O experimento Carlson – Parte 24

– Petra! Petra!
Carlson gritava, sacudia a jovem, mas ela estava inconsciente. Derramou agua no rosto dela, mas foi em vão.
Assustado, um arrepiante pensamento o atingiu.

-Ela está morta. – Ele gemeu para si mesmo.

Morten não queria acreditar, então insistiu, aos gritos, tentando fazer com que ela despertasse.

Ele olhou ao redor e num raio de quilômetros só se via uma árida planície de pó branco. Ao longe redemoinhos de poeira dançavam girados pelo vento.
O Sol começava seu rápido mergulho em direção ao horizonte novamente. Carlson olhou o sol pálido na imensidão azul e praguejou contra a maldita estrela e aquela rotação maluca do planeta.

Ele sabia que logo o frio congelante retornaria para tornar sua vida ainda mais infeliz.
Exposto ao vento ele não duraria muito. Observou mais uma vez a jovem. Não tinha como ter certeza se ela estava respirando ou não. Com dificuldade sentiu uma fraca
pulsação. Talvez a onda de choque tivesse afetado Petra de alguma maneira fatal.

Carlson investigou o kit medico em busca de alguma coisa. Havia poucas opções efetivas para ela naquele estado. Ele sabia que racionalmente, o mais lógico – e trágico – seria deixar Petra para trás e seguir adiante. A tentativa de levá-la consigo certamente resultaria em duas mortes, ao invés de uma.

Mas ele não podia fazer isso. Ela estava em estado grave por ter decidido salvá-lo do monstro salsicha. Ele sabia que não se perdoaria se tomasse a fria decisão de abandoná-la para morrer em poucas horas.

Sentiu o vento chicoteando seu corpo. O frio já estava chegando com força.

Morten Carlson estava sem saber o que fazer.

Seus olhos então perceberam o gigantesco corpo do monstro tombado a cerca de 40 metros.
Ele correu até lá.
Ver aquela coisa de perto era uma experiência impactante. Sua pele parecia grossa. Era repleta de pequenas escamas de um tipo de composto orgânico desconhecido. De longe,
essas escamas conferiam um brilho levemente iridescente sob a luz.
A mais notável característica do Salsichão é que ele fedia horrorosamente. De diversos orifícios onde os tiros atingiram a criatura, minava uma gosma que poderia ser descrita mais facilmente como um tipo de cobertura de chocolate dessas que se coloca no sorvete. Parecia um tipo de piche, mais ralo e fétido. Carlson pensou que talvez fosse alguma forma de hemolinfa com altíssimo teor de cobre e outros metais. A substância apresentava características peculiares. Ao sair da criatura era bem liquida, mas logo adquiria uma fantástica viscosidade, lembrando um tipo de seiva. Talvez uma característica evolutiva para a secura. Algo estaria evaporando? Ou o ser poderia também liberar um composto anticoagulante que reagiria com o oxigênio, pensou.

Carlson continuou a observar as características morfológicas do animal. Fora o odor, a principal era sem duvida seu tamanho. O salsichão infernal era maior do que qualquer
criatura animal do planeta Terra. Ele observou que a imensa estrutura corporal produzia uma barreira eficaz contra o vento, mas apenas de uma direção. Porém, as patas emaranhadas e retorcidas também funcionavam como barreiras.

Carlson voltou até Petra, já temendo encontrar a moça morta. Mas ela ainda estava do mesmo jeito. Seus dedos no pescoço dela indicaram algum batimento cardíaco. Petra
estava viva, mas parecia em coma. Ele levantou o corpo dela com dificuldade. Suas pernas doíam terrivelmente de novo. Cada passo carregando o corpo desfalecido era um doloroso exercício.

Estava praticamente escuro quando Carlson chegou com ela ao lado do salsichão infernal.
Ele apoiou o corpo de Petra na base da criatura. Caminhou em busca do melhor local. Era entre o corpo e as patas. O lugar ficava ainda cerca de dez metros à direita. Mas Carlson estava tão exausto que pensou em desistir. Ele mal conseguia dar um passo… E ainda precisava voltar para pegar as mochilas. Mal se via um palmo. As fracas luzes do traje não ajudavam. Ele cambaleou lentamente com os braços tentando tampar os olhos das rajadas de vento e poeira que vinham de todos os lados. O vento urrava ao redor dele como gritos desesperantes.
Estava agora em completa escuridão, perdido, sem referencial, em busca da mochila e da arma. A luz do traje iluminava cerca de meio metro.
Ele andou de um lado a outro em busca de algum sinal da mochila, mas não via nada. Nesse momento, começou a temer pela própria vida. Sem a proteção e os equipamentos da mochila, estaria em vias de falecer em pouco tempo.

