Aquele foi um dia incomum. Bruno acordou e partiu para o centro da cidade. Foi em busca de lojas de bijuterias. Afinal, ele nunca teria dinheiro para comprar diamantes de verdade. Foi somente na terceira loja que Bruno encontrou o que buscava. Enormes cristais lapidados em forma de diamante. Mediu o tamanho de olho e calculou que dariam exatamente nas órbitas escavadas na caveira de pedra.
Do centro, Bruno foi direto para Botafogo, onde encontrou os pais. Ele estava atrasado para a consulta. Dona Sandra estava brava.
-Já deixamos dois pacientes passarem na sua frente. Cadê a responsabilidade, Bruno?
-Desculpa, mãe, foi mal.
Foi meia hora até finalmente a secretária mandar que entrassem.
O consultório estava muito bonito. Haviam feito uma reforma depois da última visita dele ao médico. O Dr. Carlos Barroso mandou que sentassem. Ele parecia sério. Após um papo rápido sobre a reforma e a dificuldade de contratar pedreiros que entendam do serviço e não deixem furo com prazos, o Dr. Voltou-se para Bruno.
-Então, campeão. Como estão as dores?
-Sumiram, doutor. Elas não voltaram mais.
-Ótimo. E o enjôo? Os vômitos?
-Nada.
-Algum sangramento? Alguma coisa diferente? Febre?
-Nada não senhor. – Disse Bruno.
-Bom, revisando seu caso, aqui, Bruno… Tudo começou com aquelas fortes dores nas costas, né?
-Sim senhor. Com o tempo foi piorando. Eu acordava suado e muito enjoado…
-E com falta de ar. – Completou dona Sandra, agarrada com a bolsa na poltrona.
-Sim, tinha a falta de ar e, a fraqueza que resultou naqueles dez dias de cama. Tá anotado aqui. Você foi no ortopedista, não era problema de coluna, depois no reumatologista, que estranhou os gânglios. Ele achou que poderia ser uma hernia inguinal, passou exames de sangue e também ultrassom dessas regiões. Você veio parar aqui após o exame de sangue. Eles estavam com muitos linfonodos e te indicaram o hematologista, eu no caso…
-Sim senhor.
-Então, Bruno, o que eu tenho para falar com você não é uma coisa muito boa. A biopsia do gânglio e da médula confirmaram que o seu caso é linfoma de hodking e de acordo com o laudo, o estado clinico, já é o 4b. Nós vamos ter que fazer um Pet Scan para confirmar.
-Câncer?
-Câncer. – Disse o Médico.
Dona Sandra começou a chorar agarrada com a bolsa. Ao ponto do médico precisar intervir.
-Calma, senhora. A maioria dos casos que eu pego dessa doença são curados. Câncer já não é mais condenação à morte faz tempo!
-Sandra mordeu os lábios numa careta estranha. Concordou com a cabeça, limpando as lagrimas.
-Shhhh. Calma, calma. – Dizia seu Gil baixinho, abraçando a esposa.
-Sabe o que é estranho, doutor?
-Fala Bruno.
-Nunca pensei que eu poderia ter câncer, pois sempre gostei de fazer atividades físicas, de me alimentar direito e de ter uma vida tranquila. O que eu fiz de errado pra merecer isso, Doutor?
-Não é assim que funciona, rapaz. Infelizmente. Minha dica é, marque uma consulta com essa minha amiga aqui. – O médico estendeu um cartão. Era o cartão de uma psicóloga. – A Margareth é especializada em te preparar pra batalha. Pense nela como uma treinadora numa disputa pela taça da saúde. Um jogo que você vai vencer, rapaz! Você tem tudo para vencer!
-E o que faremos?
-Começaremos a quimioterapia pra ontem!
—
Era hora do almoço. Após sair da consulta, Gil levou Bruno e Sandra para almoçarem. Os três estavam comendo num restaurante do Rio Sul.
Os pais tentavam dar força para Bruno.
-Você vai passar por cima disso aí, filho. – Disse Sandra, apertando a mão dele com força. O jeito dela contradizia tudo que ela falava com palavras.
