Gringa – Parte 2

Alex chegou na porta da casa com os dois últimos galões, um em cada mão e o sacão de mantimentos nas costas. Parecia um burro de carga.

Imediatamente Alex estranhou que o violão estava no chão. Era incomum, pois Evandro tinha um ciúme doentio daquele violão, que fora um presente do avô dele, o famoso  conde de Marialva. Quando Evandro fez 16 anos o avô o presenteou com o instrumento, originalmente encomendado em 1971 a Robert Bouchet, um famoso Luthier Francês. O violão estava num antiquário do Monsenheur Perrin, na Rue du Faubourg Saint-Honoré e custou uma pequena fortuna. Após a restauração cuidadosa, o conde presenteou seu neto, pouco antes de morrer de uma parada cardíaca. Aquele instrumento representava o elo de ligação de Evandro com o avô, de modo que ele nunca largaria o instrumento no chão.

Imediatamente, Alex largou os galões no chão e se livrou do enorme sacolão o mais rápido que ele conseguiu, para então correr gritando por Evandro. Ele não estava na casa. Evandro havia desaparecido.  Alex chamou e não ouviu resposta. Ele pegou a ama do bolso, municiou o revolver e o colocou na cintura, junto às costas musculosas.

Alex andou pela propriedade, se embrenhando no mato alto. Enquanto andava, pensava se havia mais alguém naquela ilha com eles. Talvez estivessem apenas esperando uma oportunidade de atacar.   Se isso fosse verdade, ele seria a “bola da vez”. A sensação na ilha era de ser observado. Talvez fosse só uma piração. Alex andou e chegou onde estavam as fundações da grande cisterna. Ainda existiam fragmentos da obra com material, tábuas podres, restos de uma coisa que foi um carrinho de mão carcomido pela ferrugem. Num canto havia areia, sacos de cimento que agora eram blocos de pedra, tudo estava coberto de plantas, e pequenas trepadeiras com florezinhas amarelas se espalhavam para todo lugar.

A única coisa que parecia magicamente intacta era uma pequena montanha de pedra britada, jazendo sob o manto de trepadeiras floridas.

Estava escurecendo muito rápido e já não se via muita coisa.  Os pernilongos estavam atacando. Eventualmente Alex dava tapas na própria cara.

Atrás dele, um estalo.  O som chamou sua atenção e Alex fez menção de sacar a arma, mas ao se virar deu de cara com Evandro, surgindo de uma verdadeira cortina de plantas, carregando madeiras podres. Ele tinha um pequeno monte de galhos nos braços.

-Porra filha da puta!

-Que?

-Onde você tava, Evandro?

-Fui cagar, ué.

-Cagar?

-Aquele pastel da Vila, maluco. Deu merda na minha barriga! Porra suei frio.

-Falei pra pedir de queijo, seu burro. Bem feito… Cheguei vi seu violão no chão, fiquei preocupado. Mas que madeiras são essas aí?

-Mermão, a gente tem que faze uma fogueira. Essa porra ta lotada de pernilongo. Olha aí.- Disse, sacudindo a cabeça, tentando afastar os insetos voadores.

-Eles estão com sede.

Os dois voltaram pelo mato na direção da casa.

-Tu cagou onde? Na casa?

-Não. O problema me impediu de chegar ao banheiro, aliás é mais seguro cagarmos aí no mato por enquanto. Tinha uma lacraia da grossura do meu dedo ali no banheiro.

-Porra, maluco. Agora que não vou dormir direito nessa merda.

Os dois voltaram para a casa. Evandro guardou o violão na capa. Alex começou a colocar as  coisas na cozinha. Montaram o pequeno fogareiro de camping. Era um dispositivo portátil com uma única boca que funcionava com duas latinhas de gás propano. Após montarem o fogareiro, a primeira providência foi ligar um lampião de gás… O que se provou uma missão complicada.

-Não tá acendendo.

-Gira aqui o negocinho.

-Não adianta. Não liga essa merda. – Disse Alex iluminando o objeto com uma das lanternas.  – Acho que ta com defeito.

-Deve ter uma trava em algum lugar. Não veio manual?

