Gui deixou Bruno na rua, em frente o prédio. Pouco se falaram.
-Amanhã eu te ligo. – Disse Bruno.
Gui apenas acenou com o polegar em riste e acelerou o carro.
Bruno entrou em casa na calada da madrugada. Os pais dormiam. Ele esgueirou-se pela casa escura como um espectro e foi direto para o banheiro. Sua aparência era péssima. Temia que a mãe o visse todo banhado de sangue gosmento no meio da sala. Sem dúvidas Dona Sandra ia ter um piripaque.
Ele trancou o banheiro e se jogou debaixo do chuveiro. A água quente lavou o sangue e ele viu se formar uma poça cor de rosa sob seus pés, que foi escurecendo cada vez mais à medida que o sangue escorria. Ele agarrou o sabonete e foi aí que percebeu.
Bruno sentiu que algo não estava certo. Começou com um súbito arrepio que o atingiu na base da coluna. E então tudo parecia estranhamente confuso ao seu redor. Ele estava tonto. Talvez fosse efeito da água muito quente…
Então veio o primeiro espasmo.
Bruno caiu de joelhos no chão do box. A água escorria sobre ele e enquanto isso ele sentia uma dor esmagar-lhe as tripas. Era como se um fogo horrível ardesse como mil fogueiras dentro dele. O box estava todo enevoado de vapor e ele mal conseguia se levantar. Veio o segundo espasmo. Algo se contraiu violentamente dentro dele e ele não conseguiu conter. Vomitou um caldo preto, que parecia tinta, uma tinta grossa como um piche, uma gosma fétida e escura que agarrou no chão. Para horror completo do rapaz, veio em seguida outro espasmo e uma nova regurgitada daquela coisa. Dessa vez veio muito. Saiu pelo nariz. A coisa preta escorria dos ouvidos. E logo após aquele espasmo, veio outro e mais outro. A dor era insuportável e se ele pudesse, teria gritado.
Mas então, quando o sétimo espasmo ocorreu, a coisa parou. Ele não vomitou mais nada. Estava exausto, vendo aquela coisa lentamente se desfazendo como uma cola, que era gradualmente dissolvida na água do banho e descia para a escuridão do ralo.
Bruno se levantou, apoiando-se na parede. Encostou-se na parede fria de azulejos brancos. A água caía sobre ele, castigando sua pele com o turbilhão quente.
Ele desligou a água. E saindo do box, olhou no espelho. O vapor havia deixado o enorme espelho do banheiro completamente embaçado, mas apesar daquilo, ele notou um estranho simbolo triangular desenhado no vidro, como se alguém tivesse ali passado os dedos e feito um desenho. Mas quem? Só estava ele ali. O banheiro estava trancado.
Bruno olhou para quela figura desenhada no espelho e notou caracteres desconhecidos na base do triângulo. A forma lembrava a bandeira de Minas Gerais, mas era escrita com o que parecia ser fenício, ou árabe.
Então, como se aquela madrugada já não fosse suficientemente estranha, Bruno conseguiu entender o que ali estava escrito, mesmo que nunca tivesse sequer visto nenhum daqueles caracteres antes em sua vida:
“Estás livre do mal que lhe afligia.”
E assim que ele leu, tornou a ver aquele monte de letras incompreensíveis.
Bruno abriu o banheiro correndo. Foi até o quarto, em busca do telefone. Precisava fotografar o desenho do vidro para mostrar ao Gui. Mas ao retornar ao banheiro, ele se surpreendeu: O vidro estava completamente embaçado. Não havia sinal do triângulo nem das letras misteriosas.
Só restou a ele retornar ao quarto, vestir uma camiseta de político e suas cuecas. Deitou-se na cama com aquela imagem e as palavras que havia conseguido ler ecoando na cabeça.
Sua mente era um turbilhão de duvidas e pensamentos. Seria a doença a bile negra que ele havia vomitado? Teria o crânio cumprido sua parte?
