Gringa – Parte 4

Evandro acordou com um estrondo. Parecia uma explosão.
-Puta que pariu! Graças a Deus! – Alex berrou, pulando da banqueta de madeira.
Evandro estava zonzo, não sabia o que estava acontecendo, tentou falar mas engasgou. Tinha algo como areia na garganta.  Tossiu muito e quase vomitou.

Ao lado dele estava Alex, iluminando com a lanterna. Evandro custou a entender o que estava acontecendo. O ambiente estava repleto de velas. Lá fora explosões e clarões ecoavam com a potência das trombetas do apocalipse.

-Calma, Calma! Tá tudo bem, brother! Calma, Evandro! Tu tá em casa. Tá me ouvindo? Evandro? Evandro?

Evandro queria falar, queria perguntar o que aconteceu, mas não conseguiu. Estava sem forças. Sentiu uma súbita sensação ruim, e vomitou. Vomitou seguidamente até tudo apagar. As ultimas coisas que ele lembrava era de Alex gritando o nome dele. Depois, tudo se apagou.

-Quando Evandro abriu os olhos viu as telhas escuras no teto. Sentia tudo rodando. Estava fedendo a álcool. O cheiro era horrível.

Olhou ao redor sem se mexer e viu as velas na bancada da cozinha. Eram cerca de quatro ou cinco delas, mas ele não conseguia saber direito, pois ainda estava zonzo. A cabeça latejava horrorosamente. Viu as velas. Várias delas. Todas já apagadas.
No meio da sala, havia uma grande poça de água. Lá do outro lado, no canto, deitado sobre a mesa estava Alex. Ele dormia de barriga para cima, sem camisa, roncando alto.
Com esforço, Evandro se levantou e sentou no sofá vomitado. Viu um balde cheio de vômito bem ao lado da cama improvisada no sofá. Ela estava  toda suja e ele também. Estava só de cueca e com uma camiseta úmida, fétida de vômito. Se livrou da camisa e tentou se levantar. A cabeça doendo sem parar. Evandro olhou o braço. Estava todo arranhado e com diversos  cortes. A boca estava com gosto de cocô. Seu corpo todo doendo e ardendo, como se tivesse levado uma surra.

Pegou a escova de dentes e o tubo de pasta na mochila.
Foi até a garrafa de água junto da parede.   Escovou os dentes na sala mesmo e cuspiu no balde. O gosto ruim na boca não passava.

Viu que sua perna estava toda lanhada com cortes profundos na altura da canela. Virou a garrafa de água na boca e lavou o pescoço.  A água que pingou no chão despertou Alex.
Num pulo, Alex saltou da mesa assustado.

-Ou! Ou! Tá tudo bem maluco?
-Tudo. – Evandro disse, estranhando a própria voz.
Alex foi na bolsa e pegou um pacote de cigarros. Acendeu um e sentou na banqueta.

-Porra, que susto que tu me deu, Evandro.

-O que foi que aconteceu?

-Cara… Tu não lembra? Não lembra de nada?

-Não, cara. Eu acho que desequilibrei e caí. Eu caí na água.

-Meu, tu quase me matou do coração. Eu voltei com a cobra na mão, quando meti a lanterna no píer, cadê você?  Eu corri no píer, achei que você tava no mato, chamei, chamei e nada, mas aí eu ouvi um barulho na água, quando meti a lanterna eu te vi se debatendo debaixo d´água. Só reconheci pela camisa vermelha.  Você tava indo cada vez mais pro fundo. Eu corri e pulei na água, por sorte que minha lanterna era á prova d´água.  Essa mesma que você chiou que era muito cara, que era “frescura” foi o que salvou tua vida!

-Hã? Como assim?

-Eu pulei na água e nadei atrás de você. Tinha uma coisa muito forte te puxando. Me puxou também. Quando eu consegui agarrar na sua camisa e puxei e vi que a linha estava embolada na sua perna. A gente tava sendo puxado pro fundo, mas eu consegui desembolar a linha da sua perna.

-E o que era que tava puxando?

-Eu não sei. Acho que você fisgou uma tartaruga sem querer. O anzol deve ter agarrado nela e ela nadou com força para o fundo. Quando você caiu na água, se embolou na linha e foi sendo puxado. Quando a coisa puxou, era forte pra caralho, foi assustador!   Parecia um boi de tão forte. Se eu não desembolasse a linha…

-Seria o fim. – Disse Evandro, tossindo.

