Gringa – Parte 1

A apertada  embarcação balançava conforme era açoitada pelas pequenas ondas em meio a água azul da Baía da Ilha Grande. O sol estava inclemente nos últimos dias, mas especialmente naquele dia parecia um maçarico de acetileno.
Alex limpou o suor que escorria pela testa. Tomou um gole da garrafa e fez cara feia.

-Brrrllllll! Essa é da boa! …Puta que pariu, essa porra não vai chegar nunca?

Evandro parecia impassível. Os olhos fixos nas pequenas ondas. Uma mão segurava no barco, a outra agarrada ao violão de sete cordas, cuidadosamente embalado na capa de couro.

Uns peixes pularam mais à frente. O experiente Manel apenas apontou com o nariz que mais parecia uma batata, movendo-o para cima. -Alá.

-O que é aquilo? Tainha?

-Tainha. – O velho marujo concordou, dando uma tragada no cigarro e soltando a fumaça que voou rápido para longe. O vento estava forte, o que aliviava um pouco o calor.

Do outro lado do pequeno barco Evandro continuava estático.

-O menino tá só curtindo o visual. – Disse Manel, rindo com os poucos dentes que restavam.
Os dois riram dele, mas Evandro estava concentrado em seus próprios problemas.

Logo o silencio voltou a reinar no barquinho engolfado pelo vento e pelo barulho rítmico do pequeno motor de popa.

-Cês vão ficar até quando lá?

-Estamos vendo isso aí, seu Manel. Né Evandro?

-É. A princípio umas duas semanas, talvez um mês.  – Disse Evandro sem tirar os olhos do mar.

-Nesse caso eu vou avisar vocês que aí tem pouca água, hein? Na ilha não tem água…

Os três olharam os mantimentos no centro do barco. Havia ali diversos garrafões de água.
-O senhor acha pouca mesmo? – Questionou Alex.

-Pra um mês não dá não. Com certeza não dá! Eu disse procêis, né? …Água lá que é o problema.

-Ah, mas é uma ilha, seu Manel. Tem água à vontade. – Riu Alex.

-Bebe pra ver o piriri que vai dar, meu filho! – Respondeu o barqueiro com o leme na mão. Todos riram. – O barqueiro apontou no horizonte. – Alá! Alá. Ela é ali, perto daquelas ilhotas ali.
-Onde? Não estou vendo.

-Nas pedras, onde forma a espuma. Lá, ó! Olha as gaivotas. Viu ali?

-Ah. – Disse Evandro com um sorriso. Ele arrumou os óculos de armação redonda no rosto, empurrando com o dedo.

-Bom, eu vou fazer o seguinte, eu vou deixar vocês lá na Atlas e volto na semana que vem, com mais água e os mantimentos que vocês mandarem trazer.
-Isso. Isso mesmo. Assim fica bom, né Evandro?

Evandro concordou em silêncio.

-Tô vendo que o garoto não é muito de conversa. – Gemeu Manel, baforando o cigarro com os dedos amarelos, curtidos na nicotina.

-Ele parece garoto mas ele é da minha idade, seu Manel. – Riu Alex.
-Porra tu tá acabado hein, meu filho?  – O velho sem dentes riu às gargalhadas.

Evandro começou a rir também.

-Acabado é o caralho! Olha esse muque aqui, seu Manel. Olha aí! Olha aí! – Alex se levantou no barco e começou a fazer poses de fisiculturista.

-Ou! Ou! Senta aí! Senta aí, vai virar o barco ô caralho!  – Gritou Evandro quando o barco balançou.

Alex sentou o corpo atlético repleto de tatuagens na sequencia: – Tá vendo? Isso aí é inveja. Inveja pura! A mulezada fica doida! O senhor sabe.

-Não sei de nada não. Me tira dessa, incrível Hulk! – Riu o barqueiro.

A ilha estava se aproximando rápido.

– Essa então é a Atlas. A famosa ilha Atlas!

-Bom, os pessoal da costa ainda chama ela pelo nome antigo, “ilha da ganchada”. – Disse o velho, ajustando o regulador do motor na mão.

– É maior do que eu esperava pelas fotos.  – Disse Evandro.

-É um absurdo de linda, cara! Olha isso! Olha essa mata ali! – Alex tentou ficar em pé no barco, para ver melhor.

-Ou! Senta, senta! Não, não! Senta! – O velho ralhou.

-O negócio da ganchada pegou muito mal, né? – O homem atlético comentou.

