-Ô!
-…
-Ô! Ô! Tá dormindo aí maluco?
Bruno acordou no chão do quarto. Estava caído ao lado da caveira. Gui estava de pé, dando chutinhos no braço dele.
-Para porra!
-Eu não combinei que vinha? Sorte que seu Limair lá me conhece, senão ele não ia me deixar subir. E sorte que sua mãe largou a porta aberta. Isso é lugar de dormir?
-Dormir?
-Ué. Desmaiou então? Cheguei e você estava deitadão aí com a caveira no meio do peito. Você só acordou quando te chutei e ela caiu no chão.
-Eu estou tonto… Puta que pariu! – Disse Bruno, enquanto se levantava.
-Que foi?
-Eu… Eu fiz um novo pedido.
-Porra maluco! Tá de sacanagem. Só pode ser. Depois de ver o capirito aparecer no meio da fogueira, você ainda tem coragem de pedir alguma coisa pra essa merda aí?
-Cara… Eu tenho que te contar uma parada.
-Ah, sim. O tal mistério. Fala aí.
-Ontem eu subi, e fui tomar banho. Enquanto eu estava tomando banho…
-…Pensou no galã da novela e ficou excitada?
-Não, babaca. Eu comecei a vomitar. Vomitar uma gosma preta viscosa.
-Puts que nojo. Então esse fedor aí do corredor…
-Exatamente. Entranhou.
-Mas será que foi alguma coisa que você come…
-Logico que não ô figura! Ta na cara que o que saiu foi a minha doença! Estou completamente curado. A caveira me curou! Ela cumpriu o pacto. Conforme disse que faria, né?
-Quem te garante?
-Quando eu saí do box, depois de vomitar pra caralho e sentir tudo dentro de mim queimando, eu dei de cara com uma coisa escrita no espelho. Estava escrita como quem passa o dedo no espelho embaçado, tá ligado?
-Tô… Faço altas pirocas voadoras. Desde que eu vi “Os sete gatinhos” não consigo evitar de desenhar caralhinhos voadores no espelho do banheiro.
Os dois caíram na gargalhada. Mas Bruno raspou a garganta e continuou a contar.
-Então ali estava aquela coisa. Um triângulo com umas coisas escritas numa língua estranha em volta, que parecia sei lá, um árabe…
-Que bizarro.
-Não, bizarro foi o que aconteceu depois! Eu fiquei olhando aquilo e num estalo, do nada eu… Consegui ler.
-Mas você leu aquela tal língua estranha? O árabe?
-Não, não era árabe, era uma porra totalmente esquisita mesmo. Mas eu não sei como, eu li. Aí tive a ideia de pegar uma câmera e…
-Calma, porra. Calma, sossega a periquita um instantinho aí. Se você leu, mas que merda estava escrito, véio?
-Estava escrito tipo “Agora você está livre da doença… Algo assim.”
-Porra. – Disse Gui sentando-se na cama.
-Então, daí fui correndo pegar a câmera para fotografar a marca do espelho e… Quando cheguei…
-Nem precisa dizer que sumiu que é perfeitamente lógico. Meus caralhinhos também somem.
-Mas não some em dois segundos. O espelho estava todo embaçado, mas a marca que havia tinha sumido, como se nunca estivesse aparecido lá.
-Cruz credo…
Bruno colocou a caveira em seu altar na prateleira com todo o cuidado. Os incensos haviam queimado completamente. Assim que ele bateu os olhos, percebeu que havia passado um enorme tempo sozinho em casa naquele estado fora do ar. Enquanto o amigo pegava uma revista de surfe no criado mudo para folhear, Bruno ficou se perguntando o que teria acontecido no período após invocar o caveirito até a hora em que Gui chegou.
-Porra só tem revista de baitola! Cadê a playboy? Tem revistinha de sacanagem? – Indagou Gui, jogando a revista de surfe na pilha.
-Cara… Eu fiz aquilo.
-Aquilo o que? Ah! Já sei. Mudou de sexo!
-Não, porra. Sério cara. Tu é irritante pra caralho com essa fixação em piroca. Eu pedi foi pra ganhar na Mega Sena. Sozinho!
-Não…
-Pedi.
-No duro?
-No duro.
-No duro mesmo?
-No duro duraço! Com Viagra! – Riu Bruno.
-Olha aí quem tem fixação em caceta!
Bruno deu um pescotapa no Gui.
-Ai porra! …Ei! Tá ligado que ela ta acumulada? Terceiro jogo que ela acumula! Já deve estar mais de vinte milhões essa porra, Bruno!