-Foi por pouco. Eu nadei puxando você, mas você não reagia, eu achei que já estava morto. Eu trouxe você…  Pra enterrar.

-Caralho.

-Sério. Nadei acho que uns dez metros, depois, o mar estava virando e as ondas ajudaram a empurrar seu corpo para cima das pedras, olha aí. Saca só. – Disse Alex mostrando as coxas cortadas pelos mariscos afiados.

-Caralho, maluco! Tem que botar um remédio nisso aí.

-Faz parte. Isso é o de menos. Quando eu consegui subir,  com dificuldade, trouxe você para o Píer. Ali eu fiz ressuscitação.  Quando você reagiu a massagem cardíaca, eu botei você nas costas e subi aqui pra casa. Tava começando um puta temporal. Você acordou e desmaiou umas três ou quatro vezes essa noite.

-Que horas são? Oito da manhã? – Evandro perguntou,  antes de beber mais água.

-Sete e quarenta. – Respondeu Alex, olhando no relógio dourado.

– Que aventura, bicho.

-Nem fala. Se eu tivesse demorado dois minutos… Nem isso, um minuto a mais…

-Se eu tivesse botado a camiseta azul ou a preta…

-Pois é. Se você não tivesse bebido meia garrafa de cachaça para bancar o macho…

Evandro não disse nada. Apenas concordou com a cabeça e andou com dificuldade até a porta. Empurrou e saiu para a varanda. Lá fora o dia estava nublado e com nuvens escuras. Tudo estava molhado e havia poças para todo lado.

Alex passou por trás dele segurando o pote de café e uma cumbuca. – Vou fazer o café.

Evandro sentou na varanda e sentiu a brisa fria que soprava do mar sacudir seus cabelos. Ainda chuviscava lá fora. Evandro notou que estava vendo tudo embaçado. A cabeça latejando terrivelmente e os ferimentos queimavam nos braços e pernas.

Minutos depois, Alex chegou com um copo com café sem açúcar. O vento estava aumentando e eles entraram na sala.

-Porra tô vendo tudo embaçado. – Evandro falou tomando um gole do café na sequência. Depois sentou no canto do sofá, longe do vômito.

-Pode se acostumar, meu chapa. Já eram seus óculos! Vai ser foda agora aqui nessa ilha, com você meio cegueta ainda por cima. Quantos graus você tinha mesmo?

-Três na esquerda e quatro na direita. Pra longe é impossível, mas aqui eu consigo ver de boa, ó… – Disse, colocando o palmo perto do nariz.

Os dois riram.

-Bom,  faz o seguinte: Descansa. Eu acho que devemos tirar o dia hoje para descansar. A parada foi tensa. A gente merece um descanso. Além do que ta uma bosta o tempo…

-A gente podia ir lá nas pedras ver como que é o lado esquerdo…

-Não, tá maluco? Tu quase morreu lá em baixo essa noite! Nada disso! Tá tudo molhado de chuva, tá escorregadio igual um sabonete aquelas pedras.

-Pode crer.  E vamos ficar igual dois otários, um olhando pra cara do outro o dia todo?

-Ir nas pedras é maluquice! Já gastamos a cota de emoção do mês.

-A gente tem que pegar o peixe do jantar… – Disse Evandro. Os dois começaram a rir. Alex jogou uma revista no colo de Evandro.

-Aí! Toma. Achei uma Playboy!

-Ô loco! Isadora Ribeiro, musa do Fantástico!

-E tem poster com um porrilhão de gostosa aí no meio!

-Tá sabendo hein?

-Ué, passei a noite em pé velando seu corpo aí… Morre, não morre.  A Isadora Ribeiro me fez companhia…

-Espero que não tenha melado a revista. – Disse Evandro, jogando a revista de lado sobre o sofá.

-Falando em nojeira, a gente tem que dar uma lavada ali onde tu “chamou o Raul”. – Alex apontou a mancha da poça de vômito.

-Agora não consigo.

Alex se levantou da banqueta e arrancou o almofadão do sofá; lançou-o pela porta afora lá no terreiro, onde ele começou a se encharcar com a chuva. Ele botou outro cigarro na boca e acendeu com o isqueiro.

-A chuva Tá aumentando de intensidade. – Disse Alex, dando uma baforada no cigarro. – Acho que a tempestade vai voltar com tudo.

-Achei que você tinha parado.