Bruno lançou um olhar para a misteriosa caveira de pedra enfiada em seu altarzinho. A fraca luz que adentrava a janela iluminava o caveirito.
Bruno levantou-se da cama e pegou a caveira. Deitou-se no escuro com ela. Segurando a forma de pedra mentalizou um profundo agradecimento.
E dormiu.
Dormiu como poucas vezes em sua vida havia conseguido dormir.
Acordou com uma mão acariciando-lhe os cabelos. Abriu os olhos assustado. Estava diante de seu pai. O sol já entrava forte pela janela aberta.
-Boa tarde parceiro! – Disse o pai dele.
Bruno suspirou. O pai estava sentado na beira da cama.
-Que horas são? – Bruno perguntou, esfregando os olhos.
-Dez e meia da manhã! – Disse ele. E emendou em seguida: – A festa foi boa hein rapaz?
-Festa?
-Ué. Não era uma festa?
-Ah, sim, a festa. Pois é. Foi… boa.
-Você manguaçou muito, foi?
-Hã?
-O cheiro de vômito no banheiro. Sua mãe está uma arara…
-Pois é… Tinha uma… Uma parada lá. Que sabe como é.
-Eu sei, filho. Tinha que ver eu na sua idade. Seu tio Carlinho e eu bebíamos uma cachaça de quinta categoria feita numa fazenda em conservatória. Era uma dentro e três pra fora. – Riu seu Gil.
Bruno se levantou e foi escovar os dentes. Mal entrou no banheiro sentiu o odor fétido do vômito entranhado no banheiro. Nem deu pra escovar os dentes lá. Teve que escovar no banheiro da suíte dos pais, ou correria o risco de “chamar o Raul” novamente.
Quando chegou na sala a Mãe estava sentada ao lado de uma pequena mesa de café da manhã com um copão de achocolatado e um pão com queijo e presunto.
Bruno andou cabisbaixo até a mesa e se sentou ao lado da mãe.
-Tá de ressaca? – Dona Sandra perguntou.
Bruno respondeu negativamente com a cabeça. Virou o copo de Nescau com vontade. Na verdade, ele se sentia muito bem. Talvez em sua melhor forma em alguns anos.
Comeu com vontade o misto quente.
-Que fome hein? – Ela questionou.
Seu Gil veio e se sentou à mesa. Os dois olhavam para Bruno com um olhar inquisidor.
-Que? Que foi? – O jovem perguntou ainda mastigando o pão.
-Isso! – Disse seu Gil, pegando a caveira e colocando sobre a mesa. Seus dentes esculpidos na pedra sorriam para Bruno.
-Que que tem?
-Bruno você dormiu agarrado com essa coisa, meu filho.
-E você acordou a gente.
-E…Eu?
-Estava amanhecendo o dia quando você começou a falar alto no quarto. Corremos la e você estava falando… Sei la o que era aquilo, meu filho.
-Um pe-pesadelo. – Disse Bruno já temendo o pior.
Dona Sandra moveu a cabeça negativamente. Ela tinha um semblante carregado. O pai também.
-Você estava falando outra língua, meu filho. Outra língua, completamente diferente! – Disse Gil.
-Olha tô toda arrepiada de novo! – Disse Sandra, apontando os pelinhos do braço.
-Mas… Mas mãe.
-Não, Bruno! Olha pra mim, meu filho! Vou falar uma vez só. Essa coisa que você adotou. Essa coisa aí! Isso não é coisa boa, meu filho. Não é…
-Ah não, mãe!
Seu Gil interrompeu: -Meu filho! Escuta sua mãe. Eu vi você falando e parecia latim. Você estava invocando alguma coisa!
Nisso Dona Sandra começou a se benzer loucamente.
-Deus me livre! Esconjuro!
Bruno não sabia o que dizer. Apenas olhava para o caveirito sobre a mesa com seus olhos de brilhantes.
-Você vai se livrar dessa coisa.
-Mas pai…
-Vai se livrar, e vai se livrar disso hoje!