-Nada mal, hein?
-Bora jogar maluco!
-Calma… Mas é que tem um lance aí.
-Que lance?
-O caveirito pediu outro sacrifício…
-Ah… Puta que merda! Essas porras do além são foda. Lá vamos nós matar outro bicho infeliz lá na casa do caralho e…
-…Ele pediu a alma da Bia.
Gui arregalou os olhos e engasgou. Começou a tossir loucamente. Teve que sentar.
-Gui? Gui? Calma Gui! – Bruno se desesperou batendo nas costas do amigo.
Gui recuperou o fôlego. Estava com os olhos arregalados ao ponto de quase caírem das órbitas. Gui apenas sussurrou baixinho:
-Você… Vai passar o rodo na Bia?
-Lógico que não, seu merda!
-Mas então e aí?
-Meus pais querem que eu me livre do caveirito.
-Olha cara. Eu no seu lugar já tinha tacado esse negócio na lata do lixo faz tempo! Ainda mais depois do mister exu sair do fogo la naquele descampado.
-É… Mas olha, ele me curou, trouxe a Bia de volta e…
-E tem o emprego do seu Gil.
-Isso, o emprego. – Disse Bruno assentindo com a cabeça. – A loteria seria o melhor dos mundos.
-Lembra daquele provérbio que diz que “o ocultismo é como a água do mar: Quanto mais você bebe mais sede você tem?”
-Não.
-Também pudera, eu acabei de inventar. Mas é exatamente isso.
-Hahaha você é foda, Gui.
-Cara sai agora. Sai por cima. Não deixe esse negócio aí te escravizar. Veja como a tua vida já ficou bizarra e você me coloca sempre nas roubadas, né? Ficar matando bode no descampado à meia noite…
-Pô, só pedi uma ajudinha.
-Não é exatamente o que eu chamo de um programão. -Riu Gui.
-Pelo menos você reconhece o poder do caveirito.
-Cara. Então…
-Que? Que foi? Não reconhece?
-Eu andei pensando nisso. Vim pra cá pensando nessa porra, e no rolo do caralho dessa madruga…
-Você viu o cara sair do fogo.
-Tá. Tudo bem, eu tive uma visão. Você também teve, mas até que ponto essa coisa é toda real? Veja, nós nos metemos num lugar ermo, matamos uma cabra, você jogou sangue na cabeça… Tudo isso mexe com o psicologico da gente. Ter uma alucinação dupla num caso desses não acho improvável.
-Ah, vai pagar de cético agora. Você?
-Não, sério. Por exemplo, nada garante pra nós que realmente foi o caveirito de pedra que fez seu pai arrumar o emprego, e pelo que me consta, você foi atrás da Bia para recuperar o seu amor.
Bruno não sabia o que dizer.
-E esse lance de vomitar. Quem pode garantir que não e a doença? Você pode ter desmaiado, hoje mesmo. Quando cheguei, você parecia desmaiado.
-Mas e o simbolo no espelho?
-Outra alucinação?
-Ah, Gui, não fode.
-Sério cara. Tudo isso pode ser simplesmente a sua cabeça. Talvez você esteja tão desesperado para lidar com a doença, que sabe como é… A mente da gente cria mil enredos, para tentar lidar com essa situação. Não por acaso, a caveira diz que te curou… O que mais você quer, né?
-Baixou o psicólogo.
-Mas vai dizer que não faz sentido, Bruno? Talvez essa porra não seja mais que uma edra esculpida e nada mais. Tudo que está acontecendo pode ser somente o produto da sua mente criativa. Talvez o poder esteja em você, e você, sei lá… Está focalizando ele nesse objeto, como um… catalizador.
-Cara… Cê tá bem? Tá falando até palavra difícil.
-Para Bruno. Para porra! Para de fugir do assunto. Tô te dando a real. Eu acho que esse negócio da caveira é só a sua cabeça, brother!
-Mas Gui, eu tenho certeza absoluta que essa porra tem poder! E o hospital? A cura?
-Remissão espontânea. Não tem cara. Vai por mim.
-Certeza, Gui! Certeza certezíssima!
-O nome disso é fé.
-Fé o caralho. Eu vi o caveirão mostrar o poder. Eu vi! Eu vi aquele cara sair do fogo! Eu falei com ele. Eu vi as pessoas sem cabeça… A velha. O espelho. O emprego. Eu vi acontecer!