-O cigarro? Dá um tempo né? Olha aí… A gente ta fodido aqui. Todo preso merece um cigarrinho.  – Disse, levantando da banqueta e indo até a vassoura no canto da entrada do banheiro. Ele começou a varrer a água da poça no centro da sala para a varanda.

-Acho que não ficou bom o trampo no telhado…

-Até que deu certo, mas ventou muito. Essa goteira aí no meio a gente não tinha visto. Acho que se a chuva parar lá pelo meio dia, pode ser que role de subir e jogar a última lona aí em cima.

Evandro concordou. Foi até o quarto e pegou o violão.

Ele tirou o violão com cuidado do estojo de couro e começou a dedilhar o violão.   Era uma melodia bem bonita, e Evandro dominava o instrumento com grande precisão. A sala da casa tinha uma acústica interessante.

– Le premier bonheur du jour,
C’est un ruban de soleil,
Qui s’enroule sur ta main,
Et caresse mon épaule,
C’est le souffle de la mer,
Et la plage qui attend,
C’est l’oiseau qui a chanté,
Sur la branche du figuier,
Le premier chagrin du jour,
C’est la porte qui se ferme,
La voiture qui s’en va,
Le silence qui s’installe,
Mais bien vite tu reviens,
Et ma vie reprend son cours,
Le dernier bonheur du jour,
C’est la lampe qui s’éteint,

Alex começou a aplaudir com o cigarro no canto da boca:  -Aêêêê, moleque! Mandou bem. Porra que música bonita! Não entendi nada, mas tu manda muito nisso aí. Que musica é essa?

-É só uma musica antiga que meu avô me ensinou. Chama-se “a primeira alegria do dia”.  Eu toco ela sempre que estou meio sem saber o que fazer.

-Nota-se que você treina muito, por isso que toca bem, hahahaha.

Evandro jogou Isadora Ribeiro de volta em, Alex.

-Ou! Cuidado, pô. Vai estragar a única mulher pelada que essa casa viu em décadas!

-Quem te garante? Aposto que de vez em quando vem um pescador aqui e dá um bordejo aqui na ilha.

-Com tanta ilha melhor… Duvido.

-O problema não é nem a beleza. É a distância.

Alex concordou. Foi até o quarto e voltou com a caixa de primeiros socorros. Com uma gaze e algodão, começou a passar álcool nos machucados e depois ia colocando curativos.

Alex não demonstrava nenhuma dor e aquilo impressionou Evandro. Entretanto, ele preferiu não comentar.

-Tua vez! – Disse Alex puxando a banqueta para perto de Evandro.- Vai arder um pouco.

-Um pouco?

-Só um pouco. Quase nada. Mole procê.

-Pelo menos nos remédios do putos da vila não roubaram. Ai! Ai caralho! Porra cuidado… Shhhhhhh! – Gemeu Evandro quando Alex derramou álcool nas pernas dele.

Após uma sessão infindável de palavrões berrados a plenos pulmões, as feridas finalmente pararam de queimar e Evandro novamente se concentrou no violão.

Alex guardou a caixa no quarto que faziam de depósito de bagulhos.

-A chuva deu uma trégua.  – Disse Alex olhando pela janela.

-Onde você vai Alex?

-Vou lá em baixo pegar a caixa do material de pesca, que ficou lá no píer.

-Beleza. – Disse Evandro, tocando os primeiros acordes do Samba da Bênção no violão.

Alex já estava quase entrando na trilha de acesso ao píer quando Evandro gritou.

-Cuidado Alex! Cuidado!

Alex estancou assustado. Ele se virou e viu o amigo na janela.

-Cuidado com a tartaruga assassina!

Alex respondeu com o dedo do meio e entrou no mato.

Evandro ficou na sala, tocando violão para as paredes mofadas. Depois pegou a revista e ficou lendo. Havia um conto interessante do Fernando Sabino naquela edição. Mas o interesse do rapaz estava nas curvas da mulher voluptuosa da abertura do programa “Fantástico” da Tv Globo.

“Hans Donner que era um homem feliz!” – pensou, observando as fotos.

Evandro já tinha até tirado uma soneca quando despertou e achou estranho que o amigo estivesse demorando tanto. Ele foi até o quarto e pegou os chinelos para descer a trilha atrás de Alex. Foi quando escutou um barulho na sala.

Era Alex, que apareceu na porta da casa com meia dúzia de pequenos peixes largos de cerca de 20 centímetros cada.

-Chegou o rango!

-Ô loco! Pescador!  – Evandro se espantou.

