O dia da minha quase-morte

Eu não queria acordar. A verdade é essa.

Mas Murilo estava – como sempre – muito animado e ansioso.

Ele ficava andando pelo quarto repetindo: “É hoje, é hoje…” e esfregando as mãos de um jeito patético.
Era o dia do tão aguardado piquenique dos amigos.
Tivemos um longo processo de definição do melhor dia. Ficou combinado que seria no feriado de São Sebastião, que era dia do padroeiro da cidade e ninguém teria aula.
Desci pra tomar café e vi Murilo se empanturrando de dois pães com queijo. Nossa mãe, satisfeita, socava manteiga no segundo pão, enquanto ele já terminava de fagocitar o primeiro.
Poucas coisas deixavam nossa mãe tão feliz que ver a gente comer.

— Tu ainda tá de pijama? — Ele perguntou de boca cheia.
Me arrastei quase que literalmente até a mesa. Na noite anterior eu tinha ficado até tarde lendo o livro que a professora de literatura mandou. No início eu estava achando um saco, mas depois a leitura engrenou, e eu não podia mais parar.

Só parei de ler quando vencido pelo cansaço, me dei conta de que meus olhos só pulavam de palavra em palavra e os nomes dos personagens mais nada significavam pra mim. Cenas e ambientes do livro já se misturavam com meus sonhos estranhos.

Em silêncio, coloquei café com leite na xícar . A voz da mamãe era estridente de manhã e isso me incomodava terrivelmente, mas não tanto quanto a rádio da cidade, que ela ouvia em alto volume, sempre pelas seis da manhã, e era o nosso despertador.

Ela praguejava sobre os feriados e sobre ela mesma não ter direito a folga. Mamãe costurava pra fora numa pequena oficina no andar de baixo da nossa casa. Ela  sustentava a casa com as costuras. Mamãe era muito boa e muito requisitada pelas madames da cidade, principalmente pela mãe do Elvis, que todo mês deixava uma bela grana lá em casa com os ajustes dos vestidos e encomendas de mais e mais vestidos de festas.

“Rico vive de festa em festa”, era o que mamãe sempre dizia. Foi meio que aí que eu achei que seria uma boa ser um rico também.

Mamãe estava agora me estendendo um pão e falando um monte de coisas sobre cuidados, comportamentos e recomendações diversas. Até pra prestar atenção em galho de planta por conter taturana.
Ela já havia feito um interrogatório completo, e para falar a verdade, ela era tão boa de arrancar confissões indesejáveis que se não fosse grande costureira, daria uma ótima policial.

Naquela altura do café da manhã, mamãe já sabia que íamos na Ilha do Pelado, sabia quem ia, quem eram os pais mães e avós de cada um que ia, o que iam comer, que horas íamos voltar…

Dadas todas as milhares de recomendações e alertas, prometemos nos comportar. Murilo foi até a cozinha fazer uma revisão da nossa sacola. Ali estavam frutas uns sanduíches que a mãe deixou pra gente, garrafinhas com suco, copinhos de plástico e tido mais.
Eu fui lá em cima vestir meu calção de nadar, colocar por cima a bermuda e uma camiseta.  A mãe ainda insistiu para que pegássemos um casaco cada um para caso o tempo mudasse. Olhei lá fora: Estava um sol de rachar o coco às oito da manhã.

— Imagina como vai estar ao meio dia! — Exclamou Murilo pegando a bolsa.

Fomos para o portão com nossa mãe. Minutos depois, passou o carro do pai do Elvis com o motorista. O motorista encostou o carro, desceu, abriu o porta-malas e colocamos nossas bolsas. Da porta, vi lá dentro um monte de gente.  Já estava a maior cantoria, o maior fuzuê. Tocava a fita do Leandro e Leonardo.
Alguém tinha uma bola amarela enorme dentro do carro.  Beijamos a mãe e entramos na bagunça.
Fomos nos apertando lá atrás do Del Rey Guia branco.
O motorista acenou pra mamãe e seguimos na direção do rio.

