domingo, dezembro 22, 2024

O experimento Carlson – Parte 27

Morten Carlson cuspiu sangue. Com dificuldade ficou de pé. E apoiando-se contra as paredes de rocha escura,  seguiu em busca de Petra. Os gritos dela já não podiam mais ser ouvidos.
Com grande dificuldade ele retornou a câmara posterior, onde a luz do sol adentrava por fendas do teto e pelo enorme acesso em forma de arco que dava para as escadarias lá fora.

Ele conseguiu ver as enormes pegadas do gigante em alguns trechos em que a areia soprada pelo vento se acumulava em pequenos montes nas bases dos enormes degraus. A intensa luz lá de fora incomodou seus olhos acostumados à escuridão. Onde estaria Petra?

Não havia mais qualquer sinal dela, nem da criatura que a sequestrou. Para onde ela teria sido levada?
Ele gritou, chamou, mas apenas sua voz ecoou entre as pedras escuras fustigadas pelo vento soprado da planície extraterrestre.

Carlson estava sentindo dores no flanco esquerdo. Sentou-se à sombra da imponente coluna. Sem a companheira, sua solidão, com o qual acreditava já ter se acostumado, tinha um sabor amargo. Ele sentiu aquela tristeza no peito e teria chorado se pudesse. Estava terrivelmente desidratado e essa dor incômoda quando respirava profundamente indicava que talvez tivesse quebrado uma costela no impacto.

Um estrondo dissipou seus pensamentos. Algo como uma explosão.

Carlson se levantou e tentou ver alguma coisa, mas não havia nada que pudesse identificar. Apenas sua memória indicava que o som tinha vindo de dentro da cidade em ruínas.
Ele caminhou por entre paredes tombadas e escombros diversos de rocha preta.  Ao longe, viu uma nuvem de poeira sendo empurrada pelo vento.
Pensando que talvez fosse Petra, ele seguiu na direção da nuvem de poeira, mas ao se aproximar mais, notou que estava diante de um baratão.

A criatura tinha entrado no meio dos destroços e estava presa, tentando se libertar e com isso, derrubara diversas daquelas colunas monolíticas.

A presença do baratão indicava que uma fonte de água subterrânea estaria por ali em algum lugar, afinal, os baratões estavam sempre vagando pela planície em busca de água.

Carlson virou de costas e pegou o caminho de volta para a direção do grande templo, quando uma visão aterradora se descortinou diante dele.

-Não! Não! – Carlson gemeu, com os olhos arregalados de pavor.

Era metade do corpo de Petra.  Ela estava literalmente dividida ao meio. Suas vísceras formavam uma grotesca poça no chão.

Ele correu até ela e se aproximou. Ele fechou os olhos da moça e acariciou seus cabelos verdes.

Morten não conseguiu falar mais nada. Apenas chorou com o cadáver de Petra diante dele.
Ele não entendia o que tinha acontecido. Só então se deu conta de que não estava ali apenas o cadáver de Petra, mas o próprio gigante jazia emborcado uns vinte metros à frente. Ele também estava esquartejado.
Carlson olhou em volta. O que teria acontecido? Quem teria feito aquilo?
Não havia sinal de qualquer criatura nos arredores, nem marcas ou mesmo pegadas.
Carlson andou até o corpo do gigante. Um braço aqui, uma cabeça dez metros à diante, uma perna ainda vertia sangue escuro. Ele notou marcas no corpo como profundas lacerações. E faltava uma das pernas. A princípio Carlson pensou que talvez uma explosão tivesse matado o gigante e tirado a vida de Petra. Mas ao olhar de perto e ver partes visivelmente mastigadas daquele iumenso corpanzil, Carlson se deu conta que alguma coisa tinha literalmente comido o gigante.

Morten foi até as pernas de Petra e puxou na tentativa de juntar o corpo de sua amiga. Era uma imagem horrível que ele sabia que não iria sair mais de sua mente.

O explorador cobriu o corpo dela com pedras. Felizmente, pedras não faltavam por ali. Morten fez o que podia para improvisar uma sepultura.

Quando colocou a última pedra, o vento já estava castigando seu corpo com jatos frios e incômodos. A noite estava chegando de novo.

Carlson tentou rezar alguma coisa e balbuciou três vezes o nome dela. Depois, voltou para o caminho do templo, onde teria que passar a noite novamente.

