O encontro de Raul

Droga, o baseado acabou. – Pensou ele.
Raul estava só. Era uma madrugada de quinta-feira e lá na rua não se ouvia nada. Só de cueca e sem camisa no meio da cozinha, o cabelo todo desgrenhado, com o pote de maconha vazio nas mãos e ouvindo um antigo disco do Elvis, cheio de ruídos, que ainda tocava na vitrola, Raul contemplou sua desgraça.
Depois de sair na porrada com Paulo, a falta de um baseado, coisa que nunca lhe acontecera antes, era um sinal de que as coisas começavam a ir mal. Raul pensou em pegar aquele telefone vermelho e ligar pro Paulo. Saber se ele tinha um “beck” pra emprestar. Nem que fosse uma pontinha.
Foi até a sala e chegou a pegar no telefone. Mas não discou. As palavras duras do Paulo ainda soaram em seus ouvidos. Eles haviam se desentendido daquele mesmo jeito mais mil vezes antes. Mas aquele dia foi diferente.
Raul morava no Butantã e na alta madrugada, pensou em descer e percorrer algumas ruas até a casa de Ronaldo, que certamente teria um “beck” pra lhe arrumar. Mas o problema era sair de casa. Havia gente dormindo na calçada para encontrar com ele.
Uma das coisas que o Raul mais temia era maltratar um fã.
Foi quando ele teve a brilhante iluminação.
Ali perto do saleiro estava um pacotinho com uma espécie de grama dentro.

Raul sorriu.

Minutos depois, ele estava sentado no sofá em posição de lótus enrolando um baseado de orégano.
À sua frente uma folha de caderno e uma velha caneta bic. Raul pegou o violão.

Ele colocou um mi menor e então bateram na porta.

Raul olhou em volta. Colocou o violão de lado. Levantou-se desanimado e caminhou até a porta. Raul olhou pelo olho-mágico em busca de descobrir quem seria o impertinente de bater à sua porta no meio da madruga. Não viu ninguém.
Pensou se não estaria ouvindo coisas.
Voltou-se para o sofá e já ia pegar no violão quando bateram na porta com um jeito meio desesperado. Ele se assustou.
Correu para a porta. Tornou a olhar e novamente não havia ninguém ali.
-Quem está aí? – Perguntou ele esperando ser o Paulo pedindo desculpas e aceitando mudar a letra. Mas novamente não houve resposta.

Achando aquilo estranho, Raul abriu a porta. Para seu total espanto, ali em sua frente estava um homenzinho pequeno. De uns vinte e cinco centímetros. E o pior: Estava nu, tinha um micropinto e era careca!

Raul não conseguiu falar nada. O micro-homem careca estava ali. Parado, olhando fixamente apara ele.

-Não vai me chamar para entrar, Raul? – Disse o homenzinho careca.
-Raul levou uns dez segundos para decidir se batia a porta nacara daquela criatura freak ou se aceitava aquele absurdo como mais um dos delírios que ainda aconteciam desde que tomou aquelas merdas nos anos 70.
-Quem é você meu amigo?
-Eu sou o Guiwo.
-Guiwo…
-Posso entrar ou não, seu Raul. Talvez eu deva voltar outra hora…
-Não, não. Entra aí, bicho.

A miniatura de gente entrou e Raul conseguiu ver um rabinho. Aquilo o arrepiou. Definitivamente, Guiwo não era gente.