-Não sei, não tem nenhum manual nessa bosta. Maldita seja a “Casa dos Pescadores”!

-Será que o velho vacilão vendeu pra gente um bujãozinho vazio?

-Puta que pariu. É isso! O cara pegou o bujão errado. Tá liberada válvula olha. Não ta passando gás.

-Ai meu caralho.

-Calma, calma. Não vai adiantar. Ou peraí. Tá maluco caralho?

Alex jogou o botijão com o lampião e tudo pela janela. O bagulho bateu no mato e desceu rolando na escuridão.

-Merda! Merda! – Alex foi até a bolsa. Pegou a garrafa de pinga e deu uma golada.

-Porra tu não pode ser assim, maluco.  Olha aí. Agora que fudeu! Vou ter que comprar tudo de novo. Era só mandar o velho trazer um bujão cheio, porra. A gente tem as lanternas, tem vela… Não precisava, hein?

-Não enche. Cala a boca. Me deixa.

-Joga o isqueiro aí pra mim, vacilão. – Disse Evandro, levantando-se do banquinho de madeira.  Alex fuçou na bolsa e tirou o pequeno objeto. Ele estendeu ao amigo.

Evandro pegou o isqueiro, passou a mão numa das revistas da pilha e foi lá pra fora. Ele logo montou as madeiras em um pequeno montinho circular, como uma cabana e encheu de papel embolado por baixo, que rasgava das revistas.

Alex chegou trazendo a vassoura. Ele começou a varrer com violência as folhas do chão, abrindo uma clareira ao redor da fogueira. -Tem que limpar a área! A gente nunca acampa no meio das folhas porque pode ter qualquer porra do capeta aí debaixo delas!

Com o isqueiro Evandro acendeu uma beiradinha e logo uma sibilante chama alaranjada iria carcomer a face amarrotada de Amaury Júnior. O fogo se espalhou rápido, e em alguns minutos, uma pequena fogueira estava pronta ao lado da varanda.
O fogo crepitava em grande beleza, soltando pequenos pontinhos luminosos que subiam na fumaça escura para o céu completamente escuro.
Alex chegou trazendo umas latas. Sentou ao lado do fogo, abriu as latas e tirou salsichas tipo Viena, enlatadas.

-Adoro essa porra – Disse, com a boca cheia delas.

Evandro foi até a sacola na cozinha e trouxe uma lata de Coca-Cola quente, um pão e um pequeno embrulho, de onde tirou fatias de queijo e umas outras de salame.

-Tu vai comer essa porra depois do piriri mermo?

-Vou seguir o plano. O plano é o plano.

-Ah sim… “O plano é o plano”… Você é previsível, cara! Já te falaram isso? – Deu outra golada na garrafa de pinga e fez uma cara feia.

-E você não é com esses rompantes malucos? Fala isso lá pro lampião. Tu devia parar de beber esse negócio aí.

-“Foi o cão que botou pra nóis bebêr!” – Ele riu e tomou mais uma.

Evandro abriu a latinha de refrigerante e ficou tomando e olhando o fogo.  Com a fogueira os pernilongos estavam longe o que deu um alívio. Por alguns instantes, só se ouvia a barulheira da mata, as ondas batendo lá em baixo e o crepitar do fogo queimando as madeiras podres.  Finalmente, Alex rompeu o silêncio.

-Temos que fazer o planejamento do lance de amanhã.

-Com certeza. Acho que a primeira coisa vai ser a gente começar a trabalhar na casa para podermos dormir lá dentro. Hoje a gente fica na barraca aqui fora. Isso é, se a porra da barraca “arma fácil” funcionar. Se for igual a bosta do Lampião sem gás…
-Tem que dar uma limpeza geral. Esse negocio de lacraia aí… Cobra eu ate aguento, mas essa porra cheia de perninha, puta que pariu.
Evandro olhou as estrelas. Era uma noite muito estrelada.
-Venta pouco, né? Achei que ia ser uma ventania fodida, tipo Cabo Frio. – Alex jogou um galho nas chamas.