A Ilha do Pelado era uma ilha que ficava bem no meio do rio que cortava a cidade. E já chegando na margem, vimos o “filhadaputa-móvel” como passamos a chamar o carro do Guico. Tinha mais alguns outros carros perto, num estacionamento improvisado num terreno ali do lado do rio que era usado de pasto pra cavalo e campo de futebol.
Assim que saí do carro, vi algumas das meninas atravessando o caminho das pedras, que levava até a ilha. Por sorte o rio estava baixo, já fazia semanas que não chovia, e as pedras estavam bem à mostra, tornando o acesso à ilha mais fácil.

Descemos pelas pedras na mesma ordem que saímos do carro. Eu, Murilo, Orelha, Ailton e o Elvis que estava sentado na frente com o seu Tião, o motorista. O Tião era um senhor idoso muito simpático, com um bigodão branco que cobria completamente sua boca e contrastava com sua careca. Apesar dele ser simpático com a gente, rolavam boatos que ele era um matador que o pai do Elvis tinha contratado, mas essas coisas eram essas fofocas de colégio, provavelmente mentiras.

Ele veio atrás, levando as duas bolsas de comida do Elvis.

Quando chegamos na ilha em meio a enormes e frondosas arvores que nos provinham boa sobra, vimos as toalhas espalhadas. O Marcelo Gordo já estava lá, puxando o saco do Guico e colocando fitas cassete de rock num enorme rádio 3 em 1 que era um sucesso, cheio de reloginhos, e equipado com equalizadores analógicos e duplo tape decks!

Havia perto de uma das árvores uma toalha rosa, com um verdadeiro banquete, com tudo que você puder imaginar de comer: Bolos, salgadinhos pasteis… Em volta, umas sete meninas, todas lindas.
Olhei ao redor e vi os outros caras, Girlênio estava brincando de fazer embaixadinhas com uma bola e ainda estava chegando gente. Percebi que nosso piquenique que sempre fora um evento do nosso grupo estava gradualmente se tornando um evento social da cidade, porque cada ano alguém que ia chamava mais dois amigos, e então começou que o negócio parecia que ia sair do controle. Mas o melhor de tudo é que não tinha nenhum adulto! Era só a gente mesmo. Os mais velhos ali deviam ser o Guico e o Girlênio. Seu Tião sumiu rápido. Ele voltou no carro pegou uma caixa de pesca e adentrou a mata, procurando lá pra cima na ilha, um lugar longe e silencioso para tentar pescar um piau.

Entre as pessoas que estavam chegando, lá estava ela A Suzana. Ela veio com as sobrinhas do Eustáquio Schneider, o contador. Ela apenas me olhou de longe e eu não consegui manter meu olhar na direção dela. Baixei a cabeça. Ela foi até o Guico e abraçou meus amigos.  Foi bem ridículo, porque o Marcelo Gordo ficou olhando pra mim com os olhos arregalados tipo: –“Olha aí a tua mina, mané”!

Logo me distraí dos meus problemas afetivos quando o Juninho começou a distribuir salgadinhos e nos jogamos ao redor da toalha muito bonita da mãe do Elvis. Contávamos piadas, rimos, e fomos jogar bola. As meninas estavam ensaiando um jogo de vôlei, e logo, Juninho adentrou o grupo delas, criando um “meninos versus meninas”.

Eles me chamaram para jogar. Durei duas partidas e saí, cansado. Estava um calor que parecia até as fornalhas do inferno na ilha. Deve ser por isso que ela chamava ilha do Pelado. A vontade era de ficar peladão mesmo.

Confesso que a ideia do nosso tradicional piquenique, outrora intimista, ter caído na boca do povo era legal. Tinham várias garotas novas por ali que eu estava olhando. Tocava música e também pintou muito mais comida do que em todas as vezes passadas somadas.

Notei Guico, Elvis, Juninho e Marcelo Gordo cochichando lá perto do radio. Eu não ia com a cara daquele arrombado do Guico, mas meus amigos, meu povo, estava quase todo lá e então achei que era tranquilo eu me aproximar…
Quando cheguei perto, eles pararam de falar e ficou claro pra mim que estavam falando de mim.

