quarta-feira, dezembro 18, 2024

O cartão negro – Parte 2

Paulo estava no velório. À medida em que os parentes iam saindo, se despedindo, ele ia ficando para trás. No fim daquela noite, restava apenas Malucão, Paulo e dona Mara, a defunta. Ela estava deitada no caixão de madeira escura. Apenas o rosto de fora. Estava muito maquiada, como costumava ir em casamentos. Paulo lembrou-se de bons momentos que vivera com a mãe.

-Eles fizeram um bom trabalho lá na funerária, cara. – Foi tudo que Malucão conseguiu dizer ao olhar a mãe do amigo.

Paulo olhou para Clóvis e viu no fundo dos olhos vermelhos do amigo que havia uma dor tão profunda que ele era incapaz de consolá-lo. Dizer algo sobre a funerária era a forma que ele encontrava de não chorar, não dar o braço a torcer, afinal, na cabeça dele ele estava ali para ajudar Paulo a superar a perda.

Paulo olhou para o amigo, apoiou o braço no ombro do cara e disse apenas:

-Valeu cara.

-É nóis! -Ele disse Malucão, disfarçando uma lágrima que ameaçava se jogar do olho esquerdo.

Ela era uma guerreira. Dona Mara criara o filho com dificuldades após a morte do pai, atropelado quando andava de lambreta.  Era uma mulher cheia de energia e vê-la ali, naque estado dava uma estranha impressão de que havia algo errado.

-Véio, vou nessa, beleza?

-Tranquilo.

-Precisa de alguma coisa?

-Não, não. Valeu mesmo, Brother.

-Que isso. Ela era uma mãe pra mim também. Tu sabe. Amanhã nós tamos aí pro enterro.

-Falô. – Disse Paulo, despedindo-se do amigo.

Quando Malucão saiu, ele ficou sozinho com o corpo da mãe.

Ficou ali, olhando pra ela. Em silêncio. Tentou gravar a imagem da mãe no caixão na memória. Aquela era a última vez que ele via a mãe.

O tempo pareceu passar mais rápido do que de costume. Antes que pudesse se dar conta as primeiras pessoas começaram a chegar para o enterro. Tia Glória veio do interior para acompanhar o enterro da irmã. Foi ela que disse a Paulo que ele podia ir pra casa, tomar um banho e se preparar para o enterro.

Paulo saiu da capela e foi de táxi pra casa. Parou na padaria em frente e tomou um café. Lembrou que nunca mais tomar o café que a mãe fazia desde que ele se entendia por gente… Horas depois estava de volta, com o terno preto e óculos escuros.

Foi duro ouvir as últimas palavras do padre. As pessoas fizeram uma oração e ele viu o caixão ser colocado na gaveta da parede. Paulo ficou por ali alguns momentos. Um a um as pessoas despediam-se e saiam com um trágico em silêncio marcado de consternação.

Novamente Paulo se viu sozinho no cemitério. Ele e a parede, que agora acabava de ser lacrada com cimento pelos coveiros.

Paulo rezou um pai-nosso. Jogou as últimas flores sobre a laje do sepulcro e saiu. Andou cabisbaixo até o ponto de táxi. Foi trabalhar.

-Atrasado de novo, Paulo? – Questionou Cardoso. Paulo olhou pro chefe com o olhar mais intolerante e carregado de nojo que alguém poderia lançar sobre outra pessoa.

A secretária fez um sinal estranho por trás de Paulo, e o chefe percebeu que havia falado merda. Tentou consertar.

-Tô brincando, cara. Brincadeira. Eu sei que sua mãe morreu. Que foda, hein? Mas olha o lado bom, cara… Agora a casa é só pra você, meu.

Paulo deu um sorriso amarelo, quando na verdade tinha a vontade de dar um murro no meio daquela cara de pamonha. Entrou para a baia e ligou o computador.

Cardoso saiu rindo da própria piada. Quando o chefe saiu, as secretarias do andar e os demais colegas do setor vieram lhe dar os pêsames. Paulo agradeceu, e voltou ao trabalho. Queria trabalhar para esquecer. Abriu a pasta do desktop onde estava o projeto de reestruturação da empresa…

-Caralho, cadê? -Disse ele, sentindo um arrepio eriçar os pelos da nuca.