-Quem diria que a tripa da cobra podre ia fazer tanto sucesso!

-Que peixe será esse?

-Acho que é Paru.

-Tomara que essa porra não seja venenosa.

-Tá louco, mané? Esse peixe é o que a Dona Maroca da pensão faz lá na vila. É igualzinho.

– Bora comer esses moleques! Bota ali e pega lá uns limões na árvore.  Eu vou limpar.

-Beleza. Limpa aí que eu vou lá acendendo a churrasqueira.

Evandro se levantou e foi até o bolo de peixes na janela. Subitamente ele ouviu um “plunck”.

Ao olhar para o lado, perto de sua cabeça viu a faca de Alex cravada na madeira podre da janela.

-Que porra é essa?

-Aqui, separa nessa lata ali as tripas para servirem de isca amanhã;  – Disse Alex sorrindo.

-Porra pirado! Tu quase acertou a minha cabeça! E outra, isso vai ficar fendendo!

-Confia na minha mira, trouxa! O cego aqui é você. Tu vai querer peixe ou não vai? Quanto mais feder, mais eficiente vai ser a isca.

-Tá, eu dou meu jeito, meto um saco plástico em volta da lata…

Alex saiu para pegar os limões enquanto Evandro começou a limpar os peixes. Era uma tarefa difícil tendo que racionar a água. Ele sentou-se com os peixes e numa tábua de madeira na beira da varanda começou a arrancar as vísceras dos parus com a faca de Alex e separar nas latas. Depois removeu a as escamas, corto9u as cabeças…

Quando Alex voltou com os limões,  avisou que já estava aceso o fogão de lenha, aquecendo a grelha.

-Se eu não tivesse sido sagaz ontem e colocado alguma lenha pra dentro, a gente ia ficar lascado para fazer fogo com tudo molhado. – Disse Evandro, enquanto ia colocando os peixes sobre a grelha.

Logo, um cheiro maravilhoso do churrasco de peixe começou a subir no ar.

Alex e Evandro abriram a ultima garrafa de refrigerante e brindaram enquanto comiam peixe assado com as últimas fatias do pão de forma.

Ficaram horas e horas comendo e batendo papo, relembrando coisas do passado e discutindo os planos para o novo negócio na ilha. Entre goles de refrigerante e mordidas no peixe sucluento, iam se fartando.

-Delícia demais! – Evandro exclamou de boca cheia, ainda mastigando.

-Peixim gostoso. Eu vi que eles ficam ali debaixo do Píer.  Quando você sabe onde está o alvo, fica muito mais fácil…

-Alex?

-Fala.

-E aquele lance lá que você tinha falado…

-Que lance?

-O que sua tia parou de falar com você a tal “cagada”.

-Pra que falar disso agora?

-Curiosidade, ué. Vejo que você não quer falar… Tudo bem então, pô… Não quer falar, não fala.

Houve uns três minutos de silêncio onde os dois apenas comiam o peixe em silêncio.

O silêncio gradualmente foi se tornando opressivo. Alex tomou um gole de coca, pigarreou e acendeu um cigarro. Deu uma baforada e disse:

-Matei um cara.

-Um cara? Como?

-Eu tava na PM nessa época. Correria. Grana pouca. Lembra da Gislane? Acho que tu não chegou a conhecer ela…

-Lembro. A loura?

-Não, a Gislane era a morena. A loura era a Gleicy Anne. A Gleicy foi bem depois.

-Ah tá. E daí?

-Gislane queria que a gente comprasse uma casa, queria casar na Candelária, de véu e grinalda… Mas eu tava ganhando mal. Ela de recepcionista com salário mínimo. Eu com Soldo de PM. A gente tava de aluguel em Lins de Vasconcelos… Vida de merda. Tinha um comandante novo lá no batalhão que um dia reuniu a galera e deu a real. Ele disse “não quero nem saber que merda vocês vão fazer. Basta não fazer merda pra me foder. Todo mundo aqui é crescidinho. Eu quero meus dez. O resto é de vocês.”

-Dez?

-Dez porcento do valor total do arrego do batalhão.

-Puta merda.

-Por que você acha que ele tinha um Porsche e eu uma moto DT 180 com problema?

-O comandante do batalhão tinha um Porsche?

-Eles são todos montados na grana. O pessoal tinha meta de arrego naquele batalhão. Tinha que chegar com um milhão toda semana.

-Caralho.

-O Rio é o Rio, moleque. Tu que nasceu em berço de ouro não sabe o que eu passei.