Aquilo me deixou bem puto.  Sentei perto de um saco de batatas fritas e fiquei ali comendo, na minha.

Girlênio apareceu com uma bola de futebol e chamou a galera para uma brincadeira. Eu não quis, estava puto. Devia estar com uma tromba horrorosa na cara, porque quase ninguém mais falava comigo.

De um jeito estranho, toda aquela felicidade generalizada do pessoal estava me incomodando. Fiquei pensando no Miro. Ele ia gostar de estar com a gente. Fiquei imaginando ele, jogando altinho com o Juninho, com o Murilo e Girlênio.

Senti algo na minha mão e puxei assustado, temendo ser uma aranha que saiu do mato, e vi que era Suzana. Ela tinha sentado do meu lado, um pouco atrás de mim, e tentara pegar na minha mão.

— Oi.  — Ela disse, meio sem graça. Minha vontade era de nem responder aquela traíra maldita, ou não, falar umas poucas e boas, mas também baixei os olhos e respondi pra dentro.

–Tubo bom?

–…

Ela nada disse e ficou ali, perto de mim, vendo os meninos. Acendeu um cigarro e ficou fumando.
Notei as outras garotas, todas olhavam pra eles também, e o altinho dos garotos havia virado subitamente uma atração do piquenique. Juninho estava se destacando com grandes movimentos acrobáticos, arrancando suspiros das meninas.  Guico havia se unido ao grupo, agora de bermuda e sem camisa, mostrando os músculos. Entendi naquela hora o grande interesse. O bonitão estava em jogo, elas desfrutavam da cena.

Comecei a me sentir envergonhado, de ficar ali, como uma menina também, olhando como elas os garotos se exibindo.

Estavam formados times, e depois que Girlênio riscou uma linha na areia, ficou como um tipo de futevôlei sem rede. Eles estavam jogando na batida da musica o que era muito legal. Até o Marcelo Gordo estava lá jogando.
Deitei na toalha e fiquei olhando a luz que filtrava por entre os pequenos espaços entre das folhas das árvores na ilha. A luz descia em pequenas linhas, que eram mais visíveis no “canto da fumaça”, uma das toalhas cheias de comida onde umas quatro meninas lá estavam fumando como chaminés.
Quase todo mundo fumava. A maioria sem os pais saberem, é claro. Eu e Murilo já tinhamos tentado fumar numa festa, mais para pagarmos de adultos, mas realmente, aquilo é tão ruim que não rolou pra nós.

O orelha chegou trazendo um garrafão gigante de vinho barato que todo mundo estava tomando.

— Servido?

Agradeci e enchi um caneco. Tomei de um gole só. Estava calor, eu estava com sede, e o vinho era ruim, então tomei logo tudo pra acabar.

— Ahhhhh… Soltei ao engolir.

— Quer um cigarro bicho? — Suzana ofereceu.

Recusei o cigarro dizendo que me dava bronquite. Era mentira, mas sempre colava.
Pensei em dizer a ela tudo que estava entalado na garganta. Que eu sabia que ela tinha me traído com o Guico. Eu sabia, todo mundo sabia. Mas eu não tive coragem. Eu fiquei fingindo que não me importava. Assim eu sairia “por cima”.

O jogo da galera tinha acabado e todos correram para a toalha e se sentaram ao redor das comidas. Agora a turma estava unida num enorme falatório, com gente pegando sanduíches, biscoitos, fatias de bolo, pipoca e tudo que é coisa que você puder imaginar. As meninas falavam alto e riam, o radio do Marcelo tocava um Stay do Oingo Boingo em alto volume.

Os meninos estavam suados, e brilhavam na luz do sol. As garotas estavam entregues aos salgadinhos, se empanturrando e conversando em varios grupinhos de três ou quatro, rindo e fofocando, e eventualmente lançando olhares para os garotos. A maioria deles, alheios completamente aos olhares, discutiam futebol e métricas olímpicas em esportes  diversos.

