Estou meio sem saco de escrever sobre as coisas de sempre. Sabe como é, O Brunno até meio que previu isso. A gente escreve sobre os mesmos assuntos durante muito tempo e aí a coisa começa a ficar meio maçante. Surge no canto da boca um certo gosto amargo de rotina. E rotina é uma porcaria.
Eu não quero escrever aventuras reais que ninguém nunca acredita. Também não estou afim de escrever histórias sem pé nem cabeça onde só o que se tem é a certeza da morte do herói e de um desfecho final pretensiosamente surpreendente.
Não quero falar do novo robô japonês ou do carro que o sujeito fez que funciona com água.
Eu não quero nada, entende?
Mas é chato, porque eu sei que tem gente entrando aqui pra ver se eu já escrevi a “coisa” de hoje. Acredite ou não, além de você deve ter mais uns seis que leem as coisas que eu escrevo, e também uns vinte que só entram pra olhar as figuras.
Sei que você não é desse balaio, mas é meu dever avisar que não tô muito inspirado hoje, então não se assuste se não sair algo que preste nesse treco.
Vou me limitar a escrever apenas o que me vier à cuca.
E o que me vem à cuca agora é uma lembrança fugaz do sonho que eu tive nesta madrugada.
Todo mundo gosta de ouvir (ou ler) os sonhos alheios. Confesso que ao optar por Psicologia, eu pensei seriamente sobre os prazeres de interpretar os sonhos de meus pacientes. Então é sempre algo interessante, pois nos remete a outras questões. Questões que como convém lembrar, só fazem sentido para quem os sonha, mas num tratamento clínico de longa duração, podem revelar alguma coisa escondida, malocada nas profundezas do nosso íntimo. O sonho é aquele “pum” do inconsciente. È como estar no elevador, você e o terapeuta e então surge o pum. Um peidão rasgado, como uma moto que engata a segunda e estica a marcha. Não tem como disfarçar. Ele sabe que não foi ele e você sabe que o pum é seu. O terapeuta te encara e tá na hora de meter o dedão. Meter o dedão na ferida e falar sobre aquilo ali.
Ah, dane-se.
Vamos ao sonho que tá na hora.
Lá estava eu.
No início não dava pra entender direito. Tem vez que eu sonho e parece que é meio que um filme. Uma parada levemente embaçada. Meu sonho tem um efeito que nós da área dos efeitos visuais e de games chamamos de Gloom.É um efeito que borra as cores estouradas, num brilho meio mágico. É como fotografar com um filtro melecado de vaselina.
Então haviam uns caras ao meu redor e todos falavam em latim. Curiosamente eu também sabia que não me chamava Philipe. Era eu, mas não era, entende?
Eu me chamava Claudiano.
Eu era um soldado. Treinado e preparado para o combate.
O ano devia ser algo entre 216 e 218 antes de Cristo.
Era um sol escaldante e me lembro que os caras ao meu lado cheiravam tão bem quanto um gambá morto num barrril de cocô.
Estávamos marchando havia alguns dias. Nós marchávamos da alvorada ao fim do entardecer quando chegávamos nos acampamentos já previamente estruturaados. Roma era sábia em equipar seus exércitos.
O problema é que estávamos como sempre em guerra, e aquilo havia virado uma tenebrosa rotina. Viajávamos a pé por semanas até chegar ao campo de batalha. Onde não raro a coisa acabava numa carnificina sem fim.
Eu estava acostumado, pois havia me alistado aos 25 anos e após seis anos de intenso treinemanto, entrei para uma das 28 legiões de Roma.
A coisa era um pouco complicada. Cada uma das 28 legiões era formada por um Legatus. Algo como um general. O Legatus tinha seis tribunos que obedeciam e davam a saber as ordens do Legatus. Atrás dos tribunos vinha a coorte. A coorte era uma massa de 500 homens, todos excelentes combatentes. Cada coorte dividia-se ainda em seis centúrias.