O documento havia sumido.

Paulo tentou fazer uma varredura, uma busca no sistema. Nada. O arquivo em que ele havia passado meses trabalhando havia simplesmente desaparecido por completo do computador.

-Puuuuuta que pariu! – Sussurrou.

Paulo ficou tentando lembrar o que havia acontecido. Se deu conta que na última vez que estava trabalhando no arquivo, recebeu a fatídica ligação dando notícia do acidente da mãe dele. Ele saiu tão afobado que não desligou o pc. Pior, deixou o documento aberto na tela.

Paulo pensou o que poderia ter ocasionado o sumiço do arquivo. Lembrou que a última pessoa que ele viu era o… Cardoso. O chefe da divisão. O babaca mor do planeta Terra.

Paulo não teve dúvidas. Foi direto na sala de Cardoso.Entrou sem bater. O balofo estava no telefone, falando amenidades com alguma piriguete.

Paulo sentou pesadamente na poltrona em frente a mesa do chefe e esperou. Cardoso fez um sinal para ele esperar, e continuou o papo por mais vinte minutos. Paulo sentia o calor da raiva crescer dentro dele a cada segundo. A vontade de explodir ia aumentando, aumentando…

Quando Cardoso desligou o telefone, olhou sério para Paulo.

-Que é? Que cara de cu é essa?

-Doutor Cardoso, o senhor por acaso viu um documento que estava aberto no meu computador ontem?

-O que?

-Um documento. Eu saí e não tive tempo de desligar o computador. Ficou um arquivo meu lá, que eu tava trabalhando. Hoje cheguei pra trabalhar e o arquivo não estava mais lá.

Cardoso sorriu cinicamente. Paulo manteve-se sério.

-Olha, Paulo… Eu não sei de arquivo nenhum não. Você perdeu? É isso? Espero que não seja nada importante. Certamente que se fosse você teria um backup, não é mesmo?

Paulo estava sem argumentos. Ele percebeu claramente que Cardoso mentia. Assentiu com a cabeça e limitou-se a dizer.

-Não, tudo bem. Era só pra saber mesmo. Obrigado. -Disse levantando-se e saindo.

-Ei Paulo? – Cardoso falou.

Paulos e virou com algum cisco de esperança em seu coração.

-Aqui, leva esses documentos ali no setor de cópia pra mim. Pede dois desse e seis desse aqui, falô?

-Ah…Tá bom. – Resmungou ele. Frustrado, saiu da sala do chefe com passos lentos.

Passou na copiadora, deixou os contratos e voltou para sua baia.

Sentou na frente do pc e pensou em reescrever tudo. Mas aquele era um trabalho de vários meses, de muita dedicação e por mais ridículo que fosse, ele realmente não tinha um backup.

-Foi ele. Foi o filho da puta, cara. – Disse uma voz atrás de Paulo.

Era Malucão.

-Logo que você saiu, ele entrou aqui. Ficou um tempo lendo o que tinha na tela. O que era? Eu vi quando ele sentou na sua mesa. Cara, eu acho que ele copiou algum troço aí e vazou. Saiu sem falar nada. De um jeito estranho. Parecia feliz. Eu nunca vejo esse escroto feliz. Mas ontem eu vi.

-Cara… Sabe aquele lance que eu tinha te falado? O projeto de reestruturação completo da empresa?

-Ah, não fode…

-Pois é.

-Ele roubou cara? E aí? Tu foi lá? Enquadrou ele?

-Ele disse que não viu nada. Mas eu vi na cara dele que era mentira. Pior que o puto é o nosso chefe e não tem o que se possa fazer.

-Que merda, Paulo.

-Imagino que ele já deve estar mexendo no texto e vai apresentar como ideia dele né?

-É, ele é bem desse tipo mesmo. Desgraçado. E o backup?

-Eu não tinha.

-Ah, não. Puta que pariu, cara. Como você dá uma merda dum vacilo desse?