O frio cortante fazia seus ossos doerem de dentro para fora. Não fosse a forte resistência do material térmico do traje ele certamente perderia as pontas dos dedos. Carlson não deixou de perceber que aquela noite estava parecendo muito mais fria que de costume. Dada a velocidade impressionante com que o planeta girava e orbitava sua estrela, talvez estivesse se aproximando a estação de inverno, ou talvez fosse simplesmente alguma condição meteorológica incomum.

Seus olhos perceberam na escuridão um pequeno reflexo ao longe. Era a mochila!

Ele avançou até ela. Carlson pegou a mochila, que estava repleta de pó. Não haveria condições de buscar pelas armas.

Ele precisava voltar imediatamente e se abrigar. No caminho de volta ao enorme corpanzil, percebeu que já não tinha certeza da direção.
As luzes do traje começaram a piscar. Um indicativo no painel do braço mostrava uma redução grave na energia. Carlson percebeu que algo poderia ter danificado os jumpers novamente.

Ele sabia que se a extensão do dano que estava drenando a bateria atingisse o sistema de sobrevivência, estaria decretada sua morte nas próximas horas.
O termômetro do traje indicava 28 graus abaixo de zero e o frio estava aumentando.

Ele reduziu os quatro faróis nos ombros para apenas um. Agora seu alcance de luz se limitava a poucos centímetros. Ao redor apenas o breu, que era cortado por uma imensidão de farelos de poeira e areia, que o faziam tossir sem parar.

Morten estava ofegando e com sede. O vento vinha em poderosas rajadas que quase o derrubavam no chão. Andou em o que acreditava ser uma linha reta, mas ele mesmo não estava muito certo de que estava na direção que deveria. Carlson notou que o vento estava gradualmente diminuindo. Ele prosseguiu, um passo após o outro, tentando manter a mente funcionando. Notou que  parecia estar ficando confuso, produto de uma possível hipotermia. Na escuridão era muito fácil se perder.

O vento subitamente parou. Foi um grande alívio. Carlson notou que já conseguia ver melhor as estrelas. Sentou-se no solo e abriu o conector da mochila. Prendeu-o ao conector do traje e direcionou um pouco de energia das baterias reserva. Foi difícil fazer essa conexão pois ele tremia muito. Estava com dificuldade de controlar os próprios músculos.
Respirar ardia seus pulmões de um modo agoniante.

Quando a manobra de energia terminou, ele reativou as luzes do traje. Olhou ao redor e viu que havia se distanciado do monstro. As estrelas na escuridão desértica ajudaram a localizar onde ele estava. Parecia uma enorme muralha preta erguendo-se do chão.

Após resmungar meia dúzia de palavrões, ele levantou-se e seguiu na direção do salsichão. Quando Carlson finalmente chegou percebeu, atônito, que Petra não estava onde ele havia deixado. Ela estava emborcada de cara no chão uns vinte metros a diante.

-Petra! Petra! – Ele gritou correndo até ela.
Petra estava desacordada, do mesmo modo como ele a havia deixado.
Carlson então olhou ao redor. Alguém havia tirado ela dali?
O vento estava recomeçando a aparecer e ficar mais e mais forte. Carlson arrastou o corpo dela para ficar entre a barriga e as patas do bicho. Ali o cheiro daquela coisa beirava o insuportável.
A hora parecia não passar. Ele manteve Petra em seus braços, amparando sua cabeça mole do jeito que foi possível. O traje ainda estava perdendo energia com velocidade, mas com a manobra da energia das baterias da mochila, Morten acreditava que conseguiria enfrentar mais uma noite.

As enormes coxas que se projetavam daquele corpo comprido mediam quase três metros de espessura. Era mais que suficiente para formar uma barreira protetiva.

Enquanto esperava o tempo passar, Carlson pensou sobre a criatura no qual apoiava as costas. Como seria a biologia daquilo? Como um animal poderia ser tão grande num
ambiente desprovido de recursos como o que ele estava? Aquilo não fazia o menor sentido. O tamanho do corpo dos animais está diretamente relacionado com a oferta de energia. Certamente o salsichão infernal deveria captar energia de alguma fonte. Talvez suas micro escamas iridescentes tivessem evoluído para converter a luz do sol em energia, um tipo de fotossíntese mais próxima dos painéis fotovoltaicos do que das plantas.

A criatura tinha um cheiro acre, que ora lembrava um tipo de comida azeda, ora lembrava o odor de roupas velhas molhadas. Um cheiro ruim, mas que se tornava realmente nauseabundo perto das poças da gosma preta, que fez com que Morten ficasse longe.