Conforme andava, já quase no escuro, quando o vento deu uma inesperada amainada, Morten ouviu um barulho como um “tic-tic-tic”…

Aquele era um som que ele conhecia. Eram as patinhas daquele tipo de lacraia monstruosa da caverna. Aquele som deu uma horrorosa sensação de pânico no explorador. Temendo pela própria vida, mesmo ferido, resolveu correr o mais rápido que podia na direção do templo.
Enquanto corria, de forma quase cambaleante,  ele tinha certeza absoluta que estava sendo seguido por alguma coisa no escuro. Mas não dava para ver. A luminosidade já tinha praticamente sumido toda quando ele adentrou o primeiro salão. Carlson se esgueirou para debaixo das pedras no mesmo lugar onde havia passado a noite anterior e esperou para ver no que ia dar.
Quando finalmente sentiu que estava seguro, recuperou o fôlego. Seu coração parecia que ia arrebentar o peito. Ele sentia uma sede sobrenatural.

Morten sabia que naquele estado não iria durar muito mais que algumas horas. Pensar estava difícil e ele sentia uma tontura contínua que estava gradualmente piorando. Eram os sinais claros da desidratação.  Morten sabia que precisaria encontrar água nas próximas horas, do contrário iria acabar morto.
Ele percebeu que as rajadas de vento naquela noite estavam bem mais fracas que as da noite anterior, o que era uma pequena boa notícia em meio a toda desgraça que ele estava vivendo.
Lembrou-se de Petra. Lembrou do beijo deles na cratera.  Sentiu uma lágrima escorrer pelo seu rosto.
Enfiou a cabeça no meio dos joelhos e chorou.
Foi talvez a noite mais longa que ele já tinha passado. Em alguns momentos, Morten refletiu sobre a própria vida. A vida, tão longa para os que estão sofrendo e tão curta para quem a desfruta como deveria…
Depois de um tempo apenas parado, respirando devagar e esperando que o frio e a ventania lá fora desse lugar ao inclemente sol escaldante que torraria o planeta por mais seis horas, Morten imaginou estar ouvindo uma música. Era uma música que ele não escutava há muito tempo.  Em certo momento, chegou a ter dificuldade de compreender se ele estava se lembrando e pensando na musica ou se estava de fato ouvindo.  Era Sons of the Silent Age, do David Bowie.
Se concentrou na musica:

” Filhos da era do silêncio
Ouça as faixas de Sam Therapy e King Dice
Filhos da era do silêncio
Pegue os bares e chore apenas uma vez
Filhos da era do silêncio
Faça amor apenas uma vez, mas sonhe e sonhe
Eles não andam, eles apenas deslizam e fora da vida
Eles nunca morrem, eles apenas vão dormir um dia…” 

A noite escura já dava lugar a uma miríade de tons de azul escuro que logo se tornavam um azul turquesa com toques de lilás. O sol nascia no horizonte infinito da planície que mudava de cores rapidamente, ficando mais e mais branca até ficar imaculadamente branca após perder a cor de rosa na distância.

Carlson saiu de seu esconderijo sob a laje de pedra com enorme dificuldade, ainda sentindo muita dor. Estava claro que ele não aguentava mais e morreria no templo, talvez naquele dia ainda.
Lá fora sentiu o vento gelado que soprava sem parar. Logo seria um vento quente como o daquele secador de cabelos alaranjado de sua irmã com o qual costumava brincar fingindo que era uma arma espacial na infância.
Pegou-se lembrando da sua infância novamente. Era uma boa fuga.
Morten então se deu conta de que se havia ali um gigante que sequestrou Petra, ele tinha chegado ali de algum jeito.

Como ele veio? Seria uma espaçonave? O gigante estava levando Petra com ele para algum lugar. Mas para onde? Certamente, de volta para uma nave até que algo matou eles no caminho. Mas então restava ainda uma questão: E se a nave ainda estivesse lá em algum lugar no meio das ruínas?
Todas essas dúvidas foram uma inesperada injeção de ânimo.