-Cara… Sei lá. Esqueci. Sabe como é: “Só Jesus salva”.

-Fuuuu…

-Cara esse Cardoso… É um babaca.

-Quer saber? Vou embora cara. Não dá pra ficar aqui mais. Eu tô a ponto de mandar essa porra de empresa pra puta que pariu!

-Fala baixo, cara. Quer ser demitido? Fica frio, pô. Sabe que o puia tem perseguição com você, cara.

-Tá limpo. Tô indo nessa. A gente se fala amanhã, cara. Se quiser, passa lá em casa hoje a noite.

-Tá safo. Se eu não puder, bom feriado amanhã, amigão.

-Valeu.

Paulo saiu da empresa. Pegou outro taxi e foi pra casa.

-Doze reais e cinquenta – Disse o taxista.

-Aqui, moço. Toma. – Disse Paulo estendendo uma nota de vinte.

O taxista deu o troco.

-Será que o senhor podia me dar o seu cartão?

-Ah, sim. Toma. – Disse o homem estendendo o cartãozinho pra ele entre os dois dedos.

Foi estranho chegar em casa. Havia lembranças da mãe dele em todos os lugares que olhava.

Ele foi até o quarto dela. Estava tudo ali, no lugar. Era como se a mãe dele tivesse ido na farmácia ou no teatro. A sensação era inequívoca que ela ia entrar por aquela porta a qualquer momento. Mas ela não voltou. Paulo abriu os armários, tentou juntar as coisas da mãe para doar… Mas a dor era muito grande.  Ele começou a se sentir mal. Saiu e trancou o quarto. Decidiu que só iria mexer nas coisas da falecida mãe quando a dor da perda diminuísse.

Foi até a geladeira, pegou uma cerveja. Sentou no sofá da sala e ligou a Tv. Tentou desligar a cabeça vendo novelas, jornal e essas porcariadas que passam.Ligou para a pizzaria. Escolheu uma nova na lista telefônica.

-Manda uma pizza de atum? Ah… E o cartão da loja, tá? Manda o cartão da loja.

Meia hora depois paulo recebia a pizza com o cartão.

Antes de comer a pizza, ele foi até a pasta de “comida” da coleção e abriu na seção de pizzarias. Colocou mais um cartão na coleção. Anotou no canhotinho com cuidado o nome e o numero da empresa.

Aquele era um ritual. Todo cartão da coleção tinha uma espécie de aba de papel, com o nome da pessoa ou empresa e telefone.

Após se empanturrar de pizza com cerveja, enquanto os programas rolavam na tela do aparelho, sua cabeça só  remoía a tamanha burrice que tinha sido fazer todo aquele projeto, tão importante pra ele e para a empresa e não gravar.

Antes que pudesse se dar conta, Paulo pegou no sono.

Acordou um uma bruta dor de coluna no dia seguinte. O sofá antiquado da sala era muito desconfortável.

-Ung! A primeira coisa que eu vou fazer é comprar um sofá novo aqui pra casa. Quem gostava desse lixo era a mamãe.

Foi até o banheiro, escovou os dentes e tomou um banho. Estava com a cara bem amarrotada. Vestiu a primeira roupa que viu e foi até a padaria tomar um café.

Tomou o café em pequenos goles, olhando o mundo em volta. Era a segunda vez na vida que ele tomava café na padaria. Mas era legal. Paulo pensou que não seria difícil se habituar com aquela nova rotina.

Terminou o café, comprou um jornal na banca. Ele já estava saindo quando lembrou de um detalhe.

-Oi?

-Pois não?

-Será que você teria um cartãozinho aí da banca?

O homem da banca deu um cartão da banca pra ele. E Paulo saiu mais feliz.

Ele ia voltando pra casa quando passou num camelô vendendo flores. Paulo comprou umas flores, pediu o cartão do florista e resolveu levar pro túmulo da mãe.

Minutos depois ele já estava no cemitério. Paulo rezou um pouco e colocou as flores no jarrinho preso na parede.