Os pessoal da vila acha que ela é amaldiçoada. E tem outra, ela é muito pra fora. Gasta muito combustível de ir lá. O povo prefere outras ilhas, até porque a praia lá é de pedra…

-Por isso que tava barata.  – Alex riu. Evandro olhou para Alex por cima das lentes e não disse nada.

-Cês compraram? Compraram a ganchada mesmo? No duro? Ninguém vai acredi…

-Nem no duro nem no mole. – Evandro interrompeu o barqueiro. -… Demos a entrada, o restante ainda vamos financiar com o banco.

-Sabe garotos, aqui nesse mar tem 365 ilhas. Uma ilha para cada dia do ano, como eles dizem.  Eu não vou desanimar mas ocêis compraram a pior de todas. Se tivesse falado comigo, eu tinha desenrolado uma ilha bem melhor procêis. O Doutor Clécio lá de Niterói ta vendendo a ilha deles porque dizem lá na vila que ele vai embora pros lado de Portugal. Depois que tentaram sequestrar a filha dele… O Homi perdeu o tesão. Sabe cuméquié?  A ilha deles lá é dupla e com praia de pedra e praia de areia branca fina. De um lado pedra do outro areia. Areia da boa! Coisa da melhor qualidade! É tipo dois morro assim, tipo duas teta de mulher. Imagina duas teta? Sabe como que é duas teta assim, pro alto?

-Hahaha imagino. – Disse Alex.

-E essa fica onde?

-Bom, a Ilha do doutor Clécio,  é menor que a ganchada, mas ela tem luz e água e  a casa fica aqui no peito direito. O resto é todo preservação. Na outra teta não pode construir.  Já a prainha separa as duas tetas aqui no meio, sabe? Fica na Baía da Ribeira, lá perto da Usina.

-Ah, mas a nossa pira é justamente que essa ilha aqui, além de estar num preço que não era uma maluquice como as outras, não tem nem água nem luz. Se tivesse, o preço era duas vezes maior.  – Alex parecia irritado.

-Duas? Bota umas seis vezes aí. – Completou Evandro.

-Mas como ela é muito pra fora, ela não tem como ter água lá de Angra de jeito nenhum. – O velho estava agora desligando o motor de popa. A enorme ilha Atlas era agora um mundo de vegetação tropical montado em um rochedo de cor marrom e cinza, mesclado com grandes veios de rocha de quartzo amarelada, que se acentuava pelas algas ressecadas.  O barco se aproximava devagar de um píer de pedra e madeira bastante precário.  – Com cuidado, com cuidado. Fiquem sentados… Peraí. – Dizia o experiente barqueiro.

Ele logo alcançou com o pé uma corda que parecia estar nas últimas e com um rápido movimento laçou um vergalhão grosso e enferrujado, dobrado na forma de um “U” que se projetava dos troncos de madeira, onde milhões de ostras haviam se fixado.  O velho disse enquanto puxava a corda para travar o barquinho:

– Aqui tem que ter cuidado. Quem não tem as manha, não entra não!

-E não tem cisterna?

-Não tem. Sabe que não tem? Nunca finalizaram. – Disse Manel apertando bem o nó da atracação.  – O pessoal da ilha morreu antes de conseguirem terminar, parece.
O velho foi o primeiro a desembarcar, pulando no píer. O madeiramento estalou e gemeu.

-Morreram? Morreram? O senhor disse que eles morreram é? Mas morreram como? Como que foi? – Alex questionou.

-O vendedor não contou procêis?

-Não foi assim, foi uma transação com o banco… – Evandro parecia, preocupado.

Cêis vão ter que arrumar essa porra aí, ó!  – o velho apontou as madeiras frouxas do píer.

-Pelo visto vamos ter que arrumar bem mais que isso, seu Manel! – Gemeu Evandro, tentando colocar o violão com cuidado sobre o píer.

Alex ficou no barco para ajudar a passar os mantimentos. Eram muitos sacos. Havia um pouco de tudo. Bananas, seis garrafões de água, sal açúcar, óleo, sabonetes, bastante macarrão, algumas panelas, mochilas, colchonetes, um amarrado de esteira com diversas ferramentas, picareta, pá, machado, cordas, baldes. Eram sacos e mais sacos de coisas.
Evandro ia pegando cada coisa e passando para seu Manel, que corria com cada coisa pelo píer e ia colocando sobre as pedras da laje de acesso.
Depois de alguns minutos de muito exercício eles tinham enfim esvaziado o pequeno barco.