Cada centúria tinha mais ou menos uns oitenta homens. As centúrias obedeciam ao centurião. E o centurião era um dos soldados com mais tempo de combate ou habilidade, mas ele ia atrás, fiscalizando nosso marchar.
Eu estava bem no meio de uma coorte. Durante um tempo podíamos falar, mas não era recomendado. Falar cansava muito e nós éramos muito concentrados. Muito profissionais mesmo.
Andávamos na mesma batida. A passada em marcha. Durante muito tempo ouviamos apenas o som dos metais raspando e o som de trovoada que ecoava a cada uma das passadas simultâneas de cinco mil e tantos homens.
Estava muito quernte mesmo, e eu usava uma cota de malha pesadaça sem mangas. Abaixo havia uma túnica de lã embebida de suor. Na minha cabeça, espetando o pescoço estava um pesado elmo de ferro. Mas peso mesmo estava no meu escudo de madeira gigante, quase do meu tamanho, que era coberto com couro e guarnecido com ferro.
Mas pelo menos eu tinha calçados. O terreno no qual marchávamos era pedregoso e sem as sandálias de couro seria impossível continuar a marcha que vínhamos mantendo há quinze dias.
Eu ainda carregava um pilum. Pilum era uma lança comprida com metade feita em madeira e a outra feita em ferro. Ainda havia um gladius na minha cintura, que era uma espada curta. Eu devia usar o gladius apenas em franco combate. Eu lembro que sabia que o gladius era minha arma preferida. Eu era um bom lutador de espadas.
Sob o sol escaldante de agosto, nos preparávamos para o combate com as forças de Aníbal. Eu mal podia imaginar quem diabos era o tal do Aníbal, mas sabia que ele era o inimigo, era a bola da vez. Era um rolo com Catargo e Roma que se arrastava há dez anos. Chegamos a Canas, no sul do que hoje é a Itália na tarde de 22 de agosto. Canas era uma pequena fortaleza que funcionava como depósito de provisões.
No dia seguinte, tão logo os primeiros raios do sol surgiram no céu pintando o azul em tons de rosa e logo depois tons alaranjados, partimos para o combate.
Nossa legião encontrou-se no campo de batalha com as demais. Era muito mais gente do que eu jamais havia visto em toda minha vida. O volume de soldados, precisamente colocados nas estruturas geométricas das legiões refletia o poder de roma. Oitenta e seis mil homens.
Na verdade mesmo era gente que não acabava mais numa planície meio acidentada. Lá na frente no horizonte, estava o tal Aníbal e uma massa enorme de homens. Os homens de Anibal tinham elefantes e outros bichos. Cavalos, soldados negros e asiáticos.
Da política de Roma o que sabíamos era que um cônsul nomeado declarara guerra a Aníbal por saber que o grande líder militar pretendia atacar Roma.
O sinal foi dado e marchamos com a impenetrável massa de escudos sob as cabeças formando tanques humanos com as lanças espetadas para fora.
Investimos com tudo de frente para o exército de Anníbal, que abriu um enorme “C”, com espêssas pernas de soldados nas laterais, mas com o miolo bem fraco.
Lembro que o centurião gritou que Aníbal dividiu o exército, enfraquecendo-o e que devíamos avançar com vontade.
Não tardou a uma nuvem negra de flechas voar sobre nossas cabeças atingindo os escudos e repicando para todos os lados.
Ouvimos soar o outro sinal e sacamos nossos gládios. Partimos para o combate. Os inimigos atacavam gritando. Nós lutávamos em silêncio. O som dos metais raspando-se os escudos chocando-se e pessoas urrando em meio a cavalos e até elefantes era tudo que se podia ouvir em quilômetros.
Desafiando as regras ensinadas na formação, coisa que eu já havia feito em duas batalhas anteriores e saído vivo para contar, parti a toda velocidade que pude para cima do gigantesco elefante.
A criatura mais parecia uma besta apocalíptica descomunal, sacudindo a cabeça para todos os lados. Nós começávamos a ser atacados por uma pesada cavalaria com longas filas de lanceiros nas laterais. As Pernas do “C” criado por Aníbal se fechavam sobre nós.