-Fica com Deus, mãe. “Bênça”…  -Disse ele beijando a mão e encostando a mesma na plaquinha que levava o nome dela. Foi estranho não escutar um “Deus te abençoe, meu filho” após tantos anos ouvindo aquele mantra.

Paulo caminhou cabisbaixo até o ponto de táxi.

Ao dar cerca de dez passos, paulo viu um cartão preto sendo açoitado pelo vento, como se caísse de cima de uma sepultura.Caiu uma pequena poça d´água, quase na porta do cemitério.

Cartões pretos eram incomuns na coleção, porque só haviam virado moda nos últimos anos.

Paulo pegou o cartão da poça. Mas não havia nada escrito. Nem nome, nem marca, nem empresa.

Ele secou o cartão na perna da calça. Tornou a olhar. Era um cartão estranho, diferente de todos os que ele tinha. Era do mesmo tamanho, impresso em papel, mas era preto dos dois lados. Sem nome. Sem nada.

Paulo se perguntou se de fato era um cartão de visitas. Talvez fosse um pedaço de etiqueta ou coisa do tipo.

Ele já ia descartar o objeto quando viu refletido na luz do sol alguma coisa escrita no cartão. Era impresso em verniz sobre a laminação fosca.

“Engenhoso” ele pensou. Olhou na luz e conseguiu ler apenas um site, escrito em letras miúdas:

www.azrael6174.com

” Site de webdesigner. Só pode ser”, pensou. Enfiou no bolso, pegou o primeiro taxi do ponto e foi pra casa.

Chegou em casa, Ligou pra locadora e pediu três filmes. Resolveu passara  tarde vendo filme de comédia, pra desanuviar o espírito.

-Ah… Pode me mandar também o cartãozinho aí da locadora? Obrigado.

Enquanto esperava os filmes e mais um cartão, Paulo foi adiantando. Pegou os cartões daquele dia, o da padaria, da banca, do florista, dos dois taxistas e o preto do cemitério e começou a colocar na coleção.

O preto foi para a pasta de cartões incomuns. A preferida dele.

Mas na hora de preencher a aba, Paulo ficou na duvida. Se só havia um site, que nome colocar na seção Nome e na seção marca?

Então ele resolveu ligar o Pc para ver se descobria alguma informação sobre o tal designer.

Mas o site carregou uma tela preta. Ele esperou, na esperança de ver se era algum plugin. designer costuma gostar dessas merdas afrescalhadas de pagina cheia de flash e papagaiadas animadas ou com letras microscópicas e navegação bizarra.

Mas a pagina não carregava nada. Estava preta. Parada.

Paulo Pensou que talvez fosse algum problema de plugin. Alguma coisa desse tipo. Ficou dando reload na pagina, pra ver se ela carregava algum modulo complementar. Qualquer coisa do tipo. Resolveu clicar aleatoriamente pela tela. Mas nada, não acontecia nada.

Ele resolveu desistir. Quando ia desligar o Pc uma coisa escreveu na tela. Ele viu de relance.  Era um nome.

Mas apagou. Paulo deu reload novamente e viu o nome surgir novamente. Um nome engraçado, mas estranhamente familiar:

Stanslay Goldman Sardenberg

O texto estava escrito em letras brancas no fundo preto. Não carregou mais nada. Nem nome da empresa nem telefone. Apenas aquele nome onde antes não havia nada.

Paulo pensou que talvez fosse o nome de algum estilista, arquiteto, designer ou qualquer outra profissão eviadada do tipo. Do tipo que gosta de coisa minimalista ao extremo, os xiitas do “menos é mais”.

Anotou no canhotinho do álbum o nome do cara. A empresa ele colocou Azrael e anotou: caixa postal 6174

Nisso, tocou a campainha. Era o carinha da locadora com os quatro filmes de comédia.

Paulo pegou os filmes, incluiu o cartão da locadora na coleção, colocou no DVD e pôs-se a assistir.

O primeiro não tinha a menor graça. Ele riu de duas piadinhas e trocou de filme. O segundo era melhorzinho. Mas era comedia romântica e comedias românticas faziam com que ele se lembrasse da Michelle. Arrancou o filme antes do fim melodramático.