Estava quase pegando no sono quando sentiu algo passando na mão dele. Carlson deu um pulo e o corpo de Petra caiu de lado, batendo no chão.
Ele olhou ao redor. Algo havia passado sobre o braço dele. Assustado, notou varias criaturas, com o tamanho aproximado de sua mão. Pareciam um misto de ácaros com pulgas. Eram quase esféricos, e estavam passeando ao redor do corpo do salsichão.
“Parasitas” – Ele pensou.
As criaturas, que Morten resolveu chamar de “pulgões”, vagavam pelo corpo enorme, procurando os buracos de tiro onde estavam se agrupando, provavelmente sorvendo aquela gosma malcheirosa para se alimentar. Foi nesse momento que os pensamentos de Morten se voltaram para outro fato que agora parecia óbvio. É certo que aquela carcaça descomunal estava liberando um odor específico, e tal qual na Terra, logo ela seria descoberta por outros seres necrófagos.

Estar deitado numa carcaça não era a melhor das ideias, porque talvez, para esses predadores de cadáveres, os corpos de Morten, Petra e do Salsichão do inferno fossem uma coisa só: Comida.

O vento contínuo teria se encarregado de levar os odores para muito longe. Estava claro que seria questão de tempo para que alguma outra coisa, talvez até da mesma espécie do salsichão aparecesse.

Morten foi até Petra e assustado, viu que os pulgões estavam andando sobre ela. Ele começou a arrancar as odiosas criaturas com as mãos e chutá-las para longe.
O cadáver do Salsichão não era um lugar seguro. Ele precisava buscar um novo abrigo. Mas não havia qualquer abrigo que se pudesse usar ali. Então, Morten Carlson teve uma
outra ideia.

Ele pegou a faca na mochila e andou pela lateral do corpo do salsichão até o local dos tiros, onde os pulgões estavam trepando uns sobre os outros. Morten empurrou as criaturas nojentas. Meteu a faca no buraco e começou um lento e difícil corte. Apesar da faca ser altamente afiada, o couro daquele bicho era extremamente resistente e grosso. O explorador continuou a cortar mais e mais. E conforme cortava, maior a cascata de gosma preta ia minando do corpo. O cheiro que saía das entranhas da criatura o fez quase vomitar diversas vezes. Algum tempo depois, uma poça fenomenal estava se formando no solo.

Morten esperava que a poça de hemolinfa preta atraísse os pulgões para longe de onde eles estavam. E aquilo aparentemente funcionou, pois as luzes do traje iluminavam essas centenas de criaturas que agora vinham vagando mas todas na direção da poça.

Ele voltou até Petra e se afastou um pouco do bicho, ficando num pequeno espaço entre dois conjuntos de pernas quebradas.

Morten viu que havia se sujado naquela gosma horrorosa. O cheiro era desesperante. Desejou ter uma máscara de gás. Foi uma noite das piores e mais longas no planeta
desconhecido.

Quando o céu deixou a escuridão e começou a formar raios de azul e púrpura no horizonte, o explorador finalmente se levantou. Ainda estava extremamente frio. E Morten desejou como nunca que o sol poderoso e inclemente surgisse no céu.

Sua atenção para os astros foi desviada por um gemido baixo. Era ela! Petra estava acordando do coma!

Ele se abaixou e falou perto dela.
-Shhhh. Estou aqui com você. Calma. Calma!
-Meu… Braço. – Ela disse. Em seguida, desfaleceu de novo.
Morten viu que ela tinha o braço quebrado.

Talvez fosse melhor que ela ficasse desacordada, pois estaria com dores excruciantes. A cada minuto era possível ver mais e mais.

Ele entendeu que ela tinha despertado e procurou por ele. Quando provavelmente ficou tonta e desmaiou, caiu sobre o braço e o quebrou.
Carlson então levantou-se, foi até a mochila e filtrou um pouco de água. Bebeu um pouco e limpou os braços como dava, porque o cheiro era muito ruim e também porque ele temia que aquela coisa pudesse causar alguma infeção nas feridas de Petra.

Carlson percebeu que ela devia ter tido uma concussão e talvez estivesse com um inchaço cerebral. Enquanto examinava Petra, ouviu um som inconfundível. Era como uma explosão, mas contínuo. Ao longe, um meteorito estava caindo. O bólido desceu do céu soltando rastros e atingiu o solo com enorme violência a cerca de 20 km de distancia.
Ele se abaixou sobre o corpo de Petra e tentou, como foi possível, protegê-la com o próprio corpo. Foi preciso deitar sobre ela, com o risco de esmagá-la.

Não foi necessário esperar muito, pois logo a onda de choque chegou.