Manel bateu as mãos, limpando a areia. – Nossa… Que aventura! Ufa!

-Mas o senhor não falou daquele negócio…

-Que negócio?

-Dos caras que… Morreram.

-Ah… Vem, é por aqui. Vai olhando aqui a trilha, meu filho. Cuidado onde pisa. Muito cuidado que tem cobra pra caralho na ilha!… Sobre o pessoal, o que falam na vila é que o barco virou. História triste, hein? Era uma família, eles compraram essa ilha e estavam começando a construir. Mas aqui fora da Baía o mar vira do nada. Uma hora entra um sudoeste e fode com tudo. E aí o pessoal sumiu. Os barqueiros que vinham trazer a água chegaram no píer e não tinha ninguém, nem o barco deles tava aqui. Eles tinham um bote da Cobrasma… Bote bão, rapá. Motor Mercury de 500…

-Mas e aí eles sumiram foi? Não acharam os corpos?

-Não. Sumiram. Olha, passa com cuidado aqui, por aqui. Pisa nessa pedra. Cuidado que escorrega meu filho. Passa o vilão pra cá. Pode passar que eu pego com cuidado.

-Cuidado que essa é a namorada dele! Hahaha…

-Vai tomar no cu, Alex.

-Isso. Por aqui. Vem. Mas eu ia dizendo, o mar deve ter virado, e o barco adernou. Acabou que o bote até acharam boiando lá pra fora, meses depois … O bote apareceu sabe onde? Lá na ilha da Vitória, perto de Ubatuba. Sem ninguém, claro.

-Mas teve busca?

-Ter teve, mas sabe como é… É aquilo, né? Os pessoal não sabia quando que o bote tinha virado… Deram umas rodadas e pronto. Daí depois vieram as conversa fiada desse povo, né? Caiçara é foda, o senhor sabe.

-Já imagino. História de fantasmas.

-Acertou em cheio. Começaram a espalhar que os fantasmas da família apareciam aqui de noite. Logo, ninguém mais veio. O banco tomou na justiça a ilha pra vender pra algum troux… Desculpa.

-Tudo bem. Tudo bem. – Respondeu Evandro, ofegando.

-Passa a mochila pra cá. – Disse Alex, puxando a mochila das costas de Evandro.

-Isso que é amigo! – Riu o marujo, mostrando os poucos dentes. -Temos que ir mais rápido, porque já são quase quatro horas. Não vou ficar aqui até depois de cinco e meia nem fodendo porque é perigoso. – O velho falava enquanto ia carregando um garrafão de agua em cada mão e com duas mochilas nas costas.
Evandro notou que apesar de parecer ter 70 anos, seu Manel era extremamente forte e sua constituição atarracada, a pele curtida pelo sol, as mãos que eram cicatrizes e calos puros, mostravam uma vida sofrida de pescador na região.

-O senhor viveu a vida toda por aqui?

-Não, não. Eu sou lá de Visconde de Mauá.

-Uai, sô! E como veio parar aqui na Costa Verde?

-Buceta. Buceta, meu filho… – Os homens riram. Sem pestanejar, Manel continuou: –  Vim atras duma moça chamada Lurdes. Eu vendia jornal, quando dei por mim, eu era agora pescador. E o pior…

-Já sei. A Lurdes saiu fora! – Disse Evandro.

-Uai, como é que cê sabe?

-A perfídia ingrata das mulheres… Parece coisa do Nelson Rodrigues.- Riu Evandro.

-Ô seu Alex, o menino ta falando coisa com coisa! Ajuda ele ali que o vilão deve de tá pesado.

Os três finalmente saíram da estreita trilha de mata fechada que deu para uma clareira com mato na altura dos joelhos. Ali estava uma casinha muito bonitinha. Ela era precária e rústica, mas dava para ver algum cuidado. Além de muitas janelas em estilo colonial a pintura branca mofada em alguns pontos, e muitas teias de aranha nas telhas, onde se notava uma ou outra faltando. A casa estava em estado de abandono. As janelas haviam apodrecido e um limo verde claro se espalhava por todo lado.

-Tem que tomar cuidado com os rato. Ilha dá muito rato.

-Mas eu não tenho medo de rato! Eu meto logo uma bica e…

-O rato não é o problema. O problema é a cobra que come o rato, rapaz. Uma picadura e nenhum desses seus muque aí resolve. Já levou picadura?

Evandro olhou sorrindo para trás. O velho Manel ria com os poucos dentes amarelos que ainda restavam enquanto acendia um novo cigarro.