Resolveu dar um tempo nos filmes. Saiu pra rua, dar uma espairecida. Foi até um barzinho da esquina, onde pediu o cartão do bar ao garçom, mas o bar não tinha cartão de visitas.

Tomou uns gorós. Ficou a olhar as moças que passavam. Nenhuma mulher lhe despertava emoção. Apenas Michelle ainda vivia no coração dele. Era difícil esquecê-la. Então, Paulo resolveu beber para esquecer.

Já estava de noite, Paulo de visível pileque. Pagou a conta e voltou pra casa. Deitou no sofá velho e colocou o último filme para tocar.

O último filme da noite era melhor. Era bem engraçado. Mas ele dormiu antes que pudesse entender de fato o que se passava.

Acordou e quando deu por si estava no meio de uma avenida. Não havia carros, mas havia pessoas. O céu estava vermelho e uma estranha luminosidade iluminava a rua. Ele viu pessoas andando na direção dele. Todo mundo andava olhando pra frente, como bonecos. O mais estranho é que eles não tinham os olhos. Paulo achou aquilo muito estranho. Ninguém tinha olhos. Ele andou, mas eram ruas desconhecidas. Caminhou tentando desviar-se das pessoas sem os olhos.

Nada fazia sentido. E então ele viu a sala da capela. A capela do cemitério. Ele estava ali dentro, e a mãe dele estava no caixão, ali na frente dele. Ela também estava sem os olhos. Eram apenas dois buracos na face, onde escorria um filete de sangue escuro. A mãe estava morta, deitada no caixão. Paulo olhou pra ela. E ela levantou. Abriu a boca e falou uma coisa pra ele que ele não entendeu. Parecia outra língua. Algo incompreensível. A mãe dele quase o matou de susto. A velha tinha uma aparência medonha sem os olhos. Agarrou com força o braço dele. E repetia aquele troço incompreensível.

Paulo acordou gritando no sofá da sala. Banhado em suor.

– Puta que pariu! Sonho desgraçado. Ung! Sofá desgraçado!

Já era dia. Estava cedo. Acabara de amanhecer.

Paulo tomou um banho e foi para o trabalho. Chegou antes de todo mundo. Coisa rara.

Entrou na baia, ligou o pc. Enquanto esperava o início do expediente, ele resolveu dar uma olhada nos jornais. Começou a ler as notícias do dia. Estava distraído olhando as notícias quando leu algo que lhe chamou a atenção:

O primeiro nome que ele vê é o de Stanslay Goldman Sardenberg .

Ele leva um susto. Aquele nome é o nome que o site do cartão mostrava. Ele abre a matéria que tem um link para o obituário. A matéria fala sobre a morte do executivo da indústria cinematográfica. Morto de causas naturais enquanto dormia.

-Caralho que coincidência.

Nisso paulo escuta um gemido atrás dele. Ele se levanta para ver. A seção ainda está vazia. Apenas ele está na sala. O gemido ocorre novamente. Parece vir da copa. Paulo levanta-se e vai devagar até a copa. Ao dobrar a esquina, ele vê Cardoso, tentando agarrar a menina do cafezinho.

-Só um beijinho, pô! Vai vadia!

-Sai. Não. Pára! Eu vou gritar!

-Grita, porra. Não tem ninguém aqui pra ouvir.  Dá um beijinho, vai.

-Me larga!

Paulo dá uma tossida. Cardoso dá um pulo. Leva um baita um susto. A moça do cafezinho fica mais vermelha que um pimentão. É uma menina nova, acabou de entrar na firma, substituindo a Tia Carmen, que aposentou. A menina deve ter uns dezoito anos, mas aparenta ter quinze.

-Mas que merda é essa? Chegou cedo hoje? É milagre? Não. Já sei. Vai pedir aumento, né?

Paulo notou que Cardoso estava tentando desesperadamente disfarçar. Resolve fingir que não notou nada para evitar problemas. Ele vê a menina escapulir debaixo do braço do Cardoso como um peixe ensaboado. Ela sai batido, largando os dois no corredor.