-Deve ser a mata ao redor, ela deve fazer uma parede. Acho que temos que montar o lance assim: Amanhã eu vou e trabalho na limpeza da casa e tu fica aí em volta com o machado e corta essas árvores da frente para o vento chegar. Esses pernilongos com o vento vão ter mais trabalho.
-Espero que sim, já que esse spray da loja não ajudou em nada. Eles picam com repelente e os carai.
-Se cortar aquelas duas ali, e a gente der uma baixada no matagal, acho que da varanda vai dar pra ver o mar. Amanhã temos que fazer também um reconhecimento.

-Vou cortar essa frente toda aqui. Bom que a gente já começa a estocar lenha. Temos que deixar secando uns meses, e fazemos um montinho ali atras da casa. Pra ter fogueira todo dia, precisamos de muita madeira.
-Olha aí, madeira é o que não falta. Amanhã, assim que eu acabar de dar a faxina, eu vou lá e te ajudo com o facão, vou dar uma abaixada no mato e tu fica nas árvores maiores.

Alex levantou-se.

-Que?

-Vou buscar o pacote da barraca e os colchonetes.

-Beleza.

Minutos depois os dois conseguiam finalmente entender o manual, iluminado pelo fogo. O sistema de montagem da barraca era bem prático e num passe de mágica, ela fez “plop” e se montou.

-Não é muito grande.

-É o que temos. Pelo menos, para essa noite vai servir bem. Amanhã vamos dar uma olhada no telhado. Tem umas telhas lá perto da obra. Acho que vai dar pra fechar os buracos onde os galhos quebraram as telhas.

Os dois se ajeitaram apertados na barraca, um de costas para o outro.

Após um breve silêncio Alex arrotou e disse: Cara temos que comprar uma lancha hein?

-Lancha?

-Lancha, porra.

-Não serve um barco? Tipo o do véio? – Evandro questionou.

-Cara, fala sério. Visualiza. Imagina a gente trazendo os cliente gringo naquele barquinho de merda no meio do mar…. (ele imitou) “top,top,top,top”… Eu estava com o cu na mão, doido.

Evandro começou a rir. -Rapaz, eu vou te falar que quando começou a dar umas ondas lá no meião eu também fiquei com medo. Mas o coroa é firmeza.

-A lancha vai dar mais confiança na galera, é mais seguro e o percurso fica mais rápido. A gente serve uns birinaite, e os gringo vêm na base da caipirinha. Nem vão sentir. Quando eles virem, chegou.

-Tem razão. A lancha vai fazer sentido, porque a ilha tá muito afastada da costa. Fora que ela permite trazer mais material. A gente vai ter que trazer muita coisa, e acho que não tem caladro ali no píer para uma escuna.

-Pffff… Escuna. Tá maluco, Evandro? Tu ouviu o que o cara lá da vila falou? Ninguém topa trazer nada pra cá. Os caras passam longe. O único doido que topa essa bosta é o tal seu Manel.  Só lancha mesmo. Barco grande nem deve chegar por causa do fundo ali.

-Tem que ver se tem profundidade.  Parecia que tinha umas pedras no fundo.

-Verdade. Aquele píer ta nas últimas. Temos que arrumar aquilo lá também, porque daqui a pouco vai ser impossível atracar qualquer merda nele.

-Um troço que precisamos fazer é amanhã a gente dar uma olhada geral, com calma. Ir anotando tudo. A primeira coisa é seguir com o plano que você fez. A gente monta nossa estrutura básica e só então passamos a pensar no negócio.

-O plano é o plano. – Disse Evandro, virando-se para dormir.

Quando era por volta das três da manhã , um gostoso vento fresco do mar soprou, tornando a noite mais agradável. Os pernilongos deram um descanso e Evandro abriu os olhos com uma forte luz do sol filtrando pela copa das árvores que atingiu em cheio seu rosto. Alex já estava de pé, fazendo xixi na base de uma das árvores.

-Bom dia.
-Ah! Finalmente. A bela adormecida despertou! Bom dia. Puta sol já essa hora.

-Verão é foda.
-Vou pegar o café em pó. Vai querer?

-Vou.

Alex foi até a casa, passando pela varanda. Enquanto isso, Evandro desmontava a barraca em forma de iglu,  que para sua surpresa, se fechou tão rapidamente quando havia montado.