-Mas e o cara que tu matou? Foi confronto?

-Pode se dizer que sim… – Alex ficou contemplando a fumaça do cigarro voando no ar. O vento havia parado, não chovia e estava um pouco abafado, talvez pelo calor emanado do fogão a lenha. Ele tirou a camisa, expondo as caveiras e dragões dos braços musculosos.  Tomou mais um gole de Coca-cola e retomou o assunto: – Um dia o comandante me chamou. Eu e um tal de Arlindo, fomos ao gabinete.  Mandou a gente num endereço que ele anotou num papel e disse que tinha que chegar lá meia noite. Dar a senha, dizer que eu era o “onze e meia”. Chegamos no lugar, em plena avenida Brasil.  Era uma transportadora. Rua deserta… E ai batemos lá, chegou um cara no portão. E eu falei que era o “onze e meia”.  O cara abriu o portão, lá dentro, era uma transportadora cheia de caminhão velho, um monte de tambores de combustível que eles certamente adulteravam ali… Fomos até um escritório, passamos numa parede falsa, tinha um puta dum cassino clandestino rolando lá. Lotado de gente. Ao chegarmos, já tinha dois pacotão pardo esperando a gente.

-Droga?

-Não, era grana. Grana viva. Agradecemos e saímos. Levei pro comandante. Entreguei no carro dele no estacionamento os dois pacotes de dinheiro. Devia ter uns 400 mil. E ele não me deu nem uma gorjetinha. Ele nem agradeceu. Tratava a gente igual escravo. Igual cachorro.

-Mas isso era fora da meta de milhão do batalhão, né?

-Fora, totalmente fora. Esse era o negócio direto do comandante. Um deles! …A meta de um milhão tava foda. Não estávamos nem perto dos 400 mil com as boca de fumo tudo fodida, os moleque tudo chorando as pitanga… E o comandante começou a fazer pressão porque ele queria fazer os 15 anos da filha. O cara tava na pilha, enchendo o saco. Ele começou a tretar com um dono de morro na Nova Holanda que não quis subir o arrego. Eu vi que não ia demorar, ia dar merda. E deu.
Dois amigos do batalhão foram buscar o arrego lá  e as cabeças deles amanheceram na entrada da rua onze da Nova Holanda.  Gravata vermelha e os caralho

-Gravata?

-É quando degola o cara, decepa a cabeça e puxa a língua pelo buraco da garganta… Fica tipo uma gravata – Alex disse, rindo muito.

Eita porra!

-… Pois é. Aí deu bosta. Declarou a guerra.

-Puta merda.

-Aí que eu pendurei a chuteira. Pedi baixa porque eu não ia tomar tiro de fuzil de ganso por causa de uma festa babaca de 15 anos!

-Fez bem.

-Mas aí nego aloprou. A gente tava vivendo mal. Gislane ficou puta. Falou que não estava lá pra me sustentar. Ela queria um pretexto.  Nessa época, eu ainda não sabia do caso dela com o bacana.

-Caso?

-Esse é outro lance.

-Outro lance? Tu matou outro?

Alex deu uma gargalhada. Tragou o cigarro e acendeu o cigarro novo no finalzinho da guimba do antigo.

-Matei mais de dez.

-Puta que pariu, Alex!

-Gislane saiu de casa. Me largou sozinho na casa, sem ter como pagar o aluguel.  Tentei emprego de segurança, fiz dez mil fichas e o caralho, ninguém me chamava. A dona que alugava a casa começou a cobrar. Chegou uma hora que eu não tinha nem desculpa mais. Um dia acordei e decidi: “Chega! Não vou ser pobre nunca mais”.

-E você fez o que?

-Sabe a parada desse peixe aí que eu disse? “Quando você sabe onde está o alvo, fica muito mais fácil”.
Fui na casa de um vizinho e dei uma desculpa lá, peguei a Belina dele emprestada. Deu meia da noite, meti a farda, fui lá na transportadora da Avenida Brasil com a Belina. Bati lá. O cara abriu. Eu disse que era o “onze e meia”. O segurança abriu a porta, ele me reconheceu. Eu subi com ele até o escritório, abriu a  parede falsa, o caralho a quatro, tudo igual. Cheguei lá, tava os pacote de dinheiro.  Mas quando o velho ia me entregar, um careca apareceu me chamou para conversar. Ele queria saber por que eu estava indo lá se o “meu chefe” não tinha avisado.  Aí eu senti que ia me ferrar.