As pessoas já começam a chegar na empresa.

-Paulo, quero ver todos os contratos da Multicorp na minha mesa até o fim do dia.

-Todos? Mas são mais de trinta…

-Todos. Na minha mesa. Hoje. E antes das cinco. -Diz Cardoso, saindo pelo corredor.

“Balofo filho da puta!” – Pensa Paulo.

O dia transcorre sem grandes novidades. Paulo trabalha feito um cavalo para cumprir aquela meta insana.

Almoça com os rapazes do terceiro andar mais o Malucão.No fim do dia, ele entrega os relatórios ao Cardoso.

-Demorou hein Paulo? – É tudo que o ridículo diz.

Paulo se sente desmotivado. Vira as costas e sai, sem se despedir.

O rapaz chega em casa no fim do dia. Vai ver tv. Enquanto rola a novela ele se pega olhando para a mesinha de centro. Olha o retrato da mãe. Ele chora.  A saudade corta-lhe o coração como uma lâmia afiada. Ele sente que sua vida é uma merda. Faz um Miojo com atum e enquanto come, tenta se concentrar no jornal.

A tv fala sobre chuvas. Previsão do tempo. O noticiário comenta a morte de Stanslay Sardenberg Goldman. Paulo assiste. Ele aumenta o volume da Tv para prestar atenção. O cara morreu mesmo. Paulo se toca que com um executivo tão famoso, seu cartão talvez possa ir para a pasta de cartões de personalidades famosas. Ele tem a ideia de entrar no site novamente. Talvez seja mesmo o cartão do executivo falecido.

Ele liga o computador e digita o endereço. O site mostra novamente a página preta.

Não há mais o nome. Ele dá reload. Nada. Dá outro reload. Nada. Recarrega a pagina novamente e um nome aparece em letras brancas. Não é mais Stanslay Sardenberg Goldman. Agora o nome que aparece é Lennie Jefferson Cavalcante.

Paulo acha aquilo estranho, já que podia jurar que o nome que aparecia era outro. Ele vai até o álbum e olha. Realmente o nome que ele escreveu era  Stanslay Sardenberg Goldman.

O rapaz acha aquilo estranho. Desliga o computador e vai dormir.

Outra noite de sonhos estranhos. Os pesadelos se repetem como um estranho enredo amedrontador. Sua mãe no caixão falando alguma coisa. Algo indecifrável. As pessoas sem os olhos andam pela rua. Ele fica parado olhando a multidão sem os olhos ao seu redor. Ao fundo, no meio da rua, ele vê um homem de preto, cabelo branco, cavanhaque branco vindo na direção dele. Mas este homem tem olhos. No entanto, Paulo sente medo, um medo profundo que toma seu coração. A cada passo do homem de terno preto na direção dele, Paulo sente mais e mais o ar se acabar. Tenta correr, mas não consegue. O homem vem chegando. Chegando…

Paulo acorda com o sol da cara. Suando. Foi um novo pesadelo.

Paulo repete a rotina de toda manhã. Toma café na padaria, e vai para o trabalho. Chega atrasado.

Cardoso está na porta, babando de ódio.

O chefe esculacha ele na frente de todo mundo. Paulo tem ódio daquele cara.

Se foca no trabalho. Trabalha com esmero pois sabe que o chefe está de marcação com ele.

No meio do dia, paulo estava revendo números de um contrato. Concentradíssimo. Subitamente, uma explosão acontece  na mesa, ao lado dele. Parece até uma bomba. Paulo quase morre do coração com o susto.

É uma montanha de trabalho empilhada.

Paulo olha para trás assustado. Ali está Cardoso, com um sorriso malévolo nos lábios.

-Foi mal, Paulinho… Trouxe uns contratos para você alterar. -Diz rindo.

Paulo olha para a montanha de trabalho com quase meio metro de altura e tem vontade de cometer um harakiri baiano bem ali.

-Caceta… – Ele deixa escapar.

-Ah, Paulo, não tem pressa. – Diz Cardoso. – Eu queria mesmo era te contar uma coisa. Estou bastante feliz, cara. Estou namorando!