A fogueira ainda soltava umas fumacinhas de leve.

-Ventinho delicioso. – Evandro notou. – Com vento é outra coisa!

Alex chegou trazendo uma pequena garrafinha térmica de plástico verde. Nela, água quente. – O fogareiro de gás foi uma boa ideia.

Evandro tomou na tampinha da garrafa térmica, enquanto Alex tinha uma caneca de alumínio.  Eles jogaram o pó e derramaram a agua fervente por cima. Um saco cheio de bisnaguinhas acompanhou o café forte e sem açúcar.

-Ainda sobrou daquele queijo?

-Tem ali. – Evandro apontou o pacote na varanda.
Alex foi ate lá e soprou as formigas que passeavam sobre o pacote. Pegou o queijo e dividiu dentro das bisnaguinhas. Enfiou logo três na boca.

-Porra por que tu come igual um monstro, maluco?

-“Num fofe!” – Alex respondeu com a boca cheia.
Após o café os dois começaram a rodear a casa. Evandro ia anotando com um cotoco de lápis num bloquinho.

-No telhado tá faltando telha ali no fundo.  Caiu a vareta de madeira. Ta podre.

-Acho que a gente consegue pegar uns galhos retos e enfiar ali por baixo pra sustentar por enquanto. E depois jogamos uma lona em cima.

-Tá infiltrando água da chuva dentro do banheiro. A janela do fundo caiu. Tá apoiada num toco…
-Olha o que é isso?

-Ué. Caramba. – Disse Alex abrindo a montanha de raízes e folhas das trepadeiras.

-Um fogão de lenha. Olha. Acho que isso aqui é uma grelha.

-Foi, né? Foi, do verbo “ter sido”.

-Talvez tenha jeito. Se raspar a ferrugem a gente talvez consiga usar.  Botar uns bifão aí.

-Anota aí pro seu Manel trazer carne. Manda trazer também um isopor grande e dois sacos de gelo.

-Ok.

Eles seguiram dando a volta na casa.

Eles encontraram um caminho de pedras que seguia pelos fundos da casa, repletas de musgo, que atravessavam para a floresta adentro.

-Onde será que essa trilha vai dar?

-Eu não sei. Ela vai até lá no fundo onde uma arvore caiu.

-Muito mato. -Alex reclamou abrindo picadas com o facão. – Vamos deixar para explorar essa trilha de pedra depois.

Depois de rodearem a casa, os dois se prepararam para começar o trabalho.  Evandro pegou a vassoura e começou a tirar as coisas e arrastar os moveis para fora da casa, com a ajuda de Alex.

Em seguida, enquanto Evandro limpava, Alex pegou o machado e foi direto para as arvores.

Elas não tinham um tronco grosso, de modo que rapidamente ele conseguia com o machado derrubá-las.

Evandro estava varrendo o chão da cozinha, quando puxou um carcomido tapete de juta, revelando um tipo de tampa no chão. Era uma tampa de ferro fundido, bem oxidada, atrás do balcão.

-Que porra é essa?

Ele se abaixou e tentou abrir a tampa, mas ela estava presa pela oxidação do tempo. O rapaz pegou a garrafa de óleo de soja no canto da parede e derramou um pouco nas frestas. Depois pulou sobre a tampa.  Com a ponta do facão conseguiu enfiar a lâmina pela lateral e fazendo grande pressão que quase inutilizou a ferramenta, a tampa finalmente estalou e se abriu.

Era um compartimento e lá dentro havia uma caixa retangular de alumínio.

Evandro retirou a caixa com cuidado colocou sobre a mesa de cimento. Ao abrir, encontrou fotos da família desaparecida.  Era um álbum pequeno com fotos 10X15 com uma espiral de plástico azul que estava quebradiça pela ação do tempo. Uma sacolinha plástica que estava se desfazendo revelou um bolo de notas de dinheiro. Eram dólares. Evandro contou três mil dólares em notas de cem.  Havia também um terço de contas com um crucifixo de prata.  O mais interessante, entretanto, era o álbum de fotos.

