade no ar, uma sensação de desconforto, de que algo esta fora do lugar e que tudo pode mudar de uma hora para outra.

-Tô falando com você! Ei. Ei moleque! Olha pra mim, quatro-olho! – Ele gritava, com a régua de madeira na mão.

Raiden estava imóvel.

A molecada se entreolhava sem entender.

Zecão Camburão avançou pelo corredor do meio e foi até a mesa do Raiden. Pegou a régua e desferiu uma vigorosa porrada na mesa dele.

Diante do estalo, todo mundo pulou. Lembro como se fosse hoje, da cara de pavor de uma menina chamada Rejane. Ela tinha os olhos mais arregalados que uma pessoa conseguiria ter. Também pudera. Ali todos tínhamos certeza que o Raiden ia se foder.

-Cadê teu caderno? Cadê, porra?

Um dos moleques tentou avisar que o Fabio mosquito tinha jogado o caderno da janela, mas Zecão mandou ele calar a boca. Meu ímpeto era de correr, fugir dali. Mas eu não podia. Ninguém podia. Todo mundo só esperava que o Raiden parasse com a babaquice e respondesse ao Zecão maluco… Mas ele não fez isso.

Então o Zecão agarrou o Raiden pelo braço e sacudiu o moleque. Ele parecia um boneco de pano.

-Ta expulso de sala! Sai! Sai! – Gritava Zecão sacudindo-o pelo braço.

Raiden se recompôs. Arrumou os óculos que estavam caindo. Mexeu no cabelo. Foi saindo cabisbaixo. E… Não sei o que deu na turma. O povo, talvez motivado pelo alivio, começou a zoar e rir.

-Cala a boca! Cala a bocaaaa! -Berrou o inspetor com a régua na mão, como se fosse uma espada, mas visivelmente ele estava perdendo o controle da situação.

Então ele empurrou o Raiden. Ele foi empurrando o moleque na direção da porta. E foi nessa hora que eu vi uma das coisas mais estranhas da minha vida: O Raiden olhou para trás e primeiro, eu achei que ele ia vomitar, mas ele não vomitou. Ele arregalou a boca e dela eu vi sair um puta dum raio laranja que estourou num brilho tão forte que tudo ficou branco na sala. O raio que atingiu em cheio o peito do Zecão Camburão e o atravessou fez uma queimadura na beira do quatro-negro que nunca mais saiu. Foi um estrondo horrível.

O velho caiu pra trás estatelado.  Voou quase meio metro. O barulho me deixou surdo por um tempo, mas quando voltei a ouvir, alguns segundos depois,  vi que as risadas de outrora viraram uma gritaria sem fim. O velho jazia quase carbonizado no chão. O peito havia se tornado um buraco escuro de onde uma fumaça nauseabunda se desprendia.

Raiden estava ali, parado, os olhos arregalados apontados para o corpo inerte de Zecão.

Ninguém ousou falar com ele. Raiden caminhou cabisbaixo para fora da sala bem no momento em que o pessoal da sala do lado começou a se juntar diante da porta. Todo mundo queria ver a merda que deu na quarta-B.  O cheiro da carne humana era desgraçado. Foi a primeira vez que o senti. O jaleco ainda queimava em brasinhas. A carne queimada me deu enjoo. Muitas meninas estavam chorando. Uns dois garotos estavam abaixados sob as carteiras, temendo outra explosão. Foi quase uma bomba. Um barulho ensurdecedor. Deu bombeiro, deu policia, deu a porra toda que você puder imaginar e mais um pouco.  Depois veio um coroa que mandou chamar um a um da sala. Perguntou coisas e no final ele me disse que era pra eu nunca contar o que tinha acontecido, senão eu seria preso. Eu nunca contei. Saiu no jornal que o Zecão teve uma parada do coração. Ninguém nunca falou do raio que o moleque vomitou nele.

Depois daquele dia, o Raiden não voltou mais pra escola. Mudaram ele de colégio, parece. O Zecão morreu. Morreu ali mesmo, diante da gente.

O moleque virou uma  espécie de celebridade-do-qual-jamais-se-fala. Nunca entendemos exatamente o que se passou naquela sala de aula. Que merda foi aquela que o Raiden soltou no seu Zecão…

E então, durante anos, sempre um ou outro amigo dos velhos tempos sacava a pergunta:

-“Pô lembra do Raiden? Muito doido, né?”

-“É…”

Aí mudávamos de assunto.

FIM

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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