Pode parecer inesperado ou até mesmo exagerado, mas creia você ou não, este é um imortal.
Ouvi falar da lenda dos imortais soviéticos em uma revista inglesa obscura cujo nome já não me recordo. Eu comprei a revista num sebo de Veneza quando estava fazendo fotos na região em meados de 62. A matéria falava sobre a lenda dos “sete imortais”.
Basicamente, era uma lenda no interior da Rússia de que existem sete homens imortais vagando pela Terra desde sempre. São os Koshei.
Ninguém sabe se eles são humanos ou algum tipo de divindade. É proibido falar com eles. A lenda por trás de tais criaturas sugere que cada um desses seres conseguiu separar sua alma do corpo, e a alma foi então aprisionada em um objeto mágico, e escondido. Uma vez feito isso, ele não pode mais morrer, a menos que se destrua o objeto que contém sua alma. Mas como você pode imaginar, isso é praticamente impossível.
Após ter contato com a lenda dos Koschei, fiquei com essa história na cabeça, como uma interessante curiosidade e anos depois, já no Canadá, em 1976, enquanto cobria uma matéria sobre a equipe olímpica soviética de atletismo, me encontrei com Alexei Stepanenko, um tradutor e guia do regime.
Já nos conhecíamos de outros projetos em comum, de quando eu trabalhei como correspondente do New York Times em Londres. Após a vergonhosa situação da pira olímpica apagar com uma forte chuva, nos encontramos no hotel onde Alexei estava hospedado.
Lá, após conversas quase sempre amenas – nunca, sob motivo nenhum falávamos de política, pois ambos sabíamos que éramos monitorados permanentemente, como toda a imprensa era, aliás.
Nossos assuntos centravam-se em Monika, esposa dele e nas minhas múltiplas namoradas. Naquela noite, enquanto jantávamos no restaurante do hotel, falei com ele sobre lendas e histórias que o povo conta. O assunto acabou em muitos risos e histórias. Aí eu falei dos imortais da revista e percebi que imediatamente Alexei ficou sério.
Ele tomou um gole de refrigerante e disse, circunspecto com seu sotaque carregado: – “Mas isso existe”.
Alexei tinha tanta certeza que aquela lenda tinha um fundo de verdade, que a convicção dele me contagiou. Eu quis saber detalhes, mas ele ficou evasivo, tentando mudar de assunto, queria falar da Rainha e do discurso dela, mas eu estava obcecado pela ideia para deixar o assunto morrer.
Eu insisti tanto, que Alexei resolveu me falar. Quase sussurrando, ele disse: – “Eu já vi um. Eu era criança, e ele cruzou meu caminho numa estrada em Talinka. Eu estava com meu pai e tinha 17 anos. Nosso cavalo se agitou muito. Não sabíamos bem o motivo. Logo, ficou claro. Assim que ele apareceu saindo da floresta, nosso cavalo estancou como se tivesse congelado. Meu pai me disse com uma voz esquisita, parecia estar entalado na garganta: -” Alexei, não fale com ele. É um Koschei.”
Então ficamos parados como estátuas. Ele veio, chegou perto. Ele tem um olhar assustador, penetrante. Você sabe que é um Koschei porque ele emana um tipo de sensação incomum de medo e pavor. Meu pai desmaiou e depois de um tempo, eu também desmaiei conforme ele chegou perto da nossa carroça.
Quando acordamos, ele tinha ido embora, mas as pegadas ficaram na lama de neve na beira da estrada. Ele foi para a floresta do leste. Naquela noite passamos muito mal. Achei que meu pai ia morrer. Meus olhos incharam e os do papai também. Só depois de vários dias nossos olhos voltaram ao normal. – Alexei disse.
Eu tomei aquilo por verdade e agradeci pela história impressionante.
Dois anos depois, fui escalado por Don Hubbard, meu editor no The New York Times para ir até a Alemanha oriental cobrir uma entrevista com Erich Honecker sobre um acordo com a União Soviética. Naquela noite, completamente avulso no quarto de hotel, eu montava um quebra-cabeças quando recebi um telefonema de Alexei. Ele estava também por lá, ajudando num evento ferroviário em Potsdam.