Soou o apito para recuarmos. Os soldados começaram algo que eu nunca antes havia visto. Fugir. Roma não foge. Aquilo simplesmente não era possível. Mas acontecia. E eu tratei de pegar meu escudo para fugir.
Do nada, como surgido da escuridão, veio uma espadada bem na minha cara. Acertou meu capacete, amaçando-o. Eu desequilibrei e caí por cima de um cadáver romano que estava morto atrás de mim. No chão, de pernas para o ar, vi um espadachim inimigo. Um homem enorme e com cara de sujo. Uma barba infecta. Ele voltou-se contra mim empunhando uma enorme espada. Eu pude ver numa fração de segundo a minha vida toda e ali estava a minha morte de frente. Reagi rápido, puxando o gládio e atingindo-o nas pernas. O sangue espirrou e o homem caiu. Levantei-me o mais rápido que pude, largando o escudo. Cravei-lhe o gládio no peito com tamanha força que caí sobre o cadáver dele. O Homem vomitou uma golfada de sangue na minha cara.
Uma sombra surgiu na minha frente. Era o elefante. Ele tinha um pilum enfiado no olho. O elefante estava cego. Em fúria, jogava para o alto soldados do próprio exército. Me esquivei da presa com pontas de cobre e vi que dezenas de soldados atacavam o flanco do animal, espetando-lhe piluns e cortando-o com espadadas. No alto da criatura, uns seis arqueiros disparavam contra os soldados. Sentado no pescoço do elefante estava um lanceiro com uma longa lança que espetava um romano no peito.
Joguei-me sobre a lança e consegui derrubar o lanceiro. Ele caiu perto de mim. Corri para cima dele. Pensei em matá-lo como eu fiz com o guerreiro sujo, saltando com o gládio para espetarlhe o peito. Mas não deu. Ao olhar para o lanceiro caído na minha frente, eu pude ver olhos injetados de pavor.
Eu sabia que minha imagem segurando uma espada curta romana não seria capaz de gerar tamanha expressão aterradora.
Me virei e o que vi foi assustador demais. O elefante girava o corpo no ar.
A criatura cambaleou e a última coisa que eu pensei foi:
“Ele vai cair em cima de mim!”
A massa gigantesca de carne, sangue e tripas caiu sobre meu corpo e eu acordei.
Era de manhã. Hora de ir tomar café.
Nada como um bom café após a batalha.
FIM
Não dá pra ficar bolado como é que eu sonho uma coisa dessas sem ver nenhum filme épico ou ler livros de história antes de pegar no sono? Eu também não entendo.
Gostei do seu site. Conheça o meu: http://www.criadomudo.com.br . Querendo fazer parceria é só avisar.
Minha-nossa-sinhora…
Camarada, me conta o que você você comeu antes de dormir (foi meio quilo de pernil?), pra eu conseguir um sonho bacana desse também…
Continue sonhando, eu continuo lendo!
Forte abraço.
Companheiro voce viveu vidas passadas. Foi brilhante companheiro. Voce participou da mãe de todas as batalhas: a batalha de Canas. Fantastico! jamais havia lido algo igual. Jamais havia lido algo com tanta riqueza de detalhes. Voce participou da batalha mais incrivel da história. A verdadeira arte da guerra com maiúscula. O dia em que a guerra deixou de ser guerra e virou arte. Pura arte. Aníbal foi demais. Infelismente voce estava do lado perdedor.
preciso sonhar assim
quando eu tinha 12 anos, eu sonhei com uma história que eu fiz, e eu era o personagem principal (que ñ se chamava Daniel). Mas aí aconteceu uma coisa diferente, eu morri.
Mas cara, o que tu andou comendo pra sonhar assim hein? Muito bom o post.
Philipe, esse seu sonho se enquadra na categoria ‘contos’, certo??
Será?
Eu acredito que sim, ou….. no mínimo vc leu muito a respeito antes de dormir e replicou em forma de sonho… rs!