Subitamente, um grito atraiu minha atenção. Alguém achou uma preguiça numa árvore.
Todo mundo se levantou e logo a árvore estava cercada por uma turma de quase trinta pessoas, a maioria gritando “que fofinha!” e apontando para o animal, que calmamente, esticava sua garra para puxar umas folhas, sem dar a  menor pelota para nós.

Voltei para meu lugar na toalha e comecei a comer um sanduichinho feito pela mãe do Elvis – mais provavelmente por uma das empregadas.

Juninho estava dançando agarradinho com uma das meninas um forró. Moleque esperto pra caramba.

Girlênio encostou do meu lado. Cigarro na boca, jeito malandro.

— E aí? Falou com a Su?
— Falar o que? Deixa quieto. Estou na minha.
— Sei  lá, pô. Falar do vacilo dela, ué. Ela te chifrou com o Guico.
— Não sou marido nem dono dela, meu. Quer o que? Ela é livre, porra.
— Tá, mas foi vacilo. Tu sabe.
— Tô nem aí, Girlênio.
— Mas tu tá todo macambúzio aí por que então?
— Tava aqui… Pensando no Miro.

Girlênio emudeceu. Baforou o cigarro em silêncio. Eu tinha rompido nosso trato de não falar nele de novo. Mas eu não conseguia. Eu não conseguia parar de pensar no Miro no latão de óleo. E a mensagem, e a pegada no meu quarto…

— Ele tá melhor que nós, véio.

Girlênio às vezes parecia tão maduro, tão acima de todos nós… Ele tinha dezessete anos mas parecia ter trinta ali. Ele serviu o vinho do Orelha em dois copos e me estendeu um, dizendo:

— Vamos brindar o Miro, onde quer que ele esteja.
Concordei. Brindamos com copinhos de plástico e eu disse:

— Até hoje não entendi aquela carta.
— Meu, esquece isso. Não pensa nisso. Ó, deixa eu te falar uma parada…

Ali perto, os meninos estavam arrumando uma nova brincadeira, com uma corda, estavam fazendo cabo de guerra. Começaram a gritar chamando a gente.
Girlênio gritou que já íamos e que ia só fumar aquele cigarro.
Ele pegou mais um copo de vinho e disse:

— Naquela hora que você chegou perto do Marcelo, a gente parou de falar, tu viu?

— Claro. Estavam falando de mim!

— Baixa tua bola, mané. Nem tudo é sobre você!

— Então qual era o papo?

— Ailton vai fazer 17. Tá armando um lance aí. Estamos vendo quem vai.

— Hã?

— Nas primas. — Ele disse com um sorriso sacana.

— Nas primas? Na Parada Alegria?

— Isso, lá perto da rodoviária.

Eu era virgem, e aquilo me deu medo. Mas eu não tinha como evitar sem dar a chance de ser ridicularizado para sempre.

— Não tenho dinheiro.

— Calma, o pai do Ailton vai fechar a casa. É tudo por conta do Zenildo. Mas ele falou que só libera pra quem for maior de 15. Tu pode, mas Murilo não vai.

— Porra, a minha mãe marca em cima. Tu sabe. Sair sem ele vai ser impossível.

— Bom, a gente inventa um esquema. Pensa aí. A casa vai estar fechada pra nós. Zenildo falou que vai tratar tudo com a Dona Esmeralda. Vai ser na sexta-feira. Mas tem que ser boca de siri, pra não dar merda. Ailton falou que as prima vão estar a noite toda só de calcinha e sutiã. Só escolher uma e subir pro quarto.

— Mas tem que… Você sabe? — Eu perguntei batendo as costas de uma mão na outra.

— Só trepa quem quiser. Mas difícil é não querer. Já foi lá?

— Só ouvi falar.