Nos encontramos sob a intensa vigilância dos serviços secretos, como já era de costume. Alexei estava abatido, segundo ele, por um resfriado. Mas logo se animou a me contar uma descoberta: Ele acreditava ter localizado uma pista do imortal.
Alexei disse que relatos de moradores da região de Talinka à rádio Mayak relataram encontros com um possível Koschei. – Ele ainda está lá em Talinka! – Alexei disse, sorrindo e animado.
Imediatamente me animei também. Era a chance que eu queria para uma boa história. Eu sabia que seria fácil convencer Don a me liberar para caçar um imortal na União Soviética, dado o grande interesse do povo pelo que acontecia no terreno “inimigo”. Mas eu sabia que o jornal estava queimado e então pedi que meu amigo russo intercedesse junto às autoridades soviéticas, afim de obter uma autorização especial para uma matéria para a Real Sociedade Geográfica. Um grande amigo na RSG iria mandar os documentos necessários para legalizar meu passe. Pensei que assim seria fácil.
A autorização finalmente saiu, mas apenas quatro anos depois, devido a condições políticas conflituosas desencadeadas com o problema da invasão soviética no Afeganistão e a operação Borrasca 333 do Brejnev, o que foi bastante frustrante.
Quando eu finalmente me encontrei com Alexei em Moscou, havia poucas chances de que o Koschei ainda estivesse na região de Talinka. Ele poderia estar em qualquer lugar. Como a autorização limitava meu tempo sob a cortina de ferro, eu precisava confiar nos instintos de investigação de Alexei. Ele havia comprado um mapa da região e marcado uma série de pontos onde os programas de radio relataram os aparecimentos. Eventualmente, algo saía no Pravda e no Izvestia, e ele ia atrás, tentando determinar o quanto daquilo era real ou não.
Estivemos percorrendo estradas precárias com uma lama viscosa que atrapalhava nossa vida. Era o início do outono e os ventos frios que sopravam do leste pareciam tentar nos deter.
Finalmente uma pista quente foi nos dada quando Monika que estava com a gente na busca, ouviu no radio mais um encontro, o que nos levou a um médico do centro de saúde popular dos trabalhadores de Zabolotskie Vyselki.
O médico contou que duas pessoas tinham ficado paralisadas e doentes dos olhos, após encontrar uma figura estranha na floresta. Como Zabolotskie Vyselki estava a nordeste da floresta de Talinka onde o Koschei apareceu para Alexei e seu pai, era provável que ele estivesse oculto na floresta em algum lugar por ali.
Fizemos diversas incursões na floresta, sem sucesso. Meu tempo se esgotava e logo eu precisaria voltar para a Inglaterra.
Então, inesperadamente, a melhor das pistas se materializou em nossa frente logo após o almoço, quando seguíamos de um vilarejo precário chamado Ozyornyi. Era um percurso longo e acidentado, com muitas pedras e lama. Seguíamos para oeste, em direção a Tambov Oblast, quando ao passar o rio Reka, nos deparamos com pessoas catatônicas na estrada. Eles pareciam em estado de choque. Monika deu água para as pessoas, e gradualmente elas foram se recuperando. Ficou claro para nós que era um sinal de que o Koschei havia passado ali.
Então nos separamos e saímos em busca do Koschei.
Eu estava com minha câmera Leika e alguns rolos de filmes nos bolsos. O jovem que havia visto o Koschei disse que ele tinha entrado numa plantação e nos apontou a direção. Alexei correu até lá e em grande agitação, mostrou as pegadas do homem.
Percebi que ele estava nervoso. Questionei se ele queria seguir comigo. Alexei estava em conflito, mas Monika, parecia tão obcecada por ver o imortal quanto eu, talvez por ele ser uma parte importante da vida de Alexei do qual ela nunca conseguiu fazer parte.
Não pretendia perder tempo com conversa, então eu simplesmente corri seguindo as pegadas, e ouvi Monika e Alexei vindo atrás de mim.
Vagamos a esmo pela enorme plantação de um tipo de flor amarela.
Então, conforme andávamos num tipo de trilha estreita no meio das flores, eu ouvi Monika falar um monte de coisas em russo.