-Sem galho, mãe. – Disse Bruno, com a boca cheia de picanha.
– Filho, o mais importante é ter fé. Tenha fé! E sempre tenha em mente o mantra que diz : Tudo Passará!
-Hum hum… – Gemeu Bruno bebendo uma golada de refrigerante.
Saíram do restaurante. Os pais foram com ele numa loja de roupas comprar umas roupas novas. Bruno percebeu que Gil e Sandra estavam tentando compensar a má notícia enchendo-o de presentes, e com isso sentiu uma enorme pena dos dois. Sentiu-se culpado por vê-los sofrendo daquele jeito.
-Não, não gostei. – Ele dizia, para cada roupa que a mãe sugeria. – É muito caro, a cor é estranha, o tecido vagabundo… As desculpas não pareciam acabar. Enfim, Bruno aceitou um par de tênis novos e uma calça jeans escura, mais para a mãe se consolar. Não era a mais bonita, mas ele escolheu a mais barata, com pena da carteira do pai, cada vez mais escassa.
-Quer um sorvete filho? Tem aquele italiano que você gosta… – Disse Gil.
Bruno agradeceu, mas disse que tinha um compromisso na faculdade. Era mentira, mas ele não podia ver os pais se sacrificando gastando o dinheiro que nem tinham para agradá-lo. Ele queria ficar sozinho, digerir a notícia do câncer. Notícia, que no fundo, pela reação dos pais nos dias que precederam a consulta, ele meio que já estava adivinhando.
Bruno abraçou os pais. Ouviu pela enésima vez que eles o amavam.
Pegou um ônibus para a UFRJ. Qualquer um teria ido andando do Rio Sul até o prédio da comunicação, mas Bruno ainda estava traumatizado com o último desmaio naquele caminho.
Chegou lá e foi direto para a biblioteca. Tentou estudar para a prova, mas não dava, Nenhuma palavra que ele lia mecanicamente parecia encontrar um encaixe mental que fazia sentido. Ele estava estudando burocraticamente, mais para ter uma ocupação, mais para se desligar da realidade. Mas a realidade ão o abandonava e novamente a ciranda de pensamentos o invadiu. Bia, a caveira, a falta de dinheiro, a doença. Como seria a fase de quimioterapia? Como seria o tamanho da batalha contra a doença? E se ele morresse? Certamente os pais se separariam… Sentiu pena dele mesmo, e depois pena dos pais. Era um misto de raiva e indignação por estar com uma doença daquelas, tão novo… Tanto filho da puta sadio na cadeia, tanto assassino, ladrão, pedófilo estuprador, e sobra ele para se foder com linfoma. Nome escroto do caralho: Linfoma.
Desistiu de estudar. Pegou um ônibus e voltou pra casa. Os pais não estavam. Deviam ter ido “agitar a vida” como diziam. Bruno se trancou no quarto. Ligou o som nas alturas. Tava tocando o CD do Enio Morricone, mas a musica não combinava. Trocou por um disco do Pantera e ficou fazendo bateria imaginária na cama.
Então ele lembrou da caveira. Ela parecia questionar: “Cadê meus diamantes, porra?”
Era engraçado imaginar os pensamentos da caveira. Ele precisaria logo dar um nome pra ela. Chamar a caveira de caveira era tão impessoal…
Bruno meteu a mão no bolso e tirou o pacotinho de papel com as pedras de brilhante. Colou nas orbitas da caveira com superbonder. Encaixaram perfeitamente. A caveira ficou com um visual meio gay, mas ainda era bem melhor que as luas de starfix.
Bruno aproveitou para dar uma polida na pedra, com uma flanela. Usou a cera de carro do pai, que nunca havia sido usada. Faltavam ainda três horas para ir pra faculdade. Ele pensou em estudar, mas não estava com tesão. Era uma sensação estranha de ligar o foda-se, embora algo dentro dele estivesse gritando para ele parar aquela porra de bateria imaginária e sentasse a bunda na cadeira com o livro até a hora da prova.
