Os milagres diários que ninguém liga

Ontem meia noite eu estava colocando uma peça para imprimir aqui e como sempre faço, só largo a impressora 3d sozinha depois da terceira camada. Eu faço isso porque geralmente, com bicos de extrusão muito estreitos, é comum que a cabeça de impressão entupa, porque a primeira camada ela faz bem apertada na mesa, para que a peça fique bem aderida e não se mova enquanto ela é criada, linha a linha, camada por camada, pela maquina. Lá pela terceira camada, a impressora já dá sinais que vai bem e posso ir dormir e largar a maquina trabalhando sozinha a noite inteira.

Enquanto a cabeça de impressão ia se deslocando, lentamente desenhando um padrão de linhas incompreensíveis, quase invisíveis na mesa de vidro, eu me peguei pensando em como essa impressão 3d é um espetáculo, um pequeno milagre da tecnologia, que converte uma coisa que eu concebi no plano da virtualidade para, como diz meu amigo Marcelo Souza, “um conjunto de átomos especialmente arranjados de modo a trazer ao mundo real algo que só existia na nossa cabeça”.
É tão, mas tão incrível, tão espetacular ver uma escultura nascer do plástico derretido que hoje, mais de um ano depois de ter minha impressora 3d e imprimir toda sorte de coisa, de todo tamanho, eu ainda fico completamente maravilhado, estupefato dessa maquina conseguir fazer isso, ali, diante de mim, dentro do quarto fechado, madrugada à dentro, durante semanas…

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Camada a camada, os objetos vão sendo produzidos. Chega a parecer bruxaria!

Fiquei ali admirando o movimento eletromecânico da cabeça de impressão, ouvindo o assobio baixinho dos motores e pensei que talvez meu filho não perceba esse milagre como eu percebo. O Davi nasceu num mundo muito, mas muito mesmo, diferente do que eu nasci. Ele se espanta quando eu conto pra ele que a televisão nem sempre foi na parede e não era fina, era uma caixa de madeira com uma bolha de vidro na frente. Que o telefone antigamente tinha fio e ficava preso na parede. Muitas vezes, ele me olha com uma expressão de descrédito, tipo “tá me gozando?” como quando eu disse a ele antigamente todas as televisões eram preto e branco e não existia cor. E nem computador, nem tablet, nem carro existia.
Pra ele tudo isso é a mais completa das normalidades. Tudo é touch, a virtualidade é uma conveniência ao qual nem pensamos que existe. De fato, existem milhares de cientistas no mundo hoje, exatamente agora, tentando inventar tecnologias que sejam invisíveis à nossa percepção apesar de afetar diretamente nossa condição humana.

Parei de pensar no meu filho e no mundo tecnológico que temos ao nosso redor para pensar que eu também não liguei para milagres do dia-a-dia, simplesmente porque quando cheguei na festa, ela já era assim. A eletricidade. Puta milagre esse troço. O antibiótico. Antes se machucou, infeccionou, beiçou!
O mundo passou e passa continuamente por pequenos milagres, pontos de mutação que alteram brutalmente o que achamos que é a realidade. Somente a geração que presencia a experiência dessa mutação tecnológica disruptiva, fica marcado por ela. Os que vem depois, em nossa condição de transitoriedade da vida, dão aquilo como o “normal” e vão se espantar com outros milagres sem talvez jamais parar para pensar em como já foi. Até porque é um exercício complexo pensar em algo que não se conheceu.

Mas pense num mundo sem telefone, sem carro, sem luz. Um mundo sem comodidades, sem as facilidades que temos hoje. Tem coisas que eu fico completamente embasbacado pensando “porra olha isso, é um milagre e ninguém parece estar nem aí pra essa coisa”. Um exemplo: Tomografia computadorizada. Porra a maquina olha DENTRO DA GENTE, DENTRO, véio… E o bom é que olha sem precisar abrir você!

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Outra parada, totalmente corriqueira, mas puts, eu fico boladíssimo: Google Earth. Rapaz, eu uso aquilo, olho QUALQUER LUGAR DA FUCKING FACE OF EARTH, e penso em como milhares de cartógrafos se ferraram, perderam as vidas tentando fazer mapas rudimentares de rochedos no mar. Passando frio, fome, passando toda sorte inimaginável de perrengue, navegando no desconhecido sem saber o que ia acontecer, para poder deixar às próximas gerações um conhecimento de como eram as coisas. Hoje é um clique e eu vejo fotos do lugar. Amanhã quem sabe, verei em videos?

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Beduínos no meio do Saara pegando água para os camelos. Um deles olha para cima. Instintivamente estaria se sentindo observado?

Um simples apertar de botão e eu escuto um sinfonia de Beethoven. Porra você já parou pra pensar que não faz muito tempo, para ouvir uma sinfonia uma pessoa precisava reunir uma orquestra INTEIRA? Um botão. Um mísero botão.

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E as videochamadas? Eu faço com a minha mãe na Alemanha como se ela estivesse ali no quarto ao lado. Um botão.

E a pilha recarregável? Caramba, que coisa milagrosa essa merda. Eu fico olhando pra essa minuscula coisinha e pensando: Por que você não estava na minha mão nos anos 80, desgraçada? Naquele tempo a gente botava pilha alcalina na geladeira pra ver se ela dava uma recarga. Sim a gente acreditava em toda sorte de monguices, como guardar coca-cola com uma colher de chá na boca da garrafa em vez de tampa porque o vizinho dizia que “o gás voltava”.

Agora se tem uma parada que me espanta sempre, é o GPS. Uma merdinha duma telinha pequenininha no seu carro que DIZ PRA ONDE VOCÊ TEM QUE IR. Maluco, o grau de sofisticação para que uma coisa dessas surja é incomensurável. Basta lembrar que poucos séculos atrás estávamos na tração animal. Se o seu cavalo não quisesse andar, tu tavas lascado. O simples ato de apertar um botão numa caixa e ver sua comida ficar quente (estou falando do microondas) sem fogo é estupefaciente demais. E a impressora laser? Já viu a qualidade de impressão duma impressão a Laser? Pois tem até colorida!  A qualidade é acachapante.
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Agora pensa no perrengue do Gutemberg usando uma prensa de madeira enorme e desajeitada com dois metros tendo que imprimir uma bíblia inteira, pagina a pagina, à mão! E isso já era um supra-sumo tecnológico, porque antes dele tinha que um monge perder metade da vida apenas copiando à mão, usando tinta de polvo e uma pena cortada ou uma cana cada página da Bíblia. Copistas… Que por sua vez já eram um milagre em si, porque antes disso, saber ler e escrever era para poucos.

Há milagres espalhados para tudo quanto é lado e não nos damos conta deles. Ao contrário, nos embrenhamos em pequenos turbilhões do dia a dia que sugam nossa consciência e reflexão para um eterno redemoinho de atraso. Falta de dinheiro, saneamento básico deficiente, desvios de verbas, desemprego, guerras religiosas, crimes.
Para muitos é como se só isso existisse. Apesar de todos os milagres, ninguém liga.

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Já me peguei pensando igual a você, imaginando como que o ser humano conseguiu criar a porra de Itaipú (vc já foi na usina de Itaipú?? Consegue entender a magnitude dela?? E começou a ser feita em 1940, quando nem tinha computador pessoal!!) mas não consegue respeitar a orientação sexual de alguém, ou acredita que Jesus se manifestou em um pedaço de pão de forma queimado!!!
    Conseguimos criar coisas tão incríveis e ao mesmo tempo perdemos tempo com coisas tão ridículas! No final, acho que o maior milagre é como nós, seres humanos, existimos. Como que a vida conseguiu ficar tão complexa no meio de um Universo tão caótico. E que, na correria do dia-a-dia, deixamos de nos importar com esse milagre que é nossa existência, e a tratamos de forma banal, dando importância ao que menos importa de verdade.

  2. Carambaaaaa. Viajou legal. Também eu, as vezes tenho esses “lampejos” de admiração pelas conquistas, descobertas e habilidades da humanidade. É mesmo muito incrível tudo isso,né?
    E em cima disso tudo ainda tem a famosa “gambiarra”, haha!

  3. Texto inspirador! Ótimo para uma sexta-feira.
    E, já que estou aqui, aproveito para reclamar: faz tempo que não tem atualizações no blog, né?! heheheh

    • Edgar, estou cm muito trabalho, e ainda finalizando minha loja online que resolvi finalmente tirar a bunda da cadeira e fazer. É por isso.

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