-Mas ele… Ele me curou! – Disse Bruno.
Seu Gil olhou com ar de preocupação para Dona Sandra.
-Meu filho, isso não é um pedido. Você não está entendendo. Nós estamos mandando você jogar esta merda fora! Hoje!
-Tá… Tá! – Disse Bruno contrariado.
-Estamos entendidos, então?
-Tudo bem.
-Certo. Hoje a noite não quero esta coisa na minha casa! – Disse Dona Sandra, já se levantando para sair.
Os pais saíram para o supermercado. Iam fazer compras. Bruno ficou a sós com o caveirito.
-Logo agora? – Pensou. Mas a ideia de ter recitado coisas misteriosas em latim era extremamente assustadora.
Ele ligou para Gui.
-Opa!
-Aí, maluco.
-Fala viado.
-Chega aí.
-Pô, não dá. Tô no gancho.
-Sério? O que tu fez?
-Dei um vacilo aqui. Esqueci de pagar uma conta da minha mãe, véio. Era cartão de crédito!
-Puuuts!
-Imagina! Mas ó, Dona Marina vai ter que sair, e assim que ela der mole eu dou o perdido aqui e apareço aí. Alguma novidade do homem do fogo? Do exu?
-Não… Mas tenho umas novidades Bi-zar-ras!
-Ah, porra, não faz isso vacilão!
-Só conto quando você der as caras. Não da pra falar no telefone, cumpadi.
-Em meia hora vinte minutos eu tô aí. Ops, Dona Marina tá vindo. A gente se fala, fui!
Gui desligou o telefone.
Bruno guardou o aparelho sem fio na base e foi até o quarto. Recolocou o caveirito em seu improvisado altarzinho. Sentou-se na cama e ficou olhando a caveira. Resolveu acender os dois incensos ao redor da caveira de pedra.
Lembrou da madrugada… Do estranho homem que saiu do fogo. Em seguida lembrou do episódio grotesco do chuveiro. O cheiro nauseabundo do caldo preto que ele havia vomitado. E finalmente, lembrou do misterioso símbolo no espelho que lhe disse que ele estava curado. A caveira, fosse o que fosse, havia cumprido sua parte. Estava na hora de pedir algo que realmente mudaria sua vida. Mudaria completamente sua vida.
Bruno pegou a caveira de pedra e posicionou-se na cama com ela. Olhou nos olhos brilhantes das contas de vidro e mentalizou mais um desejo:
-Quero ganhar sozinho na mega sena!
E então, enquanto mantinha os olhos fixos nas contas de vidro enfiadas nas órbitas de pedra tudo começou a girar como numa pintura líquida e logo se tornou uma explosão de luzes e cores, que invadiu sua mente. Logo as cores lentamente decresceram em intensidade. Um frio engolfou seu corpo. E todas as cores foram escurecendo, escurecendo até que Tudo era escuridão. A completa e impenetrável escuridão.
E da escuridão uma voz gutural que parecia provir das mais abjetas degradações espirituais se fez ouvir. Ela falava lentamente, e com um sotaque estranho. Disse:
-Em troca do que pedes… O sangue. O sangue dela…
-Dela? Dela? – Bruno perguntou, mas sua voz apenas se perdia como se fosse um pesadelo do qual era impossível de acordar.
E antes que o rapaz pudesse perguntar pela terceira vez, uma esfera de fogo azul se materializou diante dele e as chamas dançaram seu balé mágico, até formarem um rosto. Um rosto lindo que ao se desenhar, causou a mais absurda perplexidade que Bruno já havia sentido em sua vida.
Diante dele, estava o rosto de Bia.
CONTINUA
Cara… agora que o bicho vai pegar…. Essa é a historia mais espaçada que eu já li aqui no MG. Triste saber que vai demorar pacas pra ler o próximo capitulo.
Essa gosma preta que o cara vomita… foi insirada em ‘garota infernal’? pq me lembrou da cena em que a megan fox vomita uma coisa nojenta assim