O homenzinho entrou pela casa de Raul e foi olhando tudo, com muita curiosidade…
Raul voltou-se para ele:
-Quer uma cerveja meu irmão? – Oferecer uma cerveja para aquela criatura absurda foi a única coisa que lhe ocorreu na hora. E nem havia cerveja na geladeira.
-Não, não. Vamos direto aos negócios, seu Raul.
-Negócios?
-Sim, Raul. O senhor percebe o que o senhor fez?
-Hã?
-Quando o senhor leu aquele trecho do livro da besta, o senhor abriu uma ligação entre mundos… – Disse Giwo apontando para um grosso livro do Crowley sobre a mesa da sala. Aquele livro emprestado do Paulo.
-Calmaí companheiro. Eu só…
-Você leu. Não adianta mentir. E agora eu estou aqui.
-Tá, tá bom. Eu li. Mas e agora?
-Agora você tem que me mandar de volta.
-Mas como, porra?
-Não sei, só sei que eu preciso voltar para meu lugar.
-Droga… Aqui, por acaso você não tem um baseado aí não, né?
-Vamos, Raul. Mande-me de volta para o lugar de onde eu vim.
-Merda… Vou chamar o Paulo. Peraí.
-Não! – Gritou a criaturinha.
-Hã?
-Só você pode me ver.
-Como é?
-Sim, você não mudou o universo. Você mudou você mesmo.
-Mas olha, veja só… Já estou achando que pirei.
– Não Raul. Não pirou. Mas se está me vendo, eu sinto lhe informar que poderá ver outras coisas.
-Hã?
Nisso batem na porta. O pequeno Giwo assusta-se. Olha para a porta com medo.
-Ah, não! Vai começar.
-Hã? Começar o que, amiguinho?
– A coisa cujo nome não podemos dizer. Ela veio me pegar. E quando ver você aqui ela vai te pegar também.
-Como é? – E a porta é esmurrada fortemente. A fechadura começa a ceder.
-Que merda é essa, anãozinho?
-Anãozinho o cacete! Eu sou um giplou kroudus. Exijo respeito. – Disse Giwo levantando-se e correndo pelo corredor. Raul o seguiu.
-Mas que merda é aquela lá na sala?
-É um Nicurí! Rápido. Me esconda ali em cima. Rápido! Anda, Raul! – Disse aflito Giwo apontando para o alto do armário.
Raul pegou o homenzinho com uma mão e jogou-o em cima do armário.
– Raul…
-Fala. – A porta da sala finalmente cede e escancara-se. Giwo sussurrou:
-Não olhe para o Nicurí. Ele vai entrar. Deite na cama e finja que está dormindo. Aconteça o que acontecer, não olhe para ela. Ouviu? Não olhe! Ou você vai viver o pior momento da sua vida. – Disse ele e em seguida, saiu correndo para o fundo do armário. Raul ouviu uns passos na sala. A coisa já estava na casa dele.
Raul jogou-se na cama. Enfiou a cara no travesseiro e fechou os olhos com força.
Seus ouvidos estavam atentos. As passadas aumentaram e lentamente aquela coisa adentrou o quarto.
Fez-se um breve silêncio.
Raul manteve-se imóvel, como se dormisse.
Ele sentiu que a coisa se aproximou. Aproximou-se e ele ouviu a respiração ofegante do que quer que estivesse ali. O bicho soltou um rosnado grosso que fez o sangue de Raul gelar nas veias. Novamente, aquilo na casa dele não era desse mundo.
Uma mão fria tocou a perna de Raul.
Ele tremia. Fez xixi nas calças, empapando a cama.
Surgiu um barulho no quarto.
A mão largou a perna dele.
E então Raul, apertando os olhos o mais que podia, com a cara enfiada no travesseiro, o bigode dentro da boca, o corpo mijado e suando frio, escutou um grito de horror.
Ele pensou em olhar, mas ficou firme. A cara enfiada no travesseiro.
Houve um barulho de luta. Gritos. Era a voz de Giwo. A criatura sinistra havia descoberto o pequeno homenzinho.
Raul não se lembra quanto tempo ficou ali com a cara enfiada no travesseiro, mas quando enfim reuniu coragem para olhar em volta, não havia nada naquele quarto. Apenas marcas de sangue escuro no chão.
Horrorizado, Raul viu uns poucos pedaços do homenzinho espalhados pelo corredor.
Andou com extremo cuidado. Ele tinha medo de encontrar aquilo na sala. Mas ao chegar na sala, não viu nada. A porta estava entreaberta. A maçaneta destroçada.
O que quer que fosse que matou aquele bizarríssimo monstrinho, havia ido embora. Raul pensou em ligar pro Paulo, pra Kika, pro Tim. Pro cacete a quatro.