Pulgões voaram para todo lado e o vento explodiu com enorme violência sobre a carcaça do salsichão, fazendo-o tremer. Patas arrancadas da criatura saíram voando pra longe.
A pressão do vento foi aumentando cada vez mais e a rajada agora era terrivelmente quente ao ponto de que Carlson temeu que fosse morrer. Felizmente, a onda de calor cessou rapidamente, bem como o vento. Ele se levantou e viu o chão cheio de cadáveres de pulgões fumegantes.

Não fosse o volume corporal impressionante do Salsichão que obliterou a onda de choque, teriam sido torrados pelo calor emanado do impacto. Ele sabia que se a rocha que atingiu o planeta fosse maior, eles poderiam ter sido volatizados.

Se durante a madrugada, com o vento frio o odor daquele bicho beirava o insuportável, agora com uma lateral inteira assada, o cheiro era uma das coisas mais desagradáveis que Morten Carlson já tivera o desprazer de se deparar em vida.

Mas o cheiro não era tudo. Algo ainda mais estranho atraiu a atenção do explorador.

Um volume grande se mexeu dentro do corpo do salsichão.

-Puta que pariu! Ele está grávido! – Disse horrorizado.

Ele tratou de agarrar Petra pelos ombros e puxá-la para longe da barriga do bicho, que agora estava se contorcendo.

Morten se afastou apressado, puxando Petra.

-Unnnng – Ele gemia, arrastando o pesado corpo da jovem no chão de pedras.
Morten sabia que se o Salsichão do Inferno fosse vivíparo, como parecia ser, o filhote loco acharia seu caminho para nascer esfregando-se através das entranhas da mãe… ou seria do pai?
O fato é que muito provavelmente, aquele tipo de criatura devia ser parecido com os répteis, que nascem como miniaturas, pequenas réplicas prontas de seus pais. E fosse esse o caso, ele sairia daquele bucho com fome… e ódio.

Morten Carlson deitou o corpo de Petra no solo. Com os pés, tratou de cobrir de terra e detritos o corpo dela, na esperança de que o filhote de Salsichão não os visse ou sentisse.
Ele também deitou-se no chão, alerta. A barriga da criatura estava se contorcendo de maneira cada vez mais feroz.

Carlson percebeu que talvez deitar ao lado de Petra fosse “muita bandeira”. Se a criatura era atraída por feromônios, os dois juntos mandariam um sinal claro de
sua posição.

Ele se levantou e tentou correr. Morten correu para longe. E tentou dar a volta na criatura, chegando ao outro lado do corpo dela.
Ali ele percebeu que a onda de choque do meteoro havia literalmente fritado uma boa parte da criatura. Talvez aquele tivesse sido o evento que provocou o nascimento do bebê.

O sol agora estava forte no céu e o calor subindo rápido novamente.

Carlson viu ao longe, a arma no chão. Seria sua única alternativa. Ele correu na direção da arma. Conforme se aproximada da metralhadora, notou movimentação no horizonte.
Ele estacou para ver melhor. Eram milhares de aranhas. Aquele mesmo bicho no qual ele havia desperdiçado tantos tiros. Estavam vindo como uma enorme onda frenética. Morten estimou a distância em cerca quatro quilômetros ou menos. Ele se lembrou que os caranguejos do ártico também se movem assim, em grandes grupos, comendo tudo que encontram pela frente.

Se de um lado havia um bebê salsicha chegando ao mundo com todo seu horror e fome, do outro lado uma cambada monstruosa daquelas coisas entre aranhas e caranguejos.

Carlson agarrou a arma. Ele correu de volta para a carcaça. Ao longe, já podia ouvir um som estranho assemelhado a cliques e galopes. Eram os bichos chegando para comer o
Salsichão infernal.

Conforme ele se aproximava de Petra, notou que a barriga do Salsichão estava sofrendo impactos, e se torna do mais e mais flácida. Os pedaços de pele estavam gradualmente
se rompendo, e então, para total estupefação do explorador, o que saiu do Salsichão não foi um salsichãozinho.

Saiu aquela bola prateada igual um espelho, toda recoberta de gosma que escorria e pingava no solo. Ela saiu de dentro das entranhas e levitou sobre o solo.

Carlson correu com a metralhadora em mãos e prostrou-se diante do corpo de Petra.
A esfera voou lentamente na direção deles. Carlson se viu na superfície polida. Ele notou seus próprios olhos assustados, e a expressão de terror diante daquela visão. Em completo silêncio, num voo estável, a bola veio para cima deles e uma luz cegante emanou do orbe.

CONTINUA

Receba o melhor do nosso conteúdo

Cadastre-se, é GRÁTIS!

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade

Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

Artigos similares

Comentários

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here

Últimos artigos