Gringa – Parte 7

Evandro sabia que agora o tempo estava contra ele.
Caminhou depressa pela mata. Seu pé finalmente pisou em algo plano e gelado e ele soube que estava finalmente entrando na trilha de pedras que dava a volta na ilha.
Na escuridão, desorientado e agora suando frio com o susto da picada, Evandro não sabia de deveria seguir para um lado ou para o outro. Qual dos lados o levaria direto para a casa em menor tempo?

Ele gritou por Alex, pedindo ajuda, mas  gritar lhe pareceu ineficaz.

Cruzou os dedos e torceu pelo melhor. Seguiu para o lado direito, mantendo o som do mar sempre a sua esquerda.  Caminhou com dificuldade por um longo tempo. Conforme percorria o trecho repleto de limo e pequenas plantas espinhentas, que vez ou outra lhe fustigavam a carne já machucada das pernas,  pensava na loucura que tinha feito. Talvez não conseguisse chegar a tempo na casa para pedir ajuda a Alex.  Mas apesar das condições desgraçadas, Evandro se agarrava na esperança de que Manel apareceria no dia seguinte trazendo os mantimentos e ele poderia ser levado para o posto de saúde na vila.  Ele só precisaria aguentar aquela noite. Era preciso ser forte e encarar o perrengue.  Aquela não era a primeira vez que Evandro tinha a falta de sorte de ser picado por uma cobra.

Evandro já havia passado por diferentes situações adversas na vida. Escapar do incêndio que matou toda sua família na Suíça foi um deles.

Evandro tinha quase dezoito anos na época, quando, no meio da madrugada, acordou com um estalo. A casa estava toda em chamas. No incêndio, chamas estavam altas por todo o ambiente. O quarto pegava fogo e as cortinas estavam queimando. Ele se levantou da cama tossindo muito, estava tonto.
Se jogou no chão e tentou se arrastar, mas ao abrir a porta do quarto para fugir, se deparou uma verdadeira fornalha no corredor. As paredes de madeira queimavam em enormes labaredas laranja. O ambiente estava quase todo repleto de fumaça densa.
Evandro recuou e usou um abajur para quebrar a janela. Se enfiou pelo meio dos cacos e a primeira coisa que sentiu foi a lufada de vento geladíssimo, que contrastava com o calor infernal dentro do chalé da família. Ele saltou pela janela, caindo no mato. Era verão na Suíça e não havia neve para amparar sua queda. Ao cair no mato, desceu rolando pela encosta e bateu a cabeça numa pedra do magnífico jardim.
A última visão que ele se lembrava era o chalé sendo engolfado pelas chamas na escuridão.

Apagou antes de perceber que naquela madrugada fatídica Evandro perderia para o fogo seus pais, Dr. Ivo e Samara e sua irmã, Michelline.

O incêndio destruiu a propriedade da família. Os bombeiros, por dificuldades de acesso ao local nos alpes, tiveram dificuldade de controlar o fogo.  A mansão, encomendada por seu avô, o Conde de Marialva, queimou até virar cinzas. Quem diria que a busca por tanta exclusividade, comprando um terreno praticamente inacessível nos alpes, sem vizinhos ou grandes estradas cobraria um preço tão alto… A casa, era a segunda encomenda de Le Corbusier.  Quase toda de madeira e pedra, era repleta de  elementos medievais no contexto de um tradicional chalé suíço. O arquiteto tinha apenas 19 anos quando recebeu este projeto, que havia chegado até ele por intermédio de seu então seu professor, Charles L’Eplattenier, numa parceria com o René Chapallaz.

A perda da casa foi um golpe duro para a arquitetura mundial, mas muito além da perda do bem, foi a trágica morte de sua família. Meses depois de se recuperar das queimaduras e de uma cirurgia para a recuperação de um traumatismo craniano, Evandro receberia a informação da liberação de sua herança.

Era agora um jovem multimilionário, mas triste.

Sem seus pais e sua irmã, a vida parecia ter pouco ou nenhum sentido. Durante dois anos, Evandro resolveu viajar. Iniciou sua caminhada pelo mundo, como chamava, por lugares exóticos. Índia, Líbano, Marrocos e Egito.  Viajou de trem pela Mongólia e visitou a China.
Uma fundação ligada ao banco Julius Baer, do qual seu avô havia sido sócio, gerenciava a herança, investindo o capital e pagando a ele uma gorda “mesada” todos os meses.