— Cada gostosa que nossa senhora! O Guico já foi. Tava justamente contando como é quando você chegou.
— Hum… Vocês só babam o ovo desse pau no cu, hein?
— Olha, vai pensando. Não fala com o Murilinho.  Juninho vai, Orelha, eu Guico e Elvis.
— E o gordo?
— Gordo tá enchendo o saco querendo ir, mas ele ta abaixo de 15.
— Mas nós vamos barrar ele?
— Tu sabe, ele vai acabar indo. Talvez seja melhor levar o Marcelo, pra ele não espalhar essa porra e queimar a gente.  Marcelo é um saco quando resolve encher…

Nisso umas meninas vieram e nos puxaram para o cabo de guerra. Como o advento de uma mulher me puxar é um evento canônico irrecusável na vida, eu parei de falar sobre a excursão no puteiro e fui fazer força com ela.  No fim, nosso time ganhou.

Após o cabo de guerra, Juninho e orelha ficaram só de calção e pularam no rio. Havia um grande remanso, que com o rio vazio, havia formado um piscinão na lateral da ilha. O povo chamava de “poção”.
O pessoal estava mergulhando naquele fosso, que era bem profundo. Desde sempre a galera pulava ali, e nadava de uma ponta a outra.  As meninas entraram no cantinho e ficaram sobre as pedras. Umas pegando um bronze.

Agora sim  aquele piquenique estava se mostrando um grande evento! Fiquei admirando as garotas ao sol sobre as pedras, esticadas como lagartixas.  Já os meninos faziam algazarras e brincadeiras. Algumas poucas meninas, como a Suzana, se arriscavam numas braçadas e mergulhos.
Fiquei ali pegando um sol na carcaça. Estava gostoso.

Marcelo Gordo me deu um cutucão e balançou a cabeça apontando alguma coisa sem falar.

Era o Juninho – pra variar.  Ele já tinha se dado bem com uma garota com o qual eu vi ele dançar forró minutos antes. Estava aos beijos dentro d´água, com ela sentada numa das pedras.
Uma rodinha de garotas ria e conversava com Guico ali perto.

— Juninho é foda, véio.  — Disse Marcelo Gordo, sem tirar os olhos do casal. –Ele não perdoa. O que tem de baixinho…
— Ou, vê se disfarça, meu! Olha pro outro lado.

Não sei bem se foi por causa do Juninho pé-de-valsa que começou uma parada de a galera começar a formar casais no piquenique. Desde cedo já havia uma certa tensão sexual no ar, mas agora, tinha virado quase que um “liberou geral”.  Os meninos começaram a chegar nas meninas e alguns casais começaram a se formar.

A tarde já ia longe, estimei pelo sol que eram umas três e meia da tarde. Lá pelas cinco, estaríamos sendo expulsos pelos mosquitos, então, era meio que o fim de festa mesmo. Ficava umas duas horas para beijar na boca.

— Eita porra! Alá! — Disse o Marcelo gordo, virando o rosto.

Quando olhei, vi Suzana abraçada com o Guico. E estava às vistas de todos. Eu tinha rodado na minha namorada pra aquele carinha. Eles estavam se beijando também.

Para tentar disfarçar o gosto amargo na boca, tomei um pouco mais do vinho e mergulhei no poção.  Marcelo Gordo mergulhou também.
Eu, Orelha, Ailton, Murilo e o Marcelo Gordo estávamos avulsos. Nenhuma menina se interessou pela gente, e ficamos ali brincando no poço.
Nessa hora, acabou que fizemos uma brincadeira de atravessar o poço nadando e eu não sei bem como foi, talvez porque eu estava cheio de vinho na cabeça, talvez porque estava com o corpo quente pelo sol, começou a me dar uma câimbra brutal nas pernas bem no meio do poço e eu afundei feito uma pedra.

Eu afundei, não conseguia nem mexer as pernas, era como se algo me puxasse para o fundo escuro. E pior, ninguém nem notou.

Gradualmente fui perdendo as forças. Eu me debati debaixo d´água e em certo momento acho que não sabia mais onde era o lado para cima.
Estranhamente, eu não senti medo. Eu meio que me conformei. Era assim que eu ia morrer: no piquenique do aniversario da cidade.