Nas fotos, um homem de cabelos brancos e um grande barrigão parecia feliz com varias pessoas. A casa nas fotos estava perfeita. As janelas totalmente azuis. Havia duas crianças, uma menina muito bonita, de uns cinco anos. Um menininho de dois, provavelmente. A esposa do homem devia ter a idade deles, cerca de 30 anos. Ela aparecia em algumas fotos, cozinhando no forno à lenha dos fundos da casa.  Havia fotos da obra e da construção da cisterna.  Algumas fotos eram incompreensíveis. Evandro concluiu que talvez fossem por problemas da câmera analógica.
Algumas fotos mostravam o céu. Estrelas, e numa das fotos algo chamou sua atenção. Era uma grande bola de luz sobre o mar. Uma coisa colossal, que iluminava não apenas o mar abaixo dela mas também as nuvens. Um pedaço da madeira da coluna da varanda no canto esquerdo  indicava de onde a foto tinha sido tirada.
Evandro pegou a foto e foi até o lugar. Posicionou-se na varanda e olhou para a foto e para o lugar.  Alex já havia derrubado as duas laranjeiras que obliteravam a visão da varanda. Um mar de cor esverdeado se estendia diante da casa. Uma visão magnífica.

-Mas que porra é essa? – Ele se perguntou, olhando para a foto.

Alex chegou para pegar mais água.   Estava suando em bicas. Seus músculos esculpidos tinham num brilho gorduroso, como os de um fisiculturista.

-Tá dando trabalho, hein? – Perguntou ao ver Evandro com a foto na mão.

-Chega aí, chega aí. Olha isso.

-Que isso?

-Achei num compartimento do chão. Uma caixa com essas fotos. Tinha três mil dólares embrulhadinhos e um terço católico.

-Ih! Era dos caras, aí. O dinheiro dá pra saber que era por causa da inflação. Olha a patroa do homem. Pô, ela dava um caldo hein? Já o coroa, olha a pança! Tá de nove meses, só pode.
-Mas a foto mais estranha é essa, se liga.

-Ué. Por do sol, maluco.

-Não, pô. Olha direito, retardado.

-O sol, a porra do mar, o céu… Olhar direito o que?
-O sol ta em cima do mar, Alex. Quando que você ja viu o sol em cima do mar?

-Ué.

-Pois é.

-Verdade, não pode ser o sol. Que merda é essa aí?

-Só pode ser disco voador, maluco.

-Será?

-O que mais pode ser?

-Balão. Talvez um balão que caiu no mar. às vezes o vento sopra o balão da costa… Sei lá. Bom. Tu viu ali? Tirei as laranjeiras. E olha ali ó.

-Laranjas?

-Laranja a dar com o pau. Não sei se tão boas. E olha, tem limão também. O pé de limão eu deixei, ele ta lá perto do fogão à lenha.  Tá carregado.

Se as laranjas estiverem boas, o suco ta garantido.
Eu vou tirar as arvores e os arbustos que estão fechando a passagem lá pra cisterna.  Larga essa foto aí e pega o facão que vou precisar de uma mão.
-Beleza.

Os dois largaram o álbum de fotos na varanda e foram, de facão na mão abrir o caminho. O trabalho de limpeza do mato tomou a manhã inteira e entrou pela tarde.

Já eram quatro e meia da tarde quando os dois terminaram de formar uma enorme pilha de plantas num canto da propriedade.

-Bota tomar um café?

-E depois vamos levar os móveis lá pra dentro.

-Os colchões já eram. Deu goteira em cima deles. Tinha que ver o que saiu…

-Pula essa parte, pula.  Prefiro não saber.

-Eu fiz um lixão ali em baixo. Tudo que a gente for tirando vamos jogar pra lá, depois a gente monta um esquema e taca fogo.

-Beleza.

Os dois amigos sentaram para uma nova rodada de café forte e bisnaguinhas do pacote.

-Ainda estou pensando naquela foto.

-Deve ter sido uma visão impressionante.

-Pena que só tem uma foto. Só com ela a gente não entende bem.
-Acho que devia estar na última pose do filme.

-Cara…

-Que?

-Tu acha que essa porra da foto ali tem a ver com o sumiço deles?