Numa dessas viagens, explorando ruínas no Camboja, ao cruzar um matagal, Evandro foi mordido por uma cobra. Foi seu primeiro encontro malsucedido com os ofídios. A cobra era muito grande, mas surgiu do nada em meio a tocos de árvore e o acertou numa mordida quase à altura do joelho, por cima da calça. Evandro conseguiu dar um tapa na cobra e cair para trás, afastando a serpente, mas era tarde. A mordida tinha sido violenta.

O jovem percebeu que estava muito encrencado pela reação de Lai, seu guia. Quando Lai bateu o olho e viu a enorme cobra rastejando para debaixo de uma pedra, ele reconheceu a serpente. Era uma das cobras que mais matavam no Camboja. Ele começou a berrar “Oh no, oh noooo” sem parar.

O guia ficou pálido e começou a gaguejar loucamente. De fato, Evandro começou a sentir os efeitos do poderoso veneno em minutos. Seu rosto começou a esquentar e ficar vermelho. Ele estava tonto. O guia o jogou com toda força dentro e uma pequena van e dirigiu como um louco. Logo, Evandro estava sendo acometido de uma fraqueza absurda e um sono inexplicável. A área do joelho havia se tornado uma bola enorme que latejava terrivelmente. O guia dirigia e berrava para que ele não dormisse.   Felizmente, os organizadores da viagem eram bastante preparados. O guia conseguiu mandar uma mensagem por rádio. Evandro  foi levado com rapidez ao Centro Hospitalar Provincial Kampong Thom onde recebeu o soro.
Lá ele ficou sob cuidados intensivos e ficou sabendo que aquela cobra era muito perigosa. Tratava-se da perigosa Naja Monóculo. Se o processo de resgate dele demorasse mais de uma hora ele teria morrido.

Na escuridão da mata, na ilha Alas, tendo alguma experiência com serpentes e picadas, Evandro andava rápido, mas não rápido ao ponto de disparar seu batimento cardíaco de maneira excessiva, pois isso espalharia o veneno.

Ele caminhava agarrado a esperança de que se havia sobrevivido a naja monóculo, não seria alguma cobra de ilha do Brasil que ia derrubá-lo.  Não ter conseguido ver a cobra era um problema. Ele andava tentando se lembrar os tipos de cobra que habitavam a região. Evandro sabia que as cobras de ilhas tendem a sofrer adaptações genéticas que as tornam fortemente venenosas. Mas havia a chance da cobra não ser venenosa. Ele poderia ter pisado numa cobra sem peçonha, e ela mordeu por defesa. Poderia se tratar inclusive uma cobra coral, que é comum na região, sobretudo à noite, e que embora seja muito venenosa, nem sempre libera o veneno na mordida.  Pensar naquilo o acalmava.

Gradualmente,  Evandro viu uma luminosidade laranja brilhando através das árvores. Era fogo!

A área da mordida estava começando a doer. Doer muito. Mais do que a mordida da naja no Camboja dois anos atrás… Sua vista estava ficando embaçada mas ele mesmo não sabia se isso se devia a falta dos óculos, perdidos no mar, ou ao efeito do veneno.

Ele avançou apressado na direção do fogo, gritando por socorro.

Perto dali, Alex estava sentado fumando e observando as labaredas da fogueira subindo para o céu. Ele estava todo suado e cansado de carregar os mantimentos sozinho. Praguejou pelo vento ter parado e pelos pernilongos. O fogo consumiu rápido as folhas secas e os galhos derrubados pela ventania e chuva a noite anterior, liberando uma coluna de fumaça. FIcar perto da chama afastava os insetos mas o calor incomodava.  Os galhos estalavam sob a ação das chamas.
Alex se sentou a meia distancia do fogo e  estava desfrutando finalmente de um copo de uísque red label com gelo. Uma deliciosa novidade surgida no meio das compras. Manel sabia agradar aos patrões.
Foi quando ouviu o pedido de socorro vindo da mata.

Alex largou o copo e correu para perto do mato.

-Evandrooo? – Gritou.

-Socorro! Socorro! – Evandro berrou do mato em resposta.

Alex correu até a casa, pegou a lanterna e se meteu na densa vegetação escura.  Logo o facho poderoso e branco atingiu Evandro, que estava se apoiando numa árvore. O jovem suava em bicas.

-Uma cobra me picou! Uma cobra!

-Puta que pariu cara! Vem, Apoia aqui. Vem…  – Disse Alex estendendo-lhe o braço.