Eu ia morrer afogado. Logo, nada mais faria sentido, e eu estaria entregue a uma leveza como nunca havia sentido antes. A escuridão fria engolfaria meu corpo e uma sensação de estar numa amplidão infinita me dominaria os sentidos.
Foi nessa hora que ouvi uma voz, dentro da minha cabeça, que falou o meu nome e depois me disse algo assim: “Não é a sua hora ainda”. E essa voz era do Miro.
Senti então uma mão puxando a minha perna. Era o Miro. O Miro estava lá no fundo escuro comigo. Era ele que estava me puxando para a escuridão.

Mas então, eu senti uma pancada forte, e lá longe comecei a ouvir uma confusão, uma gritaria que foi lentamente ficando mais e mais alta, e mais clara. Eram umas meninas gritando e senti uma pedra me cortar as costas com um arranhão forte. Eu não entendi nada, mas o arranhão estava ardendo pra cacete, e elas não paravam de gritar e alguém estava me sacudindo.
Abri os olhos e vi o tal do Guico empurrando meu peito. Eu estava em cima de umas pedras já na beira do Rio, e todo mundo em volta falando super alto. Umas meninas se abraçando outras chorando e eu mandei um:

— Mas que porra é essa, malandro? — E todo mundo caiu na gargalhada.

Elvis me contou que eu morri! Eu estava morto, mortinho da Silva. Murilo estava desesperado, e me abraçava forte. Pelo pânico do meu irmão foi que eu vi que tinha dado uma merda sinistra comigo.

— Eu o quê?  — Eu não lembrava direito o que tinha acontecido.

Girlênio disse que eu estive “do outro lado” por mais de três minutos.

— Tu tava mortão mesmo, cara! Pra valer!

Concluímos depois que eu estava bêbado e tive aquela cãibra. Se não fosse o Guico perceber e pular na água e nadar como um herói ate o fundo e me puxar de lá, eu estaria com certeza, morto. Agora eu devia minha vida pra aquele vagabundo.

Todos estavam o cumprimentando pelo heroísmo e coragem, de não apenas me tirar, mas me ressuscitar, com massagem cardíaca.
Eu olhei para o Murilo e somente pelos olhares sabíamos que a merda ainda estava pra acontecer. Logo aquilo ia se espalhar e ia chegar no ouvido da mamãe e aí, fudeu.

Minha quase morte decretou o fim precoce do grande piquenique dos amigos de 1989, e o pessoal começou a recolher a comidaria, as toalhas, o som, e tudo mais.
Eu ainda tossia e meu pulmão doía. Um puta arranhão nas minhas costas de ser puxado pelas pedras queimava como brasa.

— Você tá bem?  — Suzanna Perguntou, ainda abraçada com o Guico.

— Tô bem, valeu. Valeu. — Eu dizia, fazendo joinhas com os polegares erguidos para os dois. Mal queria olhar nos olhos deles. Eu sentia uma vergonha absurda.
Murilo me trouxe uma toalha e minhas roupas. Me ajudou a vestir, junto com o Elvis.

— Porra, tu e foda mermo… Só faz merda. — Eles diziam enquanto me ajudavam.

Eu obviamente, mandava eles se foderem. Estava só pensando em qual história eu ia inventar para nossa mãe. Assim que ela ficasse sabendo da cagada, ia proibir todo e qualquer evento desse tipo pra sempre.

Voltamos aos carros. Estava começando a escurecer. Os mosquitos estavam mesmo inclementes, como eu previra.
Nos despedimos correndo e entramos.

Enquanto o carro do pai do Elvis ia percorrendo as ruas, tocando uma fita do Leandro e Leonardo, o Murilo me olhou de um jeito serio.

— Você tá bem mesmo?

Então eu sussurrei pra ele que enquanto estive do outro lado, eu vi o Miro.

Murilo se arrepiou e limpou apressado com as costas da mão uma lágrima, e depois olhou fixamente pela janela.

 

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.
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Comentários

  1. Legal ver você voltando a esse universo, quando comecei a ler, nem havia percebido que era, mas assim que vi o nome do Miro, logo lembrei. Acho muito maneiro você escrever sobre grupo de adolescentes ambientado nos anos 80/90, porque parece que você usa um quê de experiência própria e vivências nesse período. Adorei, sequência com uma história mais simples, mas escrita de maneira sensacional.

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