-Ia,  lindamente.

-Eu disse que ele estava ocupado. Aí o careca disse que ia ligar pra ele, que era para eu esperar um pouco. Voltou na sala, largou a porta aberta, e pegou um telefone e começou a discar.
Eu sentei ali no sofá e fiquei esperando, pensando no que eu ia fazer. Tava fodido. Aí comecei a contar os seguranças. Eram três. Dois tomavam conta do salão e o terceiro era o que abria a porta.  Todos velhos. E todos distraídos com os clientes do bingo.
Comecei a calcular as chances, eu estava de colete. Ali ninguém tava de colete… Eu tinha boas chances.  Minha arma já tava destravada que não sou trouxa.
Saquei a arma e o primeiro pipoco foi no careca. Fiz um buracão bem no meio da testa dele. Ele ficou lá, sentado, arreganhado na cadeira.
Os seguranças sacaram as armas e começaram a atirar, mas eles eram ruins de tiro pra caralho! Nessa, eu mandei o segundo pra vala. O terceiro ia me pegar mas o fator sorte entrou: A arma dele engasgou. Acertei o vagabundo. Nisso, todo mundo já tinha pulado no chão. Uma gritaria do caralho.
Eu passei para atrás de um balcão e vi o último dos seguranças correr, certamente para pegar um fuzil!

-Eita! E aí? – Evandro estava impressionado.

-Eu me escondi na sala do careca, entrei atrás da porta. A confusão era tão grande com uns velhos malucos levantando e andando de um lado para outro, querendo fugir, achando que era a polícia…  O segurança entrou na sala com o fuzil de um jeito completamente idiota, sem preparo nenhum. Ali eu vi imediatamente que todos lá eram amadores. Economia porca.

-Aí você despachou mais um.

-Na cabeça. Por trás, ele nem viu de onde veio o tiro. Morreu apertando o gatilho e o AR15 disparou uma rajada na sala.

Eu saí, fui no salão. Tava geral se escondendo atrás das máquinas, mas era um monte de coroa. Apontei a saída e mandei geral vazar que os soldados iam cercar o lugar. Saiu todo mundo correndo. Buraco de fechadura foi largo pra neguinho passar.
Voltei lá na sala do careca, abri os armários. Um armário tava trancado. Ele tinha chave. Eu achei a chave no paletó do careca… E que delícia!

-Dinheiro pra caralho.

-Muito. Muito dinheiro. Tinha uns três malotes lotados de dinheiro.
Eu saí com aquilo e joguei na mala da Belina. Dinheiro pesa.  Depois voltei lá, taquei gasolina naquela merda e botei fogo. Lambeu tudo.

-Hahahaha eu imagino. E aí?

-Eu meti o pé do Rio. Já tinha formado um pé de meia ali. Contei dois milhões.  Minha “aposentadoria da PM”. Mudei pra Cabo Frio.
-Ah tô ligado. Foi quando a gente se encontrou, naquele restaurante lá da ilha do Japonês.

-Isso. Ali eu já tava namorando a Gleicy Anne.
-Pode crer, me lembrei agora. Ela era muito gata, né?

-Com dinheiro, né?
-Mas ela gostava de tu. Pelo menos parecia.

-Gostava. Mas ela era chata pra caralho, aquela ideia fixa de ter filho…

-Mas sua tia ficou sabendo que tu matou o careca lá e roubou o dinheiro? Como? Como foi?

-Não… Ela nunca soube desse B.O. não. Ela fiou puta porque eu matei o bacana com quem a Gislane me corneou.  Tava me corneando com o chefe.

-Tá de sacanagem.

-Tu acha que eu ia deixar barato? Um advogadinho de merda?

-Mas você já tinha saído do Rio. Deixasse ela viver a vida dela com o cara, porra.

-Morreu pela vacilação. Quando eu descobri, foi que minha tia me contou. Ela deixou escapar. Daí não aguentei. A Tia pediu, implorou pra eu deixar a Gislane em paz. Achou que eu ia matar a Gislane, mas eu não ia. Ia só dar um socão na cara dela e esfregar um bolo de dinheiro pra ela ver que ela tinha jogado a felicidade no lixo… Mas um socão eu ia dar…  Cheguei lá, o vacilão puxou uma faca. Tentou bancar o herói. Eu matei ele na porrada. Esse não foi de tiro. Matei na frente da Gislane, depois joguei ele da janela e fui embora. Ela deu depoimento que ele se matou.