-Sai pra lá que pica-dura né meu negócio não! – Disse Alex, entrando com cuidado na casa.

A porta parecia emperrada, mas uma puxada com mais vigor logo desmontou a grossa camada de ferrugem das dobradiças e a porta com um gemido choroso que mais lembrava um carro de boi, ela finalmente abriu.

– O cheiro é do mais puro mofo! – Disse Alex.
– Que bonitinha… Tá bem melhor que deu pra ver pelas fotos dos caras do banco! – Evandro parecia deslumbrado. Logo, ele começou a abrir as janelas coloniais que ostentavam uma carcomida tinta azul.

-Evandro! – Alex gritou lá de fora.

-Fala!

-Vai pegando as paradas aqui que eu vou lá no píer, com o Manel pegar os outros garrafões e as ferramentas.

Evandro concordou, enquanto mentalmente dava graças a Deus de não ter que voltar todos os cinquenta metros de trilha para pegar mais coisas pesadas. Ele foi abrindo a casa e encontrou uma vassoura. Logo começou a varrer a grossa camada de pó e areia do mar que parecia se infiltrar magicamente em todos os cantos da casa.

Enquanto isso, na trilha de volta, Alex e o velho marinheiro conversavam.

-Eu anotei aí no papel o meu telefone. De vez em quando aqui pega sinal. Não é sempre que pega. Lá na janela da frente , como é alto, perto da varanda, lá pega.

-Certo. Eu  ligo então para o senhor, provavelmente na quinta, aí o senhor faz as compras lá no mercadinho e traz com a notinha no sábado. A gente já deixa pré-marcado. Mas eu ligo se pintar alguma coisa que a gente precisa e esqueceu…

-Tudo bem! Eu vou trazer também mais umas pilhas. E bota sete léguas. Aqui na ilha sem as bota, você tá pedindo pra morrer. Eu acho que vocês tinham que ter trazido mais lanternas! Só duas é pouco. Se uma der defeito, vocês vão ficar tudo embananado.

-Mas nossa lanterna é da boa. Ilumina muito. Se o senhor quiser esperar pra ver…

-Deus me livre e guarde que eu não passo a noite nessa ilha aqui nem pelo cacete!

-Ah,  vai dizer que um homem valente, do mar como o senhor tá com medinho dessas histórias que o povo conta? Tem medo de fantasma? Ta com medo de ver quem? O Ulysses Guimarães?

-Não, não, meu filho. Hahahaha. Ulysses…  Né isso não, seu Alex. Aqui o tempo vira. A ilha é muito pra fora. Eu disse. Ela é perigosa. Na costa verde o tempo altera muito. Entra um sudoeste aí… fudeu.

-Vira essa boca pra lá seu Manel.

-Vai dar tudo certo. Já deu. Já deu. Olha a ilha é uma jóia. Só tá mal cuidada. Deixa eu te falar. Eles começaram a construir a cisterna mas não acabaram. Eu posso ver uma empreitada aí com meu concunhado para a gente finalizar a cisterna. Ela fica do lado direito da casa perto dos coqueiros.

-Pô, pode ser. Pode ser. Conversa lá e faz um preço bom pro seu camarada aqui. Eu tenho que ver com o Evandro. Ele que é o homem do dinheiro.

-Logo vi… Aquele jeito quietão dele, né? Acho que ele não foi com a minha cara, seu Alex.

-Ele sempre foi assim. Liga não. Ele piorou quando a família dele morreu.

-Morreu? Sério?

-Incêndio. Pegou fogo na casa e morreu todo mundo. Daí ele recebeu a herança e investiu nessa ilha. O plano da gente é montar aqui uma pousada ecológica. Uma pegada mais natural… Sem luz.

-Sem luz? Quem vai querer ir para uma casa numa ilha cheia de cobra e sem luz… E ainda mais que o povo diz que é mal-assombrada, seu Alex? Ocêis são tudo doido. Povo doido da cidade!

Eles chegaram ao píer e pegaram os garrafões. Alex com desenvoltura, puxou os amarrados de ferramentas e colocou nas costas.

Vamo que vamo!

Conforme eles avançavam pela trilha, ouviram uma musica.

-Que isso? – Manel olhava assustado.

-Ele já tá tocando aquela merda de novo!  – Disse Alex, carregando os garrafões de água como se fossem leves.

-Uau, ele toca bem.

-É… Pelo menos isso.

Os dois chegaram na casa e Evandro estava na varanda sentado num toco de árvore dedilhando o violão.