Evandro passou o braço por trás da cabeça de Alex, e foi erguido no ar. Alex pegou Evandro no colo e correu pela mata na direção da casa. Ele colocou o rapaz no sofá.

-Não, não!! Deixa a perna abaixada! Bota esse pé pra baixo, doido! – Zangou Alex, enquanto corria de um lado para o outro sem saber bem o que fazer.

-Calma, cara. Calma. – Evandro disse, meio zonzo.

-Tu viu a cobra? Que cobra que era? Como ela era?

-Eu não vi, tava tudo escuro cara.

Alex correu ate o celular tentou ligar. – Vai, porra! Vai, porra, liga seu desgraçado!

-Ela me pegou bem aqui no tornozelo direito. – Disse, mostrando a ferida. Estava uma mancha vermelha que se espalhava pelo ponto da mordida.

-Vou chupar o veneno! – Disse Alex.

-Não, não! Isso é palhaçada de filme, cara. Isso não funciona.

-Claro que funciona.

-Não funciona, mongolão! Eu já fui mordido de cobra antes. Eu sei. O médico me falou la no Camboja.

-E um torniquete? Temos que prender o sangue da sua perna.

-Outra porra que não funciona, cara. Pega o álcool. Temos que lavar a ferida.

Alex largou o celular ligando e trouxe o álcool.

-Pode derramar legal! – Evandro, mostrou o lugar e foi fechando os olhos.

O amigo jogou o álcool e limpou a mordida. Dava para ver bem os dois furos na pele. -A gente tem que te tirar dessa ilha!

-Amanhã, quando seu Manel vier, eu vou com ele para a vila. Essa noite que vai ser crítica!

Alex apenas olhou com uma expressão vazia para o amigo.

-Que?

-Ele veio quando você tava no mato. Eu acho que talvez ele… sei lá.

-Ele veio já?

-Veio.

-Puta que pariu. Agora fodeu!

-Fodeu muito!

-E eu nem achei a mina lá.

-Que droga, cara. Esquece essa porra dessa mulé! A gente tem que cuidar é disso aí! Essa cagada aí!

Ele se levantou e foi até o telefone. – Puta merda, sem sinal de novo.

-Tenta ativar o modo avião e desativar.

-Vai, vai, vai…. Merda. Nada. Sinal nenhum nessa bosta. O que você tá sentindo?

-Relaxa, cara. Relaxa. Vai dar tudo certo. – Evandro disse, revirando os olhos. A dor no lugar da mordida estava se aproximando do lancinante, mas vendo o estado de nervoso de Alex ele não queria desesperá-lo. Estava ficando enjoado.

-Alex…

-Que? Quê? Fala, o quê que foi?

-Traz o balde! Tô passando mal cara.

Alex correu na varanda e pegou um dos baldes.  Trouxe correndo.

Evandro começou a vomitar sem parar.

-Puta merda, cara. – Alex andava de um lado para o outro. Não sabia o que fazer. Começou a da socos na porta. – Cobra filha da puta! Ilha maldita!

Evandro apenas levantou a mão, pedindo que Alex se acalmasse.

Alex sentou na beirada da porta da varanda. Ficou ali alguns minutos olhando Evandro. Ele estava pálido e respirando com dificuldade.

Alex entrou, pegou o celular e saiu.

-Vai… onde… cara? – Evandro gemeu.

-Vou subir no telhado. Talvez pegue o sinal!  – Disse Alex já saindo.

Ele pegou a escada improvisada que haviam feito com galhos das árvores. Jogou na lateral da casa e trepou nos degraus. Rapidamente alcançou o telhado.

Lá dentro, Evandro estava se sentindo cada vez pior. Vomitou novamente. Estava com o estomago vazio, não saía nada mas seu corpo queria vomitar e aquilo dava uma dor aguda no abdômen.

Ele podia ouvir as telhas estalando. Alex estava lá em cima, no telhado, pendurado como um macaco.
“Espero que essas madeiras podres aguentem o peso dele” – Pensou.

Vomitar sem nada no estomago estava horrível, e Evandro precisava ingerir água. Levantou-se com dificuldade do sofá. A perna estava latejando a dor antes restrita a perna, estava subindo e espalhando-se pelo pé. Ele viu que o seu pé direito estava maior que o esquerdo. Estava inchando muito.

“Mau sinal” – Pensou.

Foi até o galão e começou a beber água.

Estava muito tonto. Tudo estava rodando… Ele precisava voltar para o sofá o mais rápido possível. Começou a ficar escuro.

Evandro tombou no chão.

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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