Desistir não era uma opção para ele de modo que Morten desceu novamente com cuidado cada um daqueles enormes degraus, e caminhou até a sepultura de Petra. Mesmo antes de chegar ele viu as pedras espalhadas, muitas manchadas com sangue.
A sepultura dela tinha sido violada. Alguma coisa havia comido tudo que restou dela. E também os restos do gigante. Não restava nada ali senão manchas do sangue numa maçaroca de areia e pedrinhas granuladas. Certamente a coisa que o perseguiu preferiu comer os restos dos dois mortos que tentar matar mais um.
Carlson ficou ali olhando o tumulo aberto e pensando em quão estúpida tinha sida aquela ideia de passar um dia quase todo juntando pedras para cobri-lo, ainda mais sem água e com uma costela ferrada.

Ele deu às costas e resolveu seguir em busca do rio subterrâneo. Certamente haveria uma entrada em algum lugar.  Seu verdadeiro medo era o de dar de cara com o bicho por ali no meio das ruínas. Havia muitos esconderijos em potencial. Ele poderia ser facilmente emboscado por uma criatura daquelas caçando em meio às ruínas.

Morten estava diante de um conflito. Deveria seguir por fora da cidade, onde estaria mais exposto ao poderoso e inclemente sol ou seguiria por dentro da região das ruínas, onde encontraria sombras e abrigo, embora mais perigoso?
Estava ficando cada vez mais difícil de pensar claramente. Ele sabia que seguir uma jornada pela areia ao redor das ruínas o colocaria numa região mais inóspita com um sol que era uma certeza. Já o bicho, talvez estivesse ali, talvez tivesse ido embora de barriga cheia. A necessidade de sombra poderia fazer a diferença entre morrer de insolação radioativa e aguentar só mais um pouco.
Optou pelo caminho por entre as ruínas.
As paredes de pedra preta e as enormes colunas tombadas muitas vezes anteparavam o vento o que era um inesperado alívio de momento a momento num planeta onde o vento era um inimigo constante.  Eventualmente ele precisava parar, porque se apertava o ritmo a respiração se tornava mais rápida e a dor aumentava junto.  Sentia fome. Uma fome tremenda.

Morten já havia percorrido uma boa faixa de terreno irregular, tendo que passar por becos e paredões tombados. O sol fazia sua nuca arder e seus cabelos molhados de suor escorriam sobre seus olhos toda hora. Conforme andava, distraía sua mente pensando no planeta, na missão. Evitava pensar em Petra para não ser contaminado por um baixo astral que poderia ter consequências fatais naquela altura do campeonato.
Pensou sobre o planeta, na sua formação, sua conformação geológica. Ele sabia que estava num planeta predominantemente rochoso mas com grandes volumes de água em alguma região. Ele acreditava que a leste haveria em algum lugar um oceano. Talvez houvesse florestas ou pradarias perto dessa massa de água. A explicação para ter água era muito óbvia: pelo volume de nuvens na atmosfera, estava bem claro que havia muita água.

Ele não era um planeta desértico. A umidade no ar era muito alta, até mesmo para um deserto. Uma hipótese é que talvez fosse algum conjunto grande de lagos formados no interior de crateras que mantinha essa umidade.  O próprio solo plano e arenoso indicava que em algum momento de um passado distante, houve ali um enorme lago que evaporou. Era possível que ele estivesse no equador do planeta, a julgar pelo modo como o sol passava através do céu. Talvez houvessem calotas polares, como na Terra e nesse caso, haveria algum tipo de ambiente tropical? Selvas? A vegetação que ele tinha visto ate aqui se resumiram a filamentos roxos esquisitos e bolotas de ervilhas gigantes…

Perdido em pensamentos sobre o planeta, Morten não percebeu que estava sendo observado.

– Olá homem espacial.  – Uma voz bizarra disse, provocando tamanho susto, que Morten pensou que seu coração ia parar.

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Philipe Kling David, autor de mais de 30 livros, é editor do Mundo Gump, um blog que explora o extraordinário e o curioso. Formado em Psicologia, ele combina escrita criativa, pesquisa rigorosa e uma curiosidade insaciável para oferecer histórias fascinantes. Especialista na interseção entre ciência, cultura e o desconhecido, Philipe é palestrante em blogs, WordPress e tecnologia, além de colaborador de revistas como UFO, Ovni Pesquisa e Digital Designer. Seu compromisso com a qualidade torna o Mundo Gump uma referência em conteúdo autêntico e intrigante.

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