-Porra. Em vez de arrumar o barraco, tu já tá aí no desfrute, moleque?

-Vocês estavam demorando.

Vamo lá.  Vamo lá pegar o que tá faltando e o seu Manel vai de vez.

-Espera, olha isso aqui.

-Isso aqui o que?  Que isso?

-Revistas. Revistas antigas da Manchete. Olha, Carnaval 88! – Evandro estendeu a enorme revista, que tinha Claudia Raia e Luma de Oliveira fantasiadas na capa.

Alex folheou a revista. – Que gostosa… Porra o presidente era o Sarney, bicho. Olha isso, cerveja Malt 90.  Nem existe mais essa merda.

-Tomei muito isso em Paty do Alferes. Era uma Kaiser piorada…- Disse Manel, tentando de rabo de olho ver a Luma de Oliveira.

-Mas não era em Visconde de Mauá?

-Mauá foi antes. Depois de Mauá eu trabalhei em Paty do Alferes, como verdureiro… Aqui, deixa o menino aí. Vamo lá no píer que eu ajudo. A musica do garoto tava bonita. E não leva a mal não, mas o garoto não tem disposição, né? Só tem o pesado lá agora…

-O meu lance é outro. É mental.  – Respondeu Evandro, fazendo um solo no violão.

-Patrão é patrão! Vamos lá. – Exclamou Alex, resignado.

-O dia tá acabando rápido. Vamo correndo, pq eu tenho que meter o pé.

Os dois voltaram a se embrenhar no mato, deixando Evandro na calma paz de tocar seu violão. Enquanto tocava, Evandro percebeu um bom numero de pernilongos, prenunciando uma noite complicada. O ar estava abafado e sem vento. Felizmente num baú dentro da casa, no canto da precária sala, onde as revistas Manchete estavam descansando por décadas, havia um monte de cortinados.

Minutos depois, lá no Píer, Alex e Manel encontraram os últimos galões de água e bolsas de mantimentos. Alex amarrou as bolsas nas costas, enfiando os braços pelas alças, como se fosse uma enorme mochila.

-Quer que eu leve esses últimos dois pra lá? – Perguntou Manel, já na esperança de uma negativa.

-Tá tranquilo, seu Manel. Pode ir. Faço um bate e volta rapidinho na casa, já memorizei a trilha. Deixa comigo.

-Beleza, melhor eu já ir indo, porque essa época escurece rápido. Ficamos combinados assim, sobre o lance lá dos mantimentos. Eu ligo.

-Tá legal, seu Alex. Agora… – Manel se aproximou discretamente de Alex. – “Aquela” encomenda, sabe? Ela tá aí.

-Opa. conseguiu? Rápido assim?

-Tenho meus contatos, seu Alex…

-Grande. E ficou aquele valor mesmo?

-Sim, o cara ainda mandou umas balas extras. – Ele disse, já pulando para dentro do barco. Debaixo do passadiço frontal ele retirou uma caixa de ferramentas. Dentro dela havia um embrulho de plástico. De dentro do embrulho ele tirou uma flanela embolada que revelou uma arma preta, uma revólver Taurus 380 e mais um punhado de munição.

-Que linda. Olha aí o ferro… – Disse Alex pegando a arma.

-Cuidado. Veja lá hein?

-Opa. Tá tranquilo. Tô acostumado.  Já fui PM, sabia?

-É mesmo? Deve ter muita aventura, hein?

-É… Mas achei uma merda e saí fora. Faz um tempo já. Aquilo não é vida não… Mas eu não ia vir pra um lugar desse sem ter uma proteção. – Alex  enfiou o revólver no bolso lateral do bermudão.

Manel desamarrou as cordas do Píer e empurrou com o pé contra a madeira. O barquinho logo se afastou.
O velho marinheiro viu o atlético homem ficando cada vez mais distante, em pé sobre o píer carcomido. Ele ligou o motor com um puxão certeiro na alavanca. Logo o motor deu sinal de vida. Manel acenou de longe para Alex, e acelerou de volta para o continente.

A ilha Atlas foi ficando mais e mais distante, até finalmente sumir atrás das ondas do horizonte. O sol já havia sumido completamente e uma escuridão azul escuro ia lentamente se fundindo com a água do mar ao longe.

Enquanto acendia um cigarro, com dificuldade de acertar a chama na ponta do Derby, o velho marujo praguejou. Havia perdido muito tempo e não ganhou nem um agradinho.

-Muquiranas!

 

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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