-Não sei. Talvez tenha. – Respondeu Evandro entre um gole no café e outro.

-Porra… nem brinca. Me cago de medo dessas merdas de ET. Nem aquele do Spielberg eu gosto. Aquele bicho horroroso: “minha casa, minha casaaaa” – Alex imitou o personagem com uma voz grotesca de falsete, arrancando risos de Evandro. –  Deus me livre! Uma abominação!

-Imagina a gente ta dormindo aí na casa vem aquele et com aquele dedinho vermelho…

-Puta que pariu…

-Vem com o dedinho vermelho e enfia no meio do seu cu! Hahahahahaha

-Finamente parece que o Harry Potter da Somália está ficando com bom humor. – Disse Alex jogando uma bisnaguinha no amigo.

-Vai desperdiçar comida, ou!

-Sopra, porra. Sopra que tá na regra dos dois segundos ainda!

-Bom…  O papo ta bom, mas temos que botar os moveis de volta pra dentro.

-Achei boa a mesa aqui fora. Larga aí, pô.

-Não, cara. Se chover vai apodrecer tudo. Vamos levar a mesa lá pra dentro.

-Beleza.

Os dois homens começaram a lenta tarefa de arrastar os pesados móveis de madeira rústica de volta para a casa. Os bancos da mesa eram feitos de grandes pedaços de tronco cortados, pesadíssimos.

-Ung, que peso. -Evandro gemeu.

Alex puxava com violência, e parecia estar fácil pra ele.

-Acho que esses moveis foram em grande parte feitos com madeira daqui mesmo.

-Com certeza. Olha aí, tudo meio mal feito. Com certeza o barrigudo se achava grande carpinteiro. Isso explica o madeirame do telhado estar nessa merda de estado.

-Falando nisso, temos que jogar a lona e prender as madeiras.

-Eu já cortei umas varetas retas. Estão apoiadas ali no muro do outro lado. Pega o banquinho ali e a gente sobe.

-E a janta?

-O plano diz que vai ser miojo com salsicha.

-Delícia!

Horas depois a noite estava descendo seu manto escuro sobre a ilha. Os pernilongos haviam voltado com tudo.

Os dois amigos estavam terminando o telhado. Alex havia conseguido subir sobre a casa e estava estendendo a lona para finalizar a impermeabilização no reparo. Eles haviam trazido as telhas que se empilhavam perto da obra da cisterna. Os galhos funcionaram bem como reforço, atravessando pelas ripas podres e fazendo uma nova sustentação para o telhado.

-Não ficou grandes coisas, mas chover dentro da casa não chove mais!

-Só saberemos quando a água vier.

-Espero que demore. Na real… – Disse Alex, pulando do telhado.

-Bora acender a fogueira que os infelizes estão chegando com sede de sangue de novo.

Os dois gastaram mais uma revista manchete e uma nova fogueira, dessa vez bem maior foi montada. Não estavam faltando galhos. A grande limpeza havia gerado também uma montanha enorme de galhos folhas e detritos que eles estavam aproveitando para queimar.

O fogo quando finalmente subiu, soltando uma língua de fumaça densa e branca, produto das folhas úmidas e ainda verdes, estalava como um chicote, iluminando a floresta ao redor.

Os dois sentaram- se a grande distancia da fogueira pois o calor que ela irradiava era brutal.

-Fogaréu da porra!

-Ô… – Disse Evandro, dedilhando no violão.

Eles comeram o macarrão instantâneo em pequenas vasilhas de alumínio, admirando o brilho do fogo.

-Vai ter coragem de dormir aí na casa?  – Alex perguntou, com a boca cheia de macarrão.

– Ué. O plano é o plano.
– Cara eu estou pensando em ficar na barraca de novo. Sei lá a parada da lacraia… Não sai da minha cabeça. Até sonhei com essa merda.

Evandro riu. – Faz o que tu quiser. E amanhã?  Temos que estabelecer a meta.

-Acho que temos que trabalhar abrindo uma picada melhor e acertar o acesso lá para o Píer. O mato fechou o caminho, é horrível a gente andar sem saber no que pode ter pela frente…

-Pode crer.  E quando que nós vamos fazer o giro na ilha? A gente até agora só sabe o que tem desse lado.