Bruno pegou o livro, deitou na cama e começou a ler. Meia hora depois, estava roncando profundamente.
Acordou com o pai sacudindo o pé dele.
-Ô rapaz! vai perder a prova, hein? Tá aí dormindo abraçado com essa merda de caveira. Já falei pra se livrar desse troço, Bruno!
Bruno não sabia onde estava. Acordou completamente grogue. Parecia drogado. Olhou a hora e se desesperou. A prova era na primeira aula!
Ele colocou a caveira de volta no “altar” com cuidado. Mentalmente pediu: “Porra caveirito, me ajuda aí nessa, brou? Preciso passar nessa prova e tô na merda!”
Tomou o banho mais rápido da vida dele, vestiu a roupa, pegou as coisas, comeu um biscoito goiabinha e desceu correndo pelas escadas mesmo, já que o elevador demorava muito.
Minutos depois, ele estava no ônibus, desesperado, lendo o livro da matéria. Todo o tempo de relax cobrava seu preço em stress. Bruno sabia que ia se foder.
Um homem sentou ao lado dele. Mas Bruno nem se deu conta. Só se ligou quando o homem falou com ele:
-E aí, Bruninho? Indo pra faculdade?
Era o vizinho de porta. O senhor Martinez. Martinez era um velho espanhol, viúvo, sem filhos nem parentes vivos. Vivia sozinho com um papagaio até a morte da ave. Ele ouvia ópera, e gostava de torcer pelo Fluminense. Era muito amigo do pai do Bruno, sempre com uma palavra amiga, um gesto simpático. Seu Martinez tinha seus momentos de fúria de vez em quando, mas em geral, era um homem doce e simpático, que conhecia a família desde quando ele era uma criança pequena.
-Tô sim, seu Martinez. Tenho prova final agora, na primeira aula. Tô ferrado, não sei legal a matéria e preciso passar pra não perder a disciplina.
-Mas você estudou? pela sua cara tô vendo que não estudou! – Riu o idoso. -Bom, aí é como dizem: Vivendo perigosamente. Sua mãe tá boa?
-Tá sim.
-E seu pai?
-Também.
-Ele não tem ido no bingo do bloco C.
-É que… Bem, acho que ele tá sem tempo! – Bruno tentava não ser ríspido, precisava de cada segundo de leitura no ônibus, mas o velho espanhol não calava a porra da boca. Começou a contar que ganhou um ventilador no bingo do prédio mas que a porcaria não ligava.
-…Achei que era um fio quebrado, mas não era, era o motor mesmo, que veio quebrado. Agora você vê, meu rapaz, hoje em dia fabricam ventiladores, que é basicamente só um motor… E não funciona. Não é possível! É um absurdo. O que custa testar aquela merda na fábrica? Você não sabe a mão-de-obra que me deu de entrar em contato com o SAC do fabricante. E pra piorar disseram lá eu que tenho que pagar o envio daquele trambolho para Manaus para eles examinarem. Vê se pode?! Larguei de lado, dei pro Jurandir. Sabe o Jurandir? O garagista? Então, eu dei pra ele. Disse: “Toma, é presente pra você. Não vou dar caixinha esse ano. Vou dar eletrodoméstico!” Agora ele que se vire com aquele negócio….
Bruno meteu a cara no livro, tentando ver se Seu Martinez percebia que ele precisava daqueles minutos como nunca, mas o velho não se tocava. Falava sem parar.
O ônibus se aproximou do campus da Praia Vermelha.
-Té logo, seu Martinez. – Disse Bruno, fechando o livro e guardando na mochila.
-Vai com Deus, Bruninho. E, ó…Quando não souber a resposta, chute na letra C… C de caveira! – Disse o velho rindo.
Bruno se assustou. Seria aquilo um sinal?
Naquela noite, na faculdade, quando ele recebeu a prova, espantado, percebeu que todas as questões pareciam ter como resposta a maldita letra C. E para espanto maior ainda, a maioria delas estavam relacionadas exatamente com o pouco que ele leu.