-Ela te protegeu.

-Ela não era nem louca de me denunciar que ela morria logo depois. Ela fez isso para se salvar. Tanto que ela depois meteu o pé pra Bahia.
-E você não sentiu nem um remorso, cara? Tipo, o advogado lá tava vivendo a vida dele, meu…

-Remorso de cu é rola, Evandro!  -Alex apagou a guimba de cigarro na pedra úmida.

Alex se levantou e saiu. Estava começando a anoitecer. Os dois haviam passado a tarde inteira entre conversas e o churrasco de peixe.
Logo, estaria novamente o mais completo breu. Evandro começou a limpar as coisas.
Voltou para a casa e acendeu as velas da sala. As velas conferiam uma iluminação âmbar no ambiente. A chuva estava chegando com tudo. Os trovões estouravam no céu.
Alex estava tomando um banho de gato com a água da chuva que ele tinha acumulado em baldes.  Evandro aproveitou para também se lavar com a água dos baldes, porque o cheiro da gordura do de peixe torrado impregnava até na alma.
Enquanto se lavava, eles ouviram novamente os trovões ao longe.

-Vem água de novo aí.  – Disse Alex.

-Pode crer. – Respondeu Evandro, passando o sabonete na axila. Enquanto tomava banho, Evandro não podia deixar de pensar que seu sócio e amigo de longa data era um assassino. Ele nunca poderia imaginar aquilo.

Enquanto eles estavam tomando banho, ao lado da varanda,  algo inesperado ocorreu. O celular tocou lá dentro da sala.

-O celular! O celular! – Alex gritou e saiu correndo nu, todo ensaboado pela casa, em busca do aparelho.

-Alô! Alô! Manel? – Ele berrou com o aparelho.

Do outro lado era Manel.
Manel pediu desculpas e disse que tinha tido um problema com o aparelho e precisou comprar outro. Mas as notícias de Manel não eram boas. Ele não havia ainda conseguido um barco grande, e segundo ele, a tempestade tinha virado o mar. Contou que havia adernado um barco com turistas na Baía e alguns seguiam desaparecidos enquanto uma família inteira já havia sido encontrada. Todos mortos afogados. Não havia condições de navegação para fora da Baía com o mau tempo, por proibição expressa da Capitania dos Portos. -…Vocês tem que aguentar firme aí! – Disse o velho.

Alex explicou que a água estava acabando e eles logo ficariam sem água. E o sinal de celular estava sempre nulo ou muito fraco. Manel disse que assim que o tempo permitisse, faria uma viagem com o barco pequeno apenas para levar provisões de emergência, água, gás, carne, pão e uns poucos equipamentos, como o lampião.

-Alex manda ele alugar e trazer um bote com motor!  – Gritou Evandro da janela.
-Manel precisamos que você traga também um bot… Alô? Alôôô! Porra! Caiu essa merda! – Disse Alex, segurando o aparelho.

-Deve ser a tempestade! – Evandro apontou para a enorme nuvem no horizonte, soltando raios no mar.

Alex tentou ligar, mas o sinal já tinha sumido. O jovem voltou lá pra fora. Estava mais animado. Afinal, Manel não havia morrido. Ele estava na vila e iria trazer as provisões, tão logo o tempo melhorasse. Evandro sugeriu que um dos dois voltasse de carona com Manel para a vila, afim de adquirir um bote para eles. O outro esperaria na ilha.

Mais tranquilos, de banho tomado,  os dois voltaram para o interior da casa iluminada pelas velas.
-Podia ter uma televisão aqui nessa bosta. – Disse Alex sentando no sofá. – Porra esse troço de alvenaria sem o almofadão é ingrato!

-Devíamos ter aproveitado a chuva para lavar o almofadão.

-Olha aí a chuva. Ela vai resolver. Enquanto isso, vou dar um “Magáiver”!

-Vai fazer o que?

-Aguarde e confie, Harry Potter de Vila Progresso.

Alex foi ate o quarto, pegou o colchonete e dobrou sobre o sofá de alvenaria.

-Pronto! “Sofárrrhh” Super confort plus!

-Isso aí foi o seu “sofá” em inglês?

-Não sei como fala essas língua chiquê. Como é que é o  seu biquinho pra cantar? “Tujuuuur….”

Seria melhor se o Magáiver resolvesse a goteira no meio da sala. Olha aí. – Evandro apontou a poça se formando.

-Como desejar! Alex correu lá na varanda e trouxe o balde.