-Se tivéssemos chegado antes, daria para seguir o plano e dar a volta de barco na ilha.

-Mas o plano não contava com aquele motor furreca.

-Pelo menos chegamos. Acho que pelas pedras, deve dar sim para dar  a volta na ilha. Mas temos tempo. Acho que podíamos deixar essa exploração para depois de amanhã. É mais importante a gente acertar o que precisa da casa, e arrumar o caminho para o píer… -Disse, Alex, mexendo na mochila.

-Tá procurando o que?

-A Goiabada.
-Opa, vou querer. Manda um naco aí.

Alex cortou uma fatia grossa da goiabada e passou com a faca para Evandro.

Os dois ficaram ali comendo a goiabada e olhando para o mar lá em baixo, embora estivesse bem escuro e a luminosidade da fogueira gigantesca atrapalhasse a visão, dava para ver as ondas passando devagar sobre as pedras soltando uma espuma branca que ressaltava na escuridão da água.

Tipo… Eu acho que amanhã se a gente finalizar a picada do Píer cedo, eu vou tentar dar uma pescada para garantir um almoço. Quando eu estava cortando as árvores vi uns cardumes bem ali na reta da obra. – Disse Alex apontando o mar.

-Porra imagina, que chique… Um peixinho com o limão aqui da ilha. Já deu água na boca, hein?
-Bom, vamos então montar o lance para amanhã pegarmos cedo no pesado. Vê se não vai dormir pra caralho…. Como que monta essa caralha mesmo? Puxa aqui? – Alex estava tentando  montar a barraca.

-Puxa a lingueta vermelha.  – Gritou Evandro já da varanda da casa.

Ele entrou e bateu a porta, que ainda gemeu.

Deitou no colchonete estendido sobre o estrado da cama.

A casa tinha dois quartos, uma sala e uma cozinha, além de um banheirinho bastante precário. Um dos quartos foi convertido no depósito de materiais deles. O outro cômodo era de fato, o quarto.  Evandro iluminou com a lanterna e estendeu o cortinado.  Tirou os óculos com cuidado e os colocou no banquinho ao lado da parede.
Deitou-se sobre o colchonete. Por ser um pouco fino, ele sentia os estrados da cama sob seu corpo e ela estalava bastante com qualquer movimento.

Mas o cansaço do forte trabalho daquele dia cobrou seu preço.  Evandro dormiu antes que tivesse tempo de pensar em qualquer outra coisa.

Buuum!

Ele acordou com o barulho de uma explosão. Seu coração quase saiu pela boca, quando ele deu de cara com Alex na porta.

-Bom dia porraaaaaa! – O maldito estava animado.
-Mas que porra é essa, ô demente?

Foi a porta. Essa porta tá meio emperrada. Tive que dar uma bicuda. Desculpa o mau jeito. Hoje no café tem suco de laranja!
-Pelo menos isso. – Gemeu Evandro, levantando-se da cama. A dor de coluna estava forte. Dormir no colchonete fino em cima daquelas ripas havia torturado o corpo dele.

Evandro e Alex sentaram-se à mesa na cozinha. Alex havia espremido diversas laranjas esmagando-as com a força bruta de seus braços poderosos direto nos copos.

-Nossa suco bom demais… Pena que falta um gelinho. – Disse Evandro.

-Pois é… Tava pensando nisso. Temos que ver um jeito de pelo menos ter geladeira na ilha.

-Verdade.

-Um esquema de painel solar, talvez.

-Boa.

-Tava pensando outra coisa. Tu já se ligou que a gente devia ter trazido sei lá, um rádio. Um Px.

– E ia ligar aonde? No teu cu?

-Já ouviu falar de bateria, arrombado?

-E vai carregar ela como?

– Painel solar.