Alexei estava com os olhos arregalados olhando para mim. Ele não dizia nada que eu pudesse entender. Nem precisava. A sensação agoniante se apoderou de meu coração tão logo eu fitei os olhos arregalados e amedrontados de Alexei.
Ficamos estáticos e eu ali, segurando a câmera. Com cuidado para não fazer barulho, posicionei meu olho no visor.
Ele apareceu no meio das plantas e caminhou em nossa direção. E então parou. Conforme ele se aproximava, um mal estar verdadeiramente abominável se apoderava de nosso coração. Eu achei que meu coração estava a ponto de parar. Imediatamente me arrependi de todo o esforço e toda a jornada que empreendi para ir atrás daquele ser. Definitivamente, aquilo não era humano, embora parecesse.
Alexei estava petrificado, mas eu ainda conseguia me mover, o que de uma certa forma, pareceu intrigar o Koschei. Bati duas fotografias dele. Ele olhou para minha câmera. Com certeza, ele nunca havia visto uma câmera antes. Imagino que estivesse avaliando se estava diante de uma arma.
Ele se aproximou com passos firmes e cautelosos. E a cada passo eu pensava que ia morrer. O Koschei não parecia russo. Na verdade, algo nele me lembrava uma espécie de homem turco.
Ouvi um barulho no mato ao meu lado e vi Monika e Alexei. Os dois já tinham tombado duros no chão quando ele chegou a dois metros de nós.
Ele olhava para a câmera com uma certa curiosidade contida.
O homem era muito pálido, com uma barba preta e cabelos compridos. Isso foi inesperado, pois eu sempre imaginei um imortal como um velho horroroso e decrépito. Mas o Koschei parecia não ter mais de quarenta anos. Ele vestia uma roupa trabalhada antiga e tinha um tipo de chapéu tradicional, pontudo bordado com ouro e pedras que resplandeciam sob o difuso sol daquela tarde. Eram roupas que pareciam cerimoniais e estavam bem limpas a julgar pelo fato de que ele vivia andando, acredito que sem rumo.
Então ele veio até mim e foi a última coisa que me lembro. Eu tombei para trás, como uma árvore cortada por um lenhador.
Caí duro, num tipo de convulsão. Meus músculos ainda estavam dando espasmos quando despertei do choque.
Ouvi ao longe as plantas estalando. A câmera estava caída aos meus pés. O Koschei havia partido de modo tão misterioso quanto apareceu.
Alexei se sentou no mato gemendo, com as mãos na cabeça, e Monika estava vomitando o almoço.
O imortal sumiu à distância de uns cem metros, em meio as flores amarelas. Não trocamos qualquer palavra. Mas foi um encontro poderoso. Uma das fotografias velou, mas a segunda saiu perfeita.
Eu estava com a visão turva e com dificuldade conseguimos nos recompor e voltar ao carro na estrada. No caminho de volta, pouco ou nada nos falamos. A sensação de ter testemunhado algo que não é natural era permanente e custou a passar. Um gosto metálico na boca, meio amargo também persistiu por semanas. No dia seguinte, estávamos os três com uma forte inflamação nos olhos, principalmente Monika.
Alexei parecia um pouco mais perturbado do que nós dois. Quando ele finalmente começou a falar, contou que o Koschei era exatamente igual quando ele o viu, mais de trinta anos antes. Alexei me pediu para não divulgar nos jornais a foto do imortal. Ele temia – justificadamente – que uma caçada ao imortal começasse, e isso certamente acabaria em morte. Guardei a foto comigo por anos e de vez em quando, abro a gaveta da escrivaninha e olho para ela. Essa foto ainda me traz a sensação tenebrosa que senti naquele dia.
Hoje, tantos anos depois daquele dia, ainda me pergunto se o Koschei ainda está lá naquela floresta, vagando no meio da neve, atravessando plantações e rios, com seu olhar e roupas estranhas, ignorando o tempo.
Seriam os Koscheis partes do Leonardverso?
?????
eita,, eram cinco estrelas de aprovação, apareceram cinco interrogações
Acho que é um problema com o formato Utf aqui do blog.
Muito bem escrito, Philipe!
Muito obrigado Danilo
eu me divirto muito com suas estórias. parabéns.