-O que será que tá passando agora na televisão? – Perguntou Evandro enquanto pegava o violão.

-Deve estar no RJ TV. Já, já deve começar o Jornal Nacional. – Falou, olhando o relojão dourado no pulso.

-Os mesmos problemas de sempre. Políticos roubando, aquela briga do FHC na votação da CPMF… sei lá mais o que…

-No RJ TV são as obras do Cesar Maia.

-Ah é. As buraqueiras no Rio. E os problemas da CEDAE. Talvez tiros num morro a sua escolha e peixes mortos na lagoa.

-Mas eu sei que você quer é ver a Jade na novela… – Riu Alex.

-Olha, eu vou te falar que aquela Jade lá… Eu não perdoava não.

-“Inshalá”! – Riu Alex. – Mas na falta da jade a gente vai de Isadora Ribeiro!

Alex abriu a revista e começou a folhear a Playboy.
-Tem que ler, cara. Não é só pra ver as figuras não.

-Sai fora, pela saco! Revista de mulher pelada e eu aqui sozinho na ilha com um cueca e vou ficar lendo Fernando Sabino? Vou ler piada? Ta maluco.

Evandro riu e começou a dedilhar no violão.
Ele tocou algumas músicas.

Lá fora a chuva caía torrencialmente.

-E a janta?

-Porra tu comeu peixe a tarde inteira. Já ta pensando em comer de novo? Cara tu só pode estar com verme! Eu só vou pensar em comer de novo depois de amanhã.

-Hahahaha. Vamos valer uma aposta? Daqui meia hora tu ta fuçando nas bolsas para comer alguma coisa. Peixe é foda. Digere rápido.

Evandro não respondeu. Voltou a atenção para o violão.

Os raios e trovões estouravam lá fora.
Evandro estava tocando. Quando subitamente ele parou.

-Escuta.

-Que? Que foi?

-Shhh! – Evandro colocou o indicador na frente da boca.

-Que foi porra? Que é? – Alex pulou do sofá e foi na janela olhando para a escuridão lá fora. Só se ouvia a chuva e o farfalhar inclemente das folhas açoitadas pelo vento da tempestade. -Tá alucinando.

-Calma. Escuta. Presta atenção.  Uma voz!

-Tá alucinado total. Devem ser as gaivotas!

-Não, pô! Eu ouvi. Eu ouvi mesmo. Escuta. Olha ai! De novo.  Foi um grito maluco!

-Eita!  Agora eu ouvi! Mas acho que são as aves cara. Só pode ser. Ei, onde você vai?  Evandro. Pera aí Evandro!

-Tem alguém lá em baixo cara! Vem, pega a lanterna.

-Olha essa chuva, doido. Não vai ter nada lá.

-Vem, ou fica aí. Eu vou lá!

-Cara descer a trilha nessa chuva periga escorregar. Bota o tênis, Evandro.

Evandro e Alex colocaram os tênis e saltaram da casa para a chuva torrencial, iluminando o caminho com a lanterna.

Eles desceram pela trilha, a água descia da parte alta, escoando pelas pernas deles em direção ao mar. O caminho era escorregadio e Evandro quase escorregou duas vezes, sendo amparado por Alex.

Eles chegaram no píer, mas não havia nada.  Apenas as madeiras sendo sacudidas de um lado para o outro pelas ondas que batiam e varriam tudo por cima das pedras, rodeando a ilha com uma espuma branca que parecia efervescer sob a luz potente da lanterna de leds.

-Eu ouvi! – Gritou Evandro, apontando a direção.

-Evandro, nunca fomos pra lá. Cuidado. Não vai! Não vai. – Alex tentou segurar o amigo, mas motivado pela curiosidade, Evandro se desvencilhou de Alex e correu pelas pedras. Alex se limitava a iluminar os passos do amigo, tentando evitar que ele caísse numa fenda ou escorregasse. A chuva era uma tromba d´água inclemente.  Eles precisavam gritar a plenos pulmões para um escutar o que o outro queria dizer.

Alex se assustou quando Evandro se virou e agarrou o braço dele que segurava a lanterna. Depois apontou na direção das pedras.

O facho bateu em alguma coisa branca no meio da espuma e das ondas que estouravam nas rochas.

Os dois homens se olharam espantados. Logo correram pelas pedras até chegar mais perto daquilo e chocados deram de cara com o corpo de uma mulher morta, nua, parcialmente agarrado nas rochas, enquanto as ondas atingiam suas costas.

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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