-Cara, eu só vou realmente acreditar se essa merda me mostrar que tem mesmo o poder. Vai. Mostra aí que ela tem este poder todo. Mas tem que ser no pau da goiaba!
-Mas cara…
-Mas, mas… Olha como você é!
-Não, então vamos. Quer desafiar? Vamos desafiar então!
-Então vamos. Pega aí! Bota aí no chão. Desafia ela!
Bruno havia juntado um punhado de incensos e acendeu todos eles ao redor da caveira.
-Eu… Eu peço o que? – Perguntou Bruno, enquanto sentava-se em posição de lótus diante da caveira de pedra.
-Nada. Não pede. Desafia ela a provar o poder! Ela que se vire. – Disse Gui de modo provocativo.
Bruno olhou nos olhos do amigo. E então colocou a mão na cabeça do crânio de pedra e disse:
-Se você tem poder mesmo, mostre pra gente! Prove! …Mate alguém!
Imediatamente, Gui arregalou os olhos, soltou um gemido gutural e os revirou para trás. Gui caiu pesadamente na cama.
Bruno ficou sem ação. Havia acabado de matar o melhor amigo.
-Gui! Gui! – Bruno Gritou tentando se levantar do chão.
Gui soltou uma sonora gargalhada.
-Filho duma égua!
-Olha como fala de Dona Marina! Tu é muito burro mesmo, hein? E aí? Viu? Essa porra não passa de um velho peso de papel! Isso deve ser um peso de papel ou enfeite dos anos setenta. Talvez quem sabe, ganhemos algum dindim vendendo ela no Ebay?
Nisso, os dois ouviram uma sonora batida na porta da sala. Uma pancada seca.
Eles se entreolharam.
-Será sua mãe? – Perguntou Gui.
-Ela tem chave. – Disse Bruno com um olhar assustado.
Outra batida firme na porta. Dessa vez com grande violência e não parou de bater. Havia alguém socando a porta.
Os dois foram pé ante pé até a porta.
-Quem é?
-Socorro! – Saiu uma voz fina do outro lado.
-Quem tá aí? – Perguntou Bruno.
-É a Isaura!
-Isaura?
-Abre pelo amor de Deus meu filho!
Bruno olhou para Gui, que deu de ombros, e então abriu a porta.
Ali, diante deles, estava uma senhorinha que devia ter uns 65, ou 69 anos. Bruno reconhecia de vista, era a faxineira do seu Martinez, o vizinho.
-Ele, ele pa-pa-pas-sou mal! Ajuda! Ajuda pelo amor de Deus! – Disse dona Isaura gaguejando. Ela estava trêmula.
Bruno e Gui correram para o apartamento do Idoso para ajudar.
Assim que chegaram na sala viram o velho Martinez. Estava caído no meio do tapete felpudo. A Tv passava futebol em alto volume. Ele estava petrificado com as mãos no peito. Os olhos estavam revirados para trás.
Bruno se aproximou. Mas Gui nem chegou perto.
-Ligou para os bombeiros? – Gui perguntou, mas Isaura apenas negou com a cabeça, com expressão desesperada:
– Ele cortou o telefone. Disse que a conta vinha muito cara.
Gui correu para a casa de Bruno afim de ligar para a emergência do SAMU.
Enquanto discava, afobado o telefone dos bombeiros, Gui ouviu o grito de Bruno no corredor.
-Gui… Ele já morreu!
Gui voltou com o telefone sem fio na mão. Assustado viu Bruno sentado no sofá ainda segurando o pulso do morto. Dona Isaura se debulhava em lágrimas sentada na pesada cadeira de mogno na sala de jantar.
Gui não disse nada. Apenas olhou nos olhos vermelhos do Bruno e percebeu que eles pareciam acusatórios. Tentando quebrar o clima, Gui perguntou à dona Isaura como foi.
-Ele estava bem, estava vendo o futebolzinho dele quando não tem nem dois minutos, ele deu um grito horrível e caiu. Caiu durinho!
Em silêncio sepulcral, Bruno fazia as contas. O velho havia morrido exatamente no momento em que eles haviam desafiado o crânio.
Bruno lançou um olhar direto para Gui. Ele estava afoito. Não sabia o que fazer com as mãos… Era sempre assim. Gui ficava aparvalhado quando se encontrava nervoso.
CONTINUA
Esses dois tão se metendo onde não devem!
Foda!
Caraio!!! Adorei a referência a Sete Gatinhos, pior que eu estou n o grupo dos que desenham caralhinhos voadores na parede do banheiro (que é de azulejo e fica embaçado depois do banho quente).