Raul olhou o livro antigo sobre a mesa.
Pegou aquele livro e jogou pela janela.
Voltou até o quarto e recolheu os pedacinhos do sinistro ser.
Ninguém iria acreditar nele. Raul já tinha fama de maluco e depois daquela situação inusitada, isso só iria piorar. Resolveu que não contaria para ninguém. Nem para Paulo.
Mas não fez nada. Juntou aquele monte de destroços e jogou no vaso. Deu descarga e viu os restos mortais daquele tipo de gnomo maluco descerem no jato de água abaixo.
Raul pegou um bolo de papel higiênico e limpou o sangue no chão. Jogou tudo no vaso sanitário.
Voltou para a sala, escorou a porta semi destruída com a cadeira da sala.
Sentou no sofá. Pegou o baseado de orégano, que queimava seus últimos pedacinhos.
Pensou cá com seus botões:
– Rapaz, eu acho que não vou fumar orégano nunca mais…
Deu uma bela tragada e voltou a compor:

“Eu sou eu, nicuri é o diabo
Eu sou eu, nicuri é o diabo
Eu sou eu, nicuri é o diabo

Eu sei quem sou
E por onde vou
Eu sei quem sou
E por onde estou
Eu agüento a barra
Limpa ou da Tijuca
Se vou lá no fundo
Fundo a minha cuca
Cucaracha cha-cha-cha-cha
Mas…
Eu sou eu, nicuri é o diabo
Eu sou eu, nicuri é o diabo
Eu sou eu, nicucu é o didi
Eu sou eu, nicuri é o diabo…”

FIM

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Iiiihhhh……é Philipe se voce começar a viajar nas musicas do Raul ainda vai dar muito pano pra manga, Raul é o começo o fim e o meio de muita coiza que vai demorar pra nós entendermos…..

  2. [quote post=”1782″]Caraca, mané! QUE VIAGEM!

    Isso sai da sua cabeça sem ajuda nenhuma?[/quote]

    Sai sim, hehehe. Eu estou pensando em transformar o Raul num personagem fixo no MG com muitas outras histórias. Que tal?

  3. cara, vc é brisado de nascença ..

    não é possivel, viajou legal no Raul, transforma ele em fixo mesmo aqui no Mg ..

    abraço ..

  4. parabens campeao!!! muito viajem mesmo a historia..
    eu estou aqui vendo esse texto e viajei mesmo, como sentar naquele banco do lado do Tom Hanks !

  5. [quote comment=””]parabens campeao!!! muito viajem mesmo a historia..
    eu estou aqui vendo esse texto e viajei mesmo, como sentar naquele banco do lado do Tom Hanks ![/quote]

    Hehehe. Que bom. Fico feliz.

  6. VEI QUE VIAGEM! Porra nao visito mais seu blog rachando, tenho a impressão que vi Gwuin, gwwin sei la atras da porta do quarto..

  7. Este é um conto quase autobiografico,(não a parte de fumar oregano, mas sim a parte de receber visitas de outro mundo) mas eu não gosto muito de falar sobre isso.

    • Philipe, história realmente interessante e envolvente, e o melhor de tudo, sobre uma das personalidades mais fodas do Brasil (pra mim é com certeza O CARA, hehehe ).

      Bom, gostaria de saber se posso transformar esse seu conto em uma HQ (no estilo de Power Trio, Cabaret e Overdose, do Rafael Albuquerque), claro esse projeto quero levar bem a sério e ir te mostrando as etapas (desde o Char Design até o esboço das páginas e da diagramação do roteiro). Se puder responder no meu e-mail fica mais fácil pra mim.

      Valew, continue o excelente trabalho!!

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