Bruno marcou letra C em todas as questões da prova. Ao sair, estupefato com aquilo, encontrou alguns amigos reunidos num grupinho na lanchonete. Estavam debatendo a prova estranha. Dois entre eles, eram famosos por serem bons alunos.
-Acho que a Valdete quer sair de férias logo. – Disse um. – Aquilo foi uma ação de caridade, nunca vi prova tão fácil na vida.
-Parece que ela quer mudar a fama de carrasca.
-Porra tudo letra C e só questão fácil, véio! – Comentou outro.
-Nada disso. Eu sei que merda que deu. Eu namorei a Sarita da secretaria acadêmica. O professor quando elabora a prova, faz a prova com as respostas certas todas na mesma letra. É na secretaria, quando eles vão mecanizar a prova que um funcionário lá faz a mistura das questões. Deve ter dado algum rolo lá e na mecanização da prova saiu como a Valdete entregou e não como o funcionário executou. O pior é que agora vão ter que entubar!
Aquilo deu a certeza a Bruno que ele havia gabaritado a prova. Era incrível. Teria sido apenas coincidência? Lembrou-se vivamente da frase do velho Martinez no ônibus: “C de caveira!”
-Bruno tu vai na festa do Cabeça amanhã? – Perguntou Soraya.
-Sei não. Por que?
-A Bia vai… Mas com o namorado novo. Você tá sabendo?
-Já. O Gui me contou.
-Foda, né? Mas vai lá, não deixa de ir não. O Cabeça tava todo grilado de você não ir por causa da treta da Bia…
-Vou… Acho que vou. Talvez eu vá com o Gui.
-Pô, vai sim, eu tô com uma prima lá em casa. Queria te apresentar ela… – Disse Soraya, com uma piscadela marota.
-Porra, basta a Bia arrumar um Zé Ruela pra logo você começar a desencalhar as barangas da família, hein So?
-Agora você ta solto na pista, rapaz! Vai com tudo. Não precisa dessa cara de cachorro em dia de mudança.
Bruno se despediu dos amigos, matou as duas aulas finais e voltou para casa.
Encontrou os pais na sala, vendo um filme no videocassete. A mãe com lagrimas nos olhos.
-Que isso?
-Você pequeno. – Ela disse.
Eram filmagens da família em Iriri.
-Porra olha eu todo cagado de lama…
-Já jantou? Quer jantar? Tem pizza que você gosta.
-Não, mãe eu comi um salgado com a galera da faculdade.
A mãe lhe deu um beijo carinhoso.
-Como você está meu filho? Sentiu alguma coisa?
-Tudo beleza, mãe.
-E a prova? – Perguntou Gil.
-Gabariteeeei! – Disse Bruno, fazendo a dancinha do Seu Coisinha de Jesus.
-Aê moleque! Assim que eu gosto, filho! Mostra pra eles!
-Bom, vou deitar, gente. Boa noite.
Bruno foi até o quarto. Tomou um novo banho e se jogou na cama. Sentia um gigantesco alivio pela prova.
Olhou nos olhos brilhantes de cristal da caveira.
-Obrigado! Eu sei que foi você!
Bruno ligou o rádio baixinho. Tava tocando Good Times, 98, só com musica mela-cueca de novela. Aquilo fazia ele lembrar da Bia. Bruno fechou os olhos na escuridão. Foi quando percebeu que talvez pudesse pedir outras coisas ao caveirito…
CONTINUA
Ta ficando interessante!
Os olhos pela prova. Outras coisas vão ter outros custos! Alguém enterrou essa merda por algum motivo! Mas será que a caveira tem vontade própria como o Um Anel? Ela tava lá pertinho do Tio do moleque o tempo todo, mas se revelou pra ele, que foi lá uma vez na vida e outra na morte. Ela o escolheu? Talvez, por todos os seus problemas… sabe que vai chegar o dia em que o Bruno dará tudo pra ela em troca de desejos/favores, até mesmo um corpo… até mesmo uma alma!
Ferrou! Vai vender a alma pro caveirito pra se curar do câncer e vai ser obrigado a se tornar um cover de Menudo… =O