-Você ta achando que meu dinheiro é capim? Quer lancha, quer painel solar… Daqui a pouco quer uma jacuzzi…

-Falando nisso, tava pensado que a gente precisa dar uma olhada como é o fundo ali perto do pier. Se tiver uma área mais rasa, eu acho que vi do barco… Ali dava para meter uns bangalôs no estilo daqueles do Taiti… Tá ligado? Imagina uns seis bangalôs, e uma jacuzzi em cada um… Podemos botar uma parte do piso de vidro para o gringo ver os peixinhos debaixo dele…

Evandro apenas olhava o amigo musculoso lançando ideias, umas sobre as outras.

-Isso no futuro, ne?

-Que futuro, Evandro? Que futuro? Isso agora, porra. A gente tem que fazer esses bangalôs pra ontem! Vai botar os gringo onde? Na tua cama, idiota?

-Pera, cara. A gente tem que ver a questão do dinheiro, não sei como vai ser com o banco… Tem a parada da papelada lá com o advogado. Vai sair uma grana aí na documentação, lembra?

-Porra maluco. Foda-se! Foda-se! – Gritou Alex, socando a mesa.   Os copos pularam. Um resto de suco entornou.

-Olha aí, Olha aí!

-Essa porra de burocracia, a gente empurra com a barriga, Evandro. Tem que botar o negócio para começar a dar lucro e a gente vai fazendo.

-Tem que fazer contas, porque o plano não era esse.

-O plano, o plano… O plano… Enfia o plano no teu cu, porra!

-Ou!

-Não, porra! Tô cansado dessa conversa de… – Alex imitou o amigo com voz de falsete enquanto limpava com um pano o suco na mesa. – …Ain… o plano não é esse.  O plano é outro…. Vou seguir o plano… Nhenhenhé meu plano!

-O plano trouxe a gente até aqui, Alex. Olha aí. Já chegamos na ilha, compramos o lugar, já começamos a arrumar cara. Mas tem que fazer a cisterna, tem que ter água. Vai trazer o gringo e ele não vai poder tomar banho. Esquece ar condicionado, esquece televisão, esquece bangalô. Uma coisa de cada vez, ô doido.  Depois o gringo vem, acha horrível, tudo precário desse jeito, fala mal e aí o negócio quebra antes de começar. Não pode ser assim, véio.

-Eu tenho pressa, cara. Eu não nasci em berço de ouro igual você não. Temos que arrumar rápido. Meus amigos já estão agitando os gringos lá nos Estados Unidos e eu vou precisar dar uma posição pra eles.

-Olha, a parada da lancha vc estava certo. De boa.

-Claro, que estava. Até porque você já se ligou que se esse velho aí se fodeu com o barco merda dele na volta, a gente tá preso e fodido aqui nessa ilha?

Evandro engoliu o resto de suco e ficou quieto, parado, olhando serio para Alex. O suco desceu amargo. Uma sensação estranha tomou conta de Evandro.

-Eu não ia te falar, mas agora eu vou falar. Cara ontem eu tentei ligar pro coroa umas quatro vezes. Chamou, chamou e não atendeu.

-Ah não.

-Pois é.   A porra do velho não atende.

-Mas tinha sinal?

-Só ali em cima. Ali tinha, mas não atende.

-Porra vamos ligar pra mais alguém então, deixar de sobreaviso.

-Se não fosse essa paranoia ridícula sua a gente teria avisado ao pessoal. Todo mundo ia saber onde a gente estava. Mas você e essa mania de olho grande pra cá, olho grande pra lá… Ninguém sabe que estamos aqui.

-Tá. Foda-se o olho grande. Vamos ligar para a Patrícia e para o Cadu. A gente conta que estamos aqui e manda eles arrumarem uma lancha e vir aqui.

-O problema é esse.

-Que problema tu ta falando?

-O sinal. O sinal de celular sumiu. Desde ontem de tarde não tem sinal nenhum. Nem no telhado. Eu subi no telhado hoje de manhã e tentei pegar sinal até agora. Nada.

-Puta merda, Alex.  – Disse Evandro, arregalando os olhos azuis.

 

CONTINUA 

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.
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Comentários

  1. Rapaz, eu já li histórias que cai o sinal de telefone, rádio, internet, e quando acontece aqui em Colatina, uma queda geral na telefonia, eu já fico com um cagaço extremo. Pelas referências, creio que Gringa se passe em algum momento dos anos 90, tô certo?

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