Paulo tem vontade de perguntar se é a menina do café, mas fica quieto, esperando. Ele sabe que Cardoso não é flor que se cheire.

-Acho que você até conhece ela. É uma publicitária…

Ao ouvir esta parte, Paulo sente o estômago contrair. Ele tem náusea. Tudo roda. “Não… Não pode ser!”

-…O nome dela é Michelle. Ela disse que te conhece. Saca só a gata, mermão… – Diz mostrando uma foto de celular onde ele está abraçado com aquele rosto de areia mijada encostado no angelical rosto da Michelle, a ex-namorada de Paulo.

O ódio começa a atingir o nível crítico. Paulo Fica ofegante. Não consegue dizer nada. Ele fecha a mão. Se prepara para enfiar um murro bem no meio da cara da baleia, quando Malucão entra correndo na baia.

-Opa,opa,opa! Doutor Cardoso, pode me dar uma licença rapidinho? Eu preciso falar uma coisa urgente aqui com o Paulo.

Cardoso acena positivamente com a cabeça. Malucão agarra Paulo pelo braço e  sai rebocando lá pra fora. Vão para o saguão dos elevadores. Cardoso fica na baia, sozinho, rindo.

-Caralho, tu ia meter a porrada no chefe meu. Tá maluco?

-Como você sabe?

– Porra a divisória tem dois centímetros, meu. Eu ouvi tudo. E…

-Fala.

-Não, é que eu não quis falar antes, porque…

-Ah, não. Puta que pariu! Não fode, Malucão!

-Cara, foi mal. Eu já sabia. Todo mundo aqui sabia. Assim que ela te largou ele começou a dar em cima dela, cara.

-Maldito! desgraçado, baleia escrotaaa! – Paulo começa a querer gritar.

-Schhh! Calma, calma cara.

-Porra calma? Você me traiu cara. Logo você , meu melhor amigo, porra!

-Não, cara. Não é isso, véi. Tu perdeu a mãe, cara. pô, eu fiquei bolado de te falar, cara. A tua semana tava sinistra… Eu quis te poupar, brother.

-Poupar é a puta que o pariiiiiuu! Eu vou matar aquele filho da mãe! – Paulo está aos berros no corredor.

-Calma cara. Calma, pelo Amor de Deus. O cara é filho da puta. É traíra. Eu sei, pô. Tu sabe! Ele quer é isso, meu.

Paulo se acalma. Tenta se conter. Arruma a gravata.Malucão chama ele num canto e cochicha.

-Ele quer te ver desequilibrado, meu. Ele quer te tirar da firma, meu velho. Ele quer a sua vida.Por isso ele estava obcecado pela Michelle.

-Cara… Você sabia e não me falou… Sacanagem.

-Cara… O pior nem é isso. Agora que é pra falar, eu vou falar.

-Ah, não. Não. Não fala nada.

Os dois se entreolham por alguns segundos. A expressão de raiva de Paulo se converte numa expressão de terrível sofrimento e desamparo. É Clóvis Malucão que interrompe o silêncio.

-Meu, ele roubou mesmo teu projeto. Ele apresentou pra diretoria ontem. Sabe aquela porrada de trabalho que ele te deu?

-Hã?

-Inútil.

-Como assim inútil?

– Era tática, pra disfarçar, pra você não perceber que ele foi pra reunião com a diretoria. A Soninha, secretária do seu Raul lá de cima estava na reunião e me disse que ele apresentou o seu projeto, cara. O seu projeto! A reestruturação. Tudo como você fez. Mas com o nome dele, cara. Pior que o cara tá com um prestígio do caralho na diretoria agora. A Sônia disse que eles vão implantar… E vão dar um bônus pro Cardoso, cara.

Aquilo é demais. Paulo sente as pernas bambearem. Ele senta no chão do saguão.

-Meu mundo caiu.

– É foda. Mas a verdade é essa, cara.

-Desgraçado maldito.

-Cara. Tem que agir com a cabeça, brother, segura o coração. Tudo que o Cardoso quer é que você meta a porrada nele.

-Eu quero vomitar.

-Vem, cara. Vem. Vamos comer um cachorro quente ali na praça. Você tem que pegar um ar. Abre essa gravata. Vamos dar um relax. Vamos ali comigo. – Disse Malucão tentando puxar Paulo pelo braço.

-Não, não. Quero ficar aqui.

-Vem, cara. Aí tu tá dando bandeira. Temos que fazer um plano, pô. Bora. Levanta desse chão que você ta parecendo um mendigo. -Diz o amigo levantando Paulo.

Os dois vão para a rua. Minutos depois sentam num dos bancos da pracinha. Malucão pega dois cachorros quentes com muito molho no trailer do Scooby Doo Hot Dog.

– Toma aí. Come essa porra e para de se lamentar da vida.  – Diz, estendendo o cachorro-quente para o colega.

Os dois comem em silêncio no banco da praça.

Novamente é Malucão que tenta puxar assunto.

-Cara você vai me perdoar? Eu tentei te proteger, Paulo. Queria escolher uma boa hora pra contar, meu.

-Tudo bem, cara. Tá safo. Já entendi.  -Diz Paulo.

-Valeu, brother. Tu sabe que eu sou seu amigo, né?

-É.

Os dois estão terminando de comer. Há um novo silêncio entre eles.

-Cara, olha o céu. Eu acho que vai chover, hein? – Malucão quebra o gelo novamente. Eles olham pra cima.

As nuvens cobrem o céu e está tudo cinza. O vento balança as árvores do parque, liberando uma miríade de folhas que dançam no ar. Um jornal vem voando. Bate na perna deles.

Paulo pega o jornal e quando vai embolar pra jogar fora, vê o nome “Lennie Jefferson Cavalcante”. É a seção de  obituário do jornal.

Paulo se assusta. Começa a ler e vê que Lennie Jefferson Cavalcante é um político que morreu de ataque cardíaco às 11 horas e quarenta minutos da noite anterior.

-Que estranho.  – Diz Paulo.

-O que?- Indaga Malucão.

-“Lennie Jefferson Cavalcante”. Esse cara tem o nome que eu vi num site ontem.

-E daí? Tu viu no obituário?

– Não. Eu vi quando era ainda umas nove da noite. Mas aqui diz que ele morreu 11:40.

-Hã? Como assim?

-Não sei.

CONTINUA AMANHÃ

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Philipe Kling David, autor de mais de 30 livros, é editor do Mundo Gump, um blog que explora o extraordinário e o curioso. Formado em Psicologia, ele combina escrita criativa, pesquisa rigorosa e uma curiosidade insaciável para oferecer histórias fascinantes. Especialista na interseção entre ciência, cultura e o desconhecido, Philipe é palestrante em blogs, WordPress e tecnologia, além de colaborador de revistas como UFO, Ovni Pesquisa e Digital Designer. Seu compromisso com a qualidade torna o Mundo Gump uma referência em conteúdo autêntico e intrigante.

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Comentários

  1. Olá! Esta semana estou divulgando uma “nova” postagem. Trata-se de um conto; que na verdade vem a ser uma reedição de meu blog. Sua postagem original ocorreu em 13.02.09; sendo esta a minha terceira postagem no blog. Naquela ocasião este texto não recebeu nenhum comentário. O texto é “O Sr. e o Dr.”. Espero que você, tendo um tempinho, o aprecie.
    Um grande abraço, minha gratidão e desejo que tenha uma ótima semana!

    Jefhcardoso

  2. Quem derá que esse site fosse um Death Note x_x . Não sei se mataria minha ex ou meu chefinho querido. É nessas horas que eu vejo que não presto. Mas essa história muito pelo contrário dava uma série daquelas. :)

  3. ah, fala sério primo, se q criou o sitte da história, né? x_x
    eu tentei entrar nele e coisa e tal tela preta dois nomes q nunca vi, amanha vo le q os fulanos morrem, ou ja ta na pare 5
    rsrsrrs…
    Se é 10, ou melhor